sexta-feira, 27 de julho de 2007

Ocupado


- Então a gente se encontra na loja de papéis na galeria do Louvre.
- Tô lá em meia hora.

Era simples. Só pegar o metrô aqui ao lado, descer na estação certa e andar alguns poucos metros. Como eu tinha tempo de sobra, resolvi saltar antes e caminhar. Assim estaria lá exatamente na hora marcada e ainda pegaria um pouco de sol no percurso. Sol que não deu muito as caras no verão parisiense.

Não existia possibilidade de dar errado. Mas deu.

Cheguei lá. Porta fechada. Todos os museus do mundo fecham na 2a feira. Só o Louvre na 3a. É verdade que até a Mona Lisa precisa descansar, mas na 3a feira, diabos? Diante do impasse, a opção mais lógica era telefonar e marcar outro ponto de encontro.

Como não tenho celular, fui procurar um orelhão. "O Louvre é um lugar turístico, então não vai ser difícil achar um por perto", pensei. Mas simplesmente não existe um ali pelas redondezas.

Sol na cabeça, andei como um peregrino até encontrar um simples telefone público. Entrei, saquei o cartão telefônico e disquei. Ao invés do habitual sinal de ligação completada, uma gravação estilo disco arranhado.

- O seu cartão perdeu a validade. Favor comprar outro. O seu cartão perdeu a validade. Favor comprar outro. O seu cartão perdeu...

Agora o óbvio passo seguinte era ligar a cobrar. E quem disse que na cabine está explicado como fazer? Tentei perguntar para a senhora ao lado.

- A senhora saberia como ligar a cobrar?


Ela abriu o olho, olhou-me de cima a baixo, segurou a bolsa com mais força e saiu em passo apertado, sem dizer nada. Faz parte da cultura brasileira empurrar a dívida. No país do fiado todo mundo liga a cobrar. Mas experimenta perguntar pra um parisiense se ele sabe fazer isso. A pobre senhora, vendo um cidadão suado falando um francês de 2a categoria, deve ter imaginado se tratar de uma nova modalidade de assalto importada dos trópicos. E deu no pé.

Eu já estava quase 30 minutos atrasado. Fui procurar uma loja de lembrancinhas pra turistas pra comprar um cartão novo.

- Não vendemos. Mas temos uma camiseta linda escrita "I Love Paris" na promoção.

Entrei em outra.

- Só temos miniaturas da Torre Eiffel. Quer?


Fui em uma terceira.

- Cartão telefônico? Não! Isso você só encontra em lojas de tabaco - riu, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
- E o senhor sabe onde tem uma?
- Não faço idéia.


Depois de caminhar longos minutos feito um beduíno no deserto, com o sol castigando a moleira, avistei no horizonte o que parecia uma miragem: uma loja de tabaco. Entrei. Logo na porta, um painel do cigarro Camel, com um camelo sorridente piscando com o canto do olho. Senti que era uma provocação, mas minha pressa me impediu de ter uma reação mais enérgica. Comprei o que precisava e saí. Então me lembrei que precisava voltar pra aquele orelhão que ficou umas 20 linhas aí pra trás, e que eu não fazia mais idéia de onde ficava.

Deu vontade de sentar na calçada e chorar. Mas segui adiante na minha missão, pedindo ajuda ao inexplicável. Eis que ela aparece: virei a esquina e dei de cara com uma cabine de telefone. Entrei, liguei, marquei um novo ponto de encontro. Dessa vez consegui chegar, suado, cansado, quase duas horas atrasado e de péssimo humor.

- Nossa. Que cara é essa? Precisa de alguma coisa?
- De uma cerveja... E um celular.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Pinga ni mim


Um dia desses apareceu uma goteira na cozinha de casa. Era na parede, no alto, em cima de um armário. Provavelmente uma infiltração vindo do apartamento do vizinho de cima.

Quando morava no Rio aconteceu uma situação semelhante. E o meu banheiro ficou inundado. Apesar da lentidão e da falta de boa vontade do habitante do andar superior, a situação se resolveu com alguns telefonemas. Eu liguei pra ele, que chamou a imobiliária. Alguns dias depois o Seu Luís, um simpático pedreiro e pintor da Tijuca, estava lá consertando tudo. Foi simples, como deve ser.

Aqui na França a coisa tomou uma outra proporção.

Assim que vi a goteira, liguei pro vizinho, que não atendeu. Deixei recado. Como o cara já tem um histórico de causador de problemas no prédio, todo mundo tem o telefone dos pais dele. Liguei lá também, outra vez sem sucesso. Então me restou chamar os bombeiros, antes que minha casa virasse uma extensão do Rio Sena.

- Vamos passar aí amanhã de manhã.
- Merci.


Na dia seguinte, batem à porta. Três bombeiros entram. Não eram hidráulicos, mas os de salvamento. Eu achei exagerado. Mas como não sou daqui, não disse nada a respeito.

- É aquela goteira ali?
Enquanto um deles apontava, os outros dois faziam cara de preocupados, segurando o queixo.
- Sim.
- Sai água fria ou quente?


Sei lá a temperatura da água que sai da goteira. Não costumo ficar embaixo, esperando pingar.

- Acho que é fria.
- O vizinho está aí?
- Não.
- Vamos ter que entrar na casa dele pela janela.
- Hein?
- Você não quer parar a infiltração?
- Bem, quero...


Dito isso, saíram em fila indiana. Pouco depois, voltaram. Agora eram seis, e carregavam capacetes, cordas, lanternas e uma escada que se acoplava à varanda, pelo lado de fora do prédio. A SWAT francesa.

Montaram uma operação de guerra. Um segurava a escada. Outro subia. E um terceiro gritava ordens pela sacada. O restante contemplava o fio d'água que escorria desafiador. Logo veio a sentença, com voz soturna.

- O registro dele estava fechado. A infiltração parece vir pela tubulação comum do prédio. Não há nada que possamos fazer. Você vai ter que chamar um bombeiro hidráulico. Sentimos muito.


Os seis saíram, um atrás do outro. Dois minutos depois, batem à porta. Eram eles de novo, agora acompanhados por três policiais. Estavam se multiplicando como gremlins. Fiquei pensando no que podiam fazer. Interrogar a goteira? "Desde quando você começou a perturbar esse pessoal, hein? Por que não vai pingar em outro lugar? Circulando, circulando!".

Entraram, anotaram algumas coisas e pegaram nossos dados. Enquanto um escrevia, os oito restantes ollhavam pra parede. Tinha tanta gente admirando os pingos que tombavam, como se fosse uma instalação, que se eu abrisse umas cervejas pareceria um vernissage.

Aquela mísera goteira já tinha mobilizado metade da defesa pública de Paris e ninguém foi capaz de dar cabo. Restou chamar os bombeiros hidráulicos. Chegaram com seus cintos de utilidades equipados de machado, martelo, alicates e dezenas de outros apetrechos, tipo batman, e foram decididos ao banheiro. Olharam pra cima, pra baixo, atrás do vaso, embaixo da banheira, desmontaram a estante, examinaram os canos e deram o veredicto.

- Não dá pra fazer nada agora. Só verificando os canos do apartamento de cima. A única solução é esperar o morador de lá chegar.


Vejam que situação: agora tenho que torcer para o vizinho voltar. O mesmo que eu desejei que sumisse.

Só por via das dúvidas eu tô contando minhas economias. Acho que vai ser mais fácil pagar uma passagem pro Seu Luís da Tijuca vir aqui resolver isso.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

O pão nosso de cada dia


Em 4 meses de Paris já deu pra desmistificar algumas histórias que escutei antes de vir pra cá. Uma delas é sobre o humor dos franceses, supostamente grossos e antipáticos. Eu não tenho queixas quanto a isso. Sou sempre bem tratado e bem recebido onde quer que vá.

Até mesmo em lojas, ao tentar explicar com mímica orangotânica alguma coisa para a qual não tenho as palavras necessárias, sou ajudado com paciência pelos vendedores.

Mas é claro que existem as exceções pra confirmar a regra.

Saindo tarde do cinema, nada pra comer em casa, passei em frente a uma padaria, última baguette exposta. Quis me certificar de que não era velha.

- Bonsoir madame.
- Bonsoir monsieur.
- Essa baguette é de hoje?


A pergunta banal mudou a cara da até então simpática senhora. Ali descobri que se tem uma coisa na França com a qual não se pode mexer é o pão.

- Não senhor. A gente nunca vende pão de hoje. Esse deve ter uns 3 dias que tá aí. Quer assim mesmo?
- Embrulha, vai.


Na hora fiquei meio irritado com a grosseria. Mas o pão era bom e voltei lá uns dias depois. Tinha um outro cara no balcão e o lugar tava bem cheio. Chegou a minha vez.

- Bonjour.
- Une baguette, s'il vous plaît.
- Voilà. Mais alguma coisa?

Eu nem ia falar nada, mas ele abriu o espaço.

- Só uma pergunta: ela foi feita hoje?

O sujeito respondeu calmamente, sem olhar na minha cara.

- Monsieur, o nosso pão nunca é fresco. Olha pra essa fila. Todos vêm aqui porque ele é o pior da região.


Olhei pra fila. Alguns riam. Outros, sérios, observavam-me fixamente.

- Quero duas.


A coisa virou um desafio. Quando via algum atendente novo, entrava e fazia a mesma pergunta. E as respostas eram tão inconvenientes quanto a minha questão. Mas sempre criativas, devo confessar.

- Senhor, eu não compraria esse pão. Tá aí há 15 dias.
- De hoje? Tá brincando?
- Baguette nova é na padaria ao lado. Aqui só tem velharia.
- Claro que não. Nosso patrão proibiu de fazer pão todo dia.


Uma vez reconheci uma funcionária que já tinha visto antes.

- Bonsoir!
- Queria uma baguette, por favor. Ela é de hoje, né?
- Que tipo de pergunta é essa? Todo mundo sabe que nossas baguettes são da Idade da Pedra.
- Então me dá uma.

Ela me entregou o pão com uma cara tão cínica quanto a minha. Cheguei em casa e passei uma boa camada de manteiga. No que mordi com vontade, um 'croc' estranho, uma baita dor no dente e uma pequena pedra na minha boca. Eu acredito que foi azar, mas nessa hora juro que meu 6º sentido me dizia fortemente que naquela padaria alguém comemorava.

Depois disso ainda passei pela porta mais algumas vezes. Mas, olha, já faz um tempo que não entro ali...