sexta-feira, 25 de maio de 2007

Choses du Brésil



- Alô, Daniel?
- Sim, sou eu.
- Aqui é da organização do 9º Festival de Cinema Brasileiro em Paris. Você quer ser o DJ da festa de encerramento?
- Hein?
- Tá a fim? Só música brasileira.
- Claro! Mas eu não toco nem funk e nem axé. E nem Seu Jorge, claro.
- Perfeito. Então é você mesmo.


Foi de sopetão que recebi esse telefonema. Mandei alguns e-mails uns dias antes, procurando coisas pra fazer por aqui, mas nunca pensei que a minha estréia como DJ em terras francesas seria em tão alto estilo.

A festa rolou num barco, no Rio Sena. E a feijoada, o pão-de-queijo e a caipirinha eram liberados. Mas um item, não incluso no cardápio, também marcou presença: o maleta brasileiro. Na verdade, UM maleta brasileiro.

É verdade que existe maleta em qualquer lugar. Mas esse era especial. Tinha talento pra coisa.

No começo da festa, enquanto os convivas degustavam uma flatulenta feijoada, Roberto Carlos dava o tom. O maleta, que ainda não tinha conquistado esse título, chegou perto da cabine. Apontando para si mesmo, cantava junto com o Rei: “Eu sou terrível e é bom parar...”. Animado, jogou a cabeça pra trás, tipo o Pablo do Sílvio Santos, deu um semi-giro e voltou pra pista.

Algumas músicas e várias caipirinhas depois, ele voltou. Com a boca já meio mole.

- Véio, dá pra tocar Expresso 2222?
- Toquei 5 músicas atrás.
Num lampejo de consciência, ele se lembrou.
- É mesmo. Foi massa. Tá mandando, hein?

A noite continuou. Pista cheia, Caio Blat cercado de peruas francesas e brasileiras, e o maleta saracoteando pra lá e pra cá. Uma hora ele veio pra cá. Tava difícil entender o que falava.

- Eu posso te pedir um favor. Aliás, um favorzão. Um favorzão do fundo do meu coração? E bateu no peito várias vezes com força.
- Se eu puder ajudar...
- Bicho, eu amo o Gil. Pode tocar Expresso 2222?
- Mas eu já toquei. Tá lembrado?
Não tava.
- Pô, o ministro cara. Tá faltando suíngue, saca? Tô a fim de me jogar na pista. Nisso, deu uma rebolada, mostrando como se jogaria.

Pra tirar o Maleta (agora já com M maísculo) de perto, eu prometi que tocaria de novo. Claro que não pretendia cumprir o acordo. E muito menos vê-lo se jogar na pista. Mas tinha que falar qualquer coisa pro bafo-de-onça sair da minha cola.

Já no fim da festa, com a música bem mais baixa e calma, o Maleta reinava absoluto na pista de dança. Ocupava todos os espaços ao mesmo tempo. Abria os braços, rodava uma desavisada, cantava alto, se ajoelhava na frente de outra, pulava. Sempre com uma caipirinha na mão. Com o olhar perdido, me localizou e se lembrou da minha existência. Levantou a mão e deu um grito rouco e desafinado.

- Expresso 2222, porra!


Mas já era hora de acabar. Todo mundo saía. Só o Maleta queria mais. Juntou todas as forças pra ser entendido uma última vez e foi falar com um dos organizadores do evento.

- Olha só. Eu até queria ficar mais, mas esse carinha aí não toca Expresso 2222. Então eu vou embora.

Nisso, virou e levou um tombo espetacular. Bêbado é um bicho solidário, e logo apareceu um outro, em estado ainda pior, pra tentar dar um apoio. Enquanto o ajudava a se levantar, soltou a frase definitiva da noite.

- Coitado... Chamou tanto o expresso que acabou atropelado.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Uma camisa amarela

Vesti minha camisa amarela e saí por aí. Na verdade, saí pra Ikea, coisa que jurei nunca mais fazer, nem por todo croissant do mundo. Mas tive que ir trocar uma cadeira que veio com as peças soltando.

O inferno começou cedo. Como todas as lojas da Ikea ficam fora da cidade, não dá pra ir de ônibus ou metrô. Então peguei o carro de um amigo emprestado. O trânsito estava lento feito um escargot ao sol. E aí – só aí – me lembrei de que aquele era o primeiro dia de um fim de semana prolongado.

Entalado na estrada, liguei o rádio, tentando diminuir a agonia. Esforço vão. Do som, um ritmo que demorei um pouco pra reconhecer. E uma voz que levei anos pra esquecer, mas que agora, graças aos franceses, está novamente impressa na minha memória. “Chorando se foi quem um dia só me fez chorar”, lamentava-se a vocalista do Kaoma.

Kaoma? De onde desenterraram isso? Por que aconteceu comigo? Acreditem ou não, essa música ainda toca muito por aqui. Na minha cabeça, milhões de perguntas, enquanto decidia se mudava de estação ou explodia o rádio.

Desliguei o aparelho. Era muito melhor escutar mil buzinas de caminhão a mais um segundo daquilo.

Eras depois, cheguei à loja, já com o meu humor longe de seus melhores dias. Entrei numa fila de reclamações e trocas. Chegou a minha vez, expliquei o defeito pra atendente. Ela saiu para buscar um papel e eu fiquei ali parado, em frente ao balcão. Uma moça veio em minha direção.

- Pardon, monsieur. Eu comprei uma estante aqui, mas ela veio com defeito. Eu trouxe a peça comigo. Como eu faço pra trocar?
- Minha senhora, eu não faço a menor idéia.
- Como assim não faz idéia?
- Não faço.


Brava, ela se virou e não disse nem obrigado. Não entendi nada.

Como já estava no inferno, abracei o diabo. Aproveitei a ida à Ikea pra ver outras coisas que precisava para a casa. Estava decidindo se comprava uma lixeira de cinco ou de dez litros e senti um cutucão nas costas.

- O senhor sabe onde fica a seção de cama?
- Monsieur, eu nem desconfio.
- O atendimento aqui já foi melhor...


Sem ter a mínima idéia do que estava acontecendo, virei abruptamente e bati de frente com um dos atendentes da loja.

- Pardon.
- Pardon.


Aí me dei conta. Ele estava de amarelo, como todos que trabalham lá. Uma camisa igualzinha à minha. A única diferença era um discreto crachá.

De repente me pareceu que os atendentes tinham se multiplicado como gremlins. Estavam por toda parte, distribuindo sorrisos e informações. Naquele momento, querendo ou não, eu era um deles.

Semi-apavorado, lembrei que ainda precisava buscar uns copos no andar de cima. Saí rápido, olhar fixo pra frente, desviando das investidas.

- Monsieur? Gritou um cliente. Passei reto.
- Pardon? Acenou outro com a mão. Entrei no corredor mais próximo.
- O senhor sabe se... Não parei e nem o deixei terminar a frase.

Peguei tudo o que lembrei que precisava e corri para o caixa, desviando de todo mundo que me olhasse um pouco mais fixamente.

Na volta, liguei o rádio de novo. Azar ou destino o Kaoma voltou a atacar nas caixas de som. Desliguei de vez o aparelho. No fim desse pesadelo, uma conclusão: nada é tão ruim que não possa piorar muito. Nem uma ida à Ikea.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Monsieur Gérard



Monsieur Gérard é meu professor de francês. Meu e de quase meio mundo, literalmente, pois dá aula para estrangeiros. Na sala tem de tudo: búlgaros, guatemaltecas, peruanos, indianos, paquistaneses, romenos, espanhóis e brasileiros, claro. Tem brasileiro em todo canto.

Monsieur Gérard é tudo o que você puder imaginar de um professor à moda antiga. Está sempre de terno, tem um cavanhaque grisalho, usa óculos e trata os alunos por “vous” (que equivale a “senhor”) e, ele que não leia isso, é chato pacas.

Não que seja inconveniente. Pelo contrário. É super educado. Mas parece viver no começo do século passado, em um filme mudo preto-e-branco.

Em uma aula dessas a professora da sala ao lado faltou. Então tivemos que juntar duas turmas. Monsieur Gérard no comando, querendo saber o nome dos novos alunos.

- Bonjour. Quel est votre prénom?
- Eu me chamo Sasha. Vim da Rússia.


O mestre, então, ficou olhando infinitos segundos pro quadro. Sem dizer uma palavra. Nada. Total silêncio. Tensão no ar. Enfim, soltou.

- Alguém sabe qual a nacionalidade de quem vem da Rússia?
- Ils sont Russes,
alguém respondeu.

Monsieur Gérard virou para o sujeito, cerrou os olhos e assim ficou. E ficou. Nem piscava. De repente, voltou à vida.

- Très bien! Voltou-se para o quadro, levantou o giz e escreveu “Russes”.

Esse episódio levou uns 3 minutos. Considerando que era o começo da aula, e ela dura 2 horas, ainda tínhamos bem mais de 100 minutos de tortura.

Lá pelas tantas, a sala, que já estava calada, emudeceu de vez. Monsieur Gérard estava imerso em mais alguma introspecção e, eu contei, 9 alunos dormiam. Éramos 15 na classe. O outro brasileiro, que trabalha o dia inteiro em um restaurante, estava há tempos nos braços de Morfeu, com os olhos semi-abertos. Nem ouviu quando o professor lhe fez uma pergunta e depois, muito pacientemente, ainda repetiu. Como não acordava, um colega ao lado o cutucou. E ele respondeu num susto.

- Oui, Flamengô!

Flamengo? Não sei quem viajava mais, o professor ou o meu compatriota. E o mais bizarro é que tudo pareceu normal. Ninguém falou nada. Nenhum aluno. Nem Monsieur Gérard. O máximo que ele fez foi olhar fixamente para o brasileiro. Esse, por sua vez, esfregou o sono e olhou de volta para o mestre.

Monsieur Gérard deu um pequeno sorriso, virou as costas e passou o longo resto da aula explicando a diferença entre liqüidação e promoção. Eu nem imaginava que havia tantas. E o meu colega, um cearense que se mudou pra São Paulo, torce pro Flamengo e agora trabalha em um restaurante indiano em Paris, levantou-se para lavar o rosto. No fim da aula, veio falar comigo.

- Rapaz, será que o professor percebeu que eu tava dormindo?
- Ué, ele não tava também?

sexta-feira, 4 de maio de 2007

68 + 1




Domingo acontece o 2º turno das eleições presidenciais na França. Ségolène Royal é a candidata da esquerda. Nicolas Sarkozy é o da direita. Ela, meio insossa, com um discurso que daria sono até no Alckmin. Ele, uma mistura de Collor e Maluf.

A verdade é que ninguém parece muito empolgado com a Ségo, como ela é chamada aqui. Mas a possiblidade de vitória do mini Hitler fez as pessoas irem às ruas. Eu fui também.

Havia duas semanas que estava em Paris, e o processo eleitoral começava a esquentar. Recebi um panfleto de uma passeata anti-Sarko, organizada por um grupo chamado ‘Act Up Paris’. Não li tudo, mas o motivo já me animava. Tava louco para viver os resquícios de maio de 68.

Cheguei ao local marcado um pouco antes da hora. Havia algumas centenas de pessoas e uma grande faixa escrita “Des fleurs, des pailletes, Sarkozy à la retraite”. Algo como “flores e purpurinas, aposentadoria a Sarkozy”. Não gostei do slogan. O que tinha a ver flores e purpurinas com as eleições?

Enquanto isso, a praça ia enchendo. Os organizadores se cumprimentavam com bitocas na boca. Depois pegavam o megafone e davam gritos histéricos, rapidamente correspondidos com entusiasmo pelos presentes.

Achei aquilo um pouco estranho. “Mas é o jeito deles. São os filhos de 68, afinal”, pensei.

A verdade é que estava fascinado em participar de um ato político em Paris. Imaginei que fôssemos caminhar triunfalmente até o Champs-Elysées, como De Gaulle fez quando a França foi retomada após a derrota dos alemães na 2ª Guerra Mundial.

Meu pensamento estava longe, longe. Acordei quando apareceu uma flor em frente ao meu nariz. Demorei um pouco pra entender que era pra mim.

- C’est pour toi.
- Merci beaucoup. C’est gentil. E abri o maior dos sorrisos, olhar fixo na flor, sem ver quem oferecia.
- De rien... Disse a voz masculina. Aí percebi que quem a segurava era uma figura que mesclava um militante do MR-8 e o Clóvis Bornay, e dava uma piscadinha de canto de olho pra mim.

Meu cérebro começou rapidamente a fazer as conexões e logo chegou à obvia conclusão: eu estava em uma passeata gay! Aí que fui notar as bandeiras lilás, os homens de mãos dadas, a purpurina voando e a farta distribuição de rosas.

Continuei por ali e mostrei minha indignação contra Sarkozy, aplaudindo tudo o que eles falavam, apesar de não entender a metade. Mas vi que não iríamos marchar pelas ruas da cidade. Fiquei um pouco frustrado. Pra quem foi esperando ver 68, o máximo que conseguiria seria um 69.

Mas pelo menos cheguei em casa cheio de flores.