quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Alô, Hugo


- Alô?
- Alô.
- Quem fala?
- Mais fácil você dizer pra quem ligou.
- É o Hugo, mexicano?
- Não. É o Daniel, brasileiro.
- Brasileiro?
- Sim, do Brasil.
- Não é o mexicano?
- Não, esse vem do México, por acaso.
- Mas você fala espanhol?
- Não.
- Claro, claro. Que estúpida eu sou. Você fala brasileiro, né?
- Também não.
- E você fala o quê, afinal?
- Português.
- Como em Portugal?
- Vejo que a senhora pega as coisas rápido.
- Tem certeza de que não é brasileiro?
- Até onde eu sei é português mesmo.
- Português?
- Sim.
- Ah, Hugo, você quase me enganou dessa vez. Quase mesmo.
- Acho que a senhora está realmente se confundindo.
- Deixa de bobagem. Reconheço esse seu sotaque mexicano em qualquer lugar. Jacques, Jacques, escuta aqui a nova do Hugo...

- Alô?
- Alô.
- Hugo?
- Daniel.
- Daniel? Essa é boa. Há quanto tempo, Hugo!
- É. Parece que nunca nos falamos.
- Hugo, a sua capacidade de imitar sotaques me impressiona.
- Tem coisa nessa conversa que me impressiona bem mais.
- Incrível. Quase chego a acreditar que você consegue falar brasileiro.
- Português.
- Espera aí que eu vou te passar pra alguém que quer muito ouvir sua voz. Marie, corre, é o Hugo no telefone.

- Alô?
- Alô.
- Hugo?
- Eu mesmo.
- Tudo bem?
- Indo.
- E essa história de Brasil, hein?
- A gente tem que inovar.
- Então fala um pouco de brasileiro pra eu ouvir.
- "Caipirinha?"
- Nem está tão bom assim.
- Não?
- Eu vi o Julio Iglesias na TV. Ele puxa mais o "r".
- Mas o Julio Iglesias não é brasileiro.
- Hugo, você precisa se informar melhor. Tenho certeza que você vai falar brasileiro perfeitamente se escutar os discos do Julio Iglesias.
- Deixa os discos pra lá.
- Bom, Hugo, a família toda te abraça e deseja um feliz ano novo.
- Em espanhol a gente diz "feliz año nuevo".
- E em brasileiro?
- Não faço idéia.
- Viu? Precisa estudar mais.
- Eu vou, juro.
- Beijos.
- Beijos. E muchas gracias.
- Esse Hugo...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Brico-o-quê?


Existem palavras em francês que não têm equivalência em português. Algumas até estão presentes nos dicionários, mas com a ressalva de serem galicismos. Ou seja, termos franceses tomados de empréstimo por outra língua.

Uma delas é "mijoter". Ao contrário do que possa parecer, significa cozinhar lentamente em fogo baixo, com a panela tampada. Não dá pra empregá-la sem o risco de um mal entendido.

- Filho, coloca o frango pra mijoter.
- Mas ele vai fazer a maior lambança na cozinha, mãe.


"Breveter" também não tem correspondente na flor do Lácio. Quer dizer obter o brevê, o diploma de vôo. É uma palavra das mais inúteis, a não ser que você tenha um amigo que está se formando piloto de avião. O que, convenhamos, não é uma situação muito comum.

- Você sabia que o Antônio brevetou?
- Coitado... Foi de repente ou tava doente?


Mas a que tem me causado problemas é "bricoleur". Bricoleur é o cidadão que curte fazer pequenos reparos e trabalhos caseiros, como consertar a pia que está vazando, montar o armário comprado na Ikea ou lixar e pintar as paredes da sala. Os franceses gostam tanto disso que existem lojas e lojas só com produtos de bricolage.

Um dia um sujeito veio reparar as placas elétricas da cozinha, que substituem o fogão.

- Olha, ela não funciona mais. O senhor vai precisar passar na loja, pegar uma placa nova, tirar o plástico, desligar a eletricidade, colocar o fio verde no outro verde, o azul no azul, o vermelho no vermelho, passar fita em volta, religar a eletricidade, girar o primeiro botão, esperar um minuto, desligar tudo e, só depois, usar.
- Como?
- Ah, mas antes precisa serrar aqui, pregar um pedaço de madeira ali e meter um adesivo naquele cantinho.
- Hein?
- Fácil, né? Ainda mais se o senhor for um bricoleur.


Eu não sou um bricoleur. E nesse dia eu tive certeza disso. Só de escutá-lo passando a lista de tarefas a cumprir me deu vontade de ligar pro Seu Luís, o faz-tudo que me salvou umas vezes quando morei no Rio. Mas como qualquer serviço na França custa quase o valor da dívida externa brasileira, eu mesmo tive que encarar a parada. Encarei.

Uns meses depois, pintou uma nova bricolagem: precisei trocar o silicone que impermeabilizava o rejunte da banheira. Adiei a tarefa o tanto quanto pude, mas um dia não deu mais. Então peguei a caixa de ferramentas, coloquei uma roupa velha e, sentindo-me um Mario Bros, encarei a missão. "É simples", eu repetia o tempo todo para mim mesmo, tentando acreditar. Só precisava tirar o silicone antigo, raspar, botar fita crepe delimitando o espaço, colocar o novo e deixar secar 12 horas.

Com meu apurado senso lógico, decidi preparar logo o material, pra ter tudo em mãos quando precisasse. Fui encaixar o tubo de silicone na pistola apropriada. Movimento falso, o bicho escorrega e arranca um naco da pele da minha mão. Sangue por todo lado. Procurei esparadrapo, mas não achei. Então tive a brilhante idéia de colocar um pedaço da fita crepe pra estancar o ferimento.

Dedo meio imóvel, percebi que não tinha a ferramenta certa para tirar o silicone velho. E nem sei se ela existe. O instrumento mais próximo era um estilete. Quanto mais forçava, mais pedaços da lâmina voavam, fazendo uma lambança geral.

Mas pelo menos agora restava só colocar o novo, que já estava enfim na pistola. Apertei uma vez. Nada. Apertei de novo. Nada ainda. Apertei com muita força. E como uma represa que arrebenta, o treco explodiu e caiu em todo lugar, incluindo minhas roupas, a banheira, as paredes e a fita crepe que envolvia meu machucado. E ainda fez uma gosma com os pedaços de lâmina que tinham voado. Coletei o que dava pra salvar e apliquei no lugar certo.

Passei mais tempo limpando o caos do que fazendo o conserto. No fim, sonhava com um banho. E só então lembrei que tinha que esperar 12 horas pra tudo ficar seco. Apelei pra pia, pois precisava urgentemente tirar aquela meleca toda de cima de mim. Comecei pelo curativo improvisado, meio sólido com todo o silicone que caiu. Tentei tirar devagar, mas doía. Então puxei de uma vez. Urrei de dor e de raiva e jurei nunca mais me meter nesses assuntos.

À noite:

- Ficou ótimo! Você é realmente um bricoleur de primeira.
- Essa palavra, a partir de hoje, está proibida nessa casa.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Jingle bells


Natal é Natal em qualquer lugar, não é mesmo? Lojas infernalmente cheias, ruas lindamente iluminadas, preços lá em cima e o espírito capitalista a todo vapor. Tá certo que Papai Noel vem vestido de vermelho, evocando na cor o ideal comunista, mas vale lembrar que foi a Coca-Cola que criou esse personagem do bom velhinho como o conhecemos hoje.

Enfim, tem essas coisas que são comuns aos natais do mundo todo. Não importa se você está em Brasília, em Caracas, em Tóquio ou em Paris. Por isso, apesar da beleza do Champs-Élysées cheio de luzes e do frio que já bate forte, remetendo aos filmes natalinos, a melhor surpresa não é o que encontrei na França. É o que não encontrei.

Falo dele, que nessa época está presente na quase totalidade dos lares. Que ocupa um papel de destaque nas mesas das famílias brasileiras. Que dá as caras em todos os intervalos comerciais da TV. Dele, que é onipresente, e cuja existência eu não consigo compreender.

Falo do panettone, claro.

Nessa época do ano, o panettone prolifera no Brasil na mesma velocidade que o vírus da gripe multiplica-se na França. Mas creio piamente que o segundo é menos nocivo. A gripe vem sem avisar e te deixa de cama uma semana, mas um dia vai embora. E você fica mais forte depois.

O panettone você compra. Você paga por um pão sem graça recheado de frutas cristalizadas. E há poucas coisas no mundo mais inviáveis do que frutas cristalizadas. Pickles, talvez. E o pior é que o panettone não vai embora depois. Fica lá um ano, se deixarem. Eu nunca vi um ser inteiramente devorado. Normalmente alguém diz: "olha que delícia, um panettone". E tira um naco nababesco. Uma semana depois você encontra o prato do mesmo cidadão com a fatia quase inteira, abandonado embaixo do sofá ou atrás da estante. E o resto da iguaria - se é que podemos aplicar essa palavra ao caso - permanece imóvel, tal qual a Vênus de Milo. E como ela, assim deveria ficar para sempre, de preferência restrita aos museus.

Um dos traumas da minha infância aconteceu em uma véspera de Natal, quando estava com a minha avó em um shopping. Não bastasse aquela ambiência de formigueiro, ela inventou de fazer compras no supermercado. Aí saímos trombando com milhares de desesperados que tinham deixado pra procurar presentes na última hora, enquanto carregávamos sacolas cheias de... panettones. Tinha os clássicos, com as temidas frutas cristalizadas; os de chocolate, para enganar as crianças; e provavelmente uma versão gremlin - porque o panettone, assim como o vírus da gripe, agora é mutante - com doce de leite, goiabada ou outra aberração qualquer.

Pra não dizer que não tem panettone por aqui, ontem eu vi um. Estava num cantinho do supermercado, perto dos venenos contra baratas e dos sprays que destroem a camada de ozônio. A coisa boa de se estar na França é que aqui eles não brincam com comida.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Pain dur


- Quanto custa?
- Quinze.
- E pra mim?
- Quinze.
- Mas eu compro sempre aqui.
- Então você deveria saber que custa quinze.
- Sim, eu sei.
- Alors...
- Você poderia fazer um desconto.
- O preço tá ali, na placa.
- Com uma placa desse tamanho dá pra ver bem o preço.
- Você quer ou não quer?
- Querer eu quero. Mas acho que você precisa cativar os clientes.
- Eu posso contar uma piada.
- Olha lá, o carinha do lado vende por doze.
- Compra dele.
- Não é tão bom.
- Ah... Agora você entende porque cobro quinze.
- E se eu levar duas de uma vez?
- Aí sai por trinta.
- Tá difícil.
- Não, tá fácil. Duas vezes quinze dá trinta.
- Mas não pode ser tão exato assim.
- Eu tenho calculadora. Quer conferir?
- Eu sei quanto dá duas vezes quinze. A questão não é essa.
- E qual é?
- É a pechincha.
- É o quê?
- Essa coisa de negociar preço. É meio esporte nacional no Brasil.
- Pois na França não.
- Tenho um amigo que é capaz de pedir desconto em ônibus.
- C'est vrai?
- Ele pechincha tudo e junta as economias em um porquinho. Quando está cheio, quebra e pega o dinheiro.
- E o que faz depois?
- Compra outro porquinho.
- Vocês são estranhos.
- Bem, vou indo.
- Não vai levar?
- Hoje não.
- Tá bom, pega aqui a sua maçã, por conta da casa. Não vamos brigar por quinze centavos.
- De graça?
- De graça.
- Mas eu preciso de duas. Faz desconto na segunda?