sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O Barão Vermelho


Assim como o camembert, o escargot e o "uh la la", o bar de vinho é uma especialidade francesa. E calhou de aqui perto de casa ter um ótimo, chamado Le Baron Rouge, que em português significa "O Barão Vermelho".

Ao contrário do La Liberté, freqüentado em grande parte por tipos que você pensaria três vezes antes de apresentar à família, o público do Le Baron Rouge é basicamente composto pelo francês como o imaginamos no Brasil: bem vestido, cabelo impecavelmente cortado e um ar meio blasé, sorvendo pequenos goles de vinho tinto.

Aqui essa categoria é conhecida como "les bourgeois bohèmes", os burgueses boêmios, ou yuppies. E eles recebem o apelido de "bobos" (bobôs, à francesa). O trocadilho é por sua conta. Não me comprometa.

O lugar aparentemente tem três donos: um barbudo, que cultiva uma pelugem que o credenciaria imediatamente a entrar no ZZ Top; um grisalho de rabo de cavalo, com toda pinta de que acabou de chegar de Woodstock, a pé; e um mais barrigudo, que prefere manter sua proeminência externa do abdome escondida atrás do balcão.

Cada um deles tem seu papel específico. O da barba é simpático. Pelo menos dá pra ver um esboço de um sorriso no meio daquele mar de pêlos. Se quer algo, peça a ele. Já o grisalho tem um mau humor inabalável. Tente perguntar qualquer coisa, pra você ver.

- Boa noite!
- Hã...
- O senhor pode me aconselhar um vinho?
- Não.
- Por quê?
- Não dá pra decidir tudo por você. Imagina se sou eu que vou escolher a mulher com quem você vai casar.

O terceiro dono, o da barriga, é o responsável pelo "momento terror" diário: o toque do sino. Às 21h45, pontualmente, ele faz soar o apetrecho, um sino de verdade, que avisa o fechamento do bar. Não que as pessoas fiquem traumatizadas de ir embora, mas o sujeito toca o acessório e grita "último copo!" com tanta força que eu já vi gente se assustar ao ponto de quase engolir a taça. É o único momento possível de ver o seu companheiro mal humorado demonstrar uma pontinha de felicidade. Uma pontinha.

Uma das peculiaridades do Baron Rouge é o horário de funcionamento. Além de fechar quando a maioria dos botecos começa a encher, o momento mais repleto, acreditem, é domingo de manhã, por volta das 11h. É quando o Marché d'Aligre, ao lado, está pegando fogo. Os "bobos" que acordaram a tempo quase se acotovelam entre os tonéis para comer ostras frescas e molhar a goela com vinho branco.

Num desses domingos eu fui. Lugar lotado, tentei abrir caminho, as mãos ocupadas com 2 pratos cheios de ostras, que precisei levantar acima da cabeça. "Pardon" pra cá, "pardon" pra lá, consegui chegar ao fundo do bar, onde ficam as raras e disputadas mesas. Segundo renomados estudiosos etílicos, a probabilidade de conseguir uma vazia ali é de cinco a sete vezes menor do que acertar na mega sena acumulada.

Mas era meu dia de sorte, pois um grupo saía exatamente no momento em que cheguei. Claro que preferia ter ganho na mega sena, mas naquele momento, com o caldo das ostras já escorrendo pelo meu braço, uma mesa caía bem. Tão bem que um casal de italianos sentou-se ao mesmo tempo. Como poderiam ser parentes distantes, e pelo fato de terem vencido a França na final da Copa do Mundo, concordei que apertando um pouquinho dava pra dividir.

Papo vai, papo vem, a conversa é interrompida por um estrondo, vindo da entrada de ar próxima ao teto. É um buraco redondo na parede, com um circulador de ar embutido. Penas começam a voar pelo ambiente, denunciando que uma pobre pomba resolveu bater asas no lugar errado.

Uns ficaram enojados, outros riam, mas o grisalho ranzinza soltou naturalmente um comentário inapropriado, e por isso mesmo perfeito, evocando o piloto alemão e herói da 1ª Guerra Mundial, que dá nome ao bar.

- Bem feito. Foi abatida. Isso é que dá inventar de voar ao lado do Barão Vermelho.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

La vie à Paris

Mudar de país significa mudar de hábitos, muitas vezes sem a gente se dar conta. Fiquei meio chocado quando me peguei comendo um croque-monsieur, nosso singelo e básico misto-quente, de garfo e faca. E o pior: como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Aí percebi que tenho soltado impunemente várias palavras e frases que aqui fazem todo sentido, mas no Brasil soariam meio esquisitas. Fiz uma lista de algumas delas.


. Hoje nem tá tão frio assim. (Ao sair de casa com apenas 2 casacos, ao invés dos 3 ou 4 habituais)

. 35 metros quadrados? Você vive numa mansão? (Espantado com o tamanho da casa do amigo felizardo, que mora em um quarto e sala)

. Hoje vai ter um aperô lá em casa. (Convidando para um aperitivo, que é um jantar sem ser um jantar)

. Garçom, esse vinho está bouchonné. (Eu não sabia que vinho estragava, confesso. Agora "bouchonné" é uma palavra do dia-a-dia, tipo leite).

. Tem um bar baratinho lá perto de casa. O chope só custa o equivalente a 8 reais.

. Não, de boi mesmo. (Respondendo ao açougueiro, que pergunta se eu quero carne moída de cavalo)

. Amanhã vai ter um aperô na casa da Léa.

. É fácil: você pega a 8, troca pela 6 e depois pela 13. Ou então pega a 2, a 11 e a 4. (Tem 14 linhas e 386 estações de metrô em Paris, mas todo mundo conhece a melhor rota para cada destino. Ou diz que conhece.)

. Buf! (Quando acha ruim, o parisiense bufa)

. Merde! (Quando acha ruim, o parisiense diz "merde")

. Putain! (Quando acha ruim, o parisiense diz "putain")

. Génial! (Quando não acha ruim, o parisiense acha tudo "génial")

. Sábado tem um aperô na casa do Jacques.

. Eu prefiro na manteiga. E você? (Conversando com um amigo sobre como ele gostava de comer escargot)

. É português. (Só pra lembrar que não falamos brasileiro)

. O que é aquele objeto estranho, amarelo, ali no horizonte? (Ao apontar o sol)

. Não, uma caipirinha feita com 51 não vale 25 reais.

. Tudo isso por causa do meu pequeno atraso de 2 horas?

. A Marie perguntou se a gente está livre na 3a feira. Ela quer fazer um aperô.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Lembranças parisienses


Sentado em um banco da Place des Vosges, um frio dia de inverno, um octogenário vê o tempo passar, como vem fazendo diariamente na última década. Seu silêncio é interrompido pela chegada de um outro senhor, da mesma idade.

- Lembra de mim?

Sem se desviar completamente da leitura do jornal, levanta um olho e tenta buscar em uma gaveta empoeirada da memória qualquer
registro que se assemelhe àquela figura esguia. Em vão.

- Acho que não, pardon.
- Da turma de remo de 1947!
- Eu jamais remei em toda a minha longa vida.
- Não era você o timoneiro da nossa equipe imbatível da Sorbonne? Aquela que, no pós-guerra, foi apelidada de "Explosivos do Remo".
- Lamento, mas acho que você está me confundindo.
- Zut, alors! Jurei que era você. Posso sentar ao seu lado?
- O banco é público.
- Já sei!
- Que ele é público?
- Não. Já sei de onde te conheço. Do Les Deux Magots, nos anos 50, o bar que Sartre freqüentava. Todo mundo ia lá.
- Nunca fui. Não tinha paciência pra Sartre.
- Será então que é das manifestações de maio de 68?
- Talvez.
- Sim, sim, agora vejo claramente a cena: a gente com os estudantes, atirando pedras naqueles policiais idiotas.
- Eu estava lá, mas era um desses policiais idiotas.
- Pardon.
- C'est pas grave.
- Lembrei! Nos anos 70 você era o dono daquela loja de discos na Rue de Rivoli, especializada em rock progressivo. Comprei toda a coleção do Yes lá.
- Eu passei a maior parte dos anos 70 desempregado e não tinha dinheiro nem pra um disco.
- Então não foi com você que eu tomei aqueles ácidos escutando Pink Floyd?
- A coisa mais forte que tomei na vida foi uma bronca da minha mulher.
- Pauvre homme!
- Olha, acho que não nos conhecemos mesmo.
- Não pode ser. Você é tão familiar pra mim. Será que é da TV?
- Não.
- De alguma revista de fofoca?
- Não.
- Dos tabuleiros de dama aos domingos, no Jardim de Luxemburgo?
- Também não.
- Então você é um político famoso, é isso?
- Minha única relação com política é uma camiseta da campanha do Jacques Chirac, que uso pra dormir.
- Mas você não é o Gregoire, a quem chamávamos de o aventureiro?
- Não, não. Meu nome é Pierre, e meu apelido sempre foi soneca.
- Sinto muito, Pierre. Desculpe te incomodar.
- Não tem problema.
- Até logo.
- Ei, ei!
- Diga, Pierre.
- Sabe, pode me chamar de Gregoire. Não quer voltar amanhã e contar um pouco mais dessa nossa vida aí?

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Procura-se pão francês

- Três pães, s'il vous plaît.
- Qual?
- Pão francês. Queria três, bem assados.
- Pão francês?
- Não tem?
- Aqui na França, tecnicamente falando, todos os pães são franceses.
- É aquele pãozinho pequeno assim, ó.
- O croissant?
- Não, não. É um que parece um zepelin, sabe?
- Baguete?
- Não, a baguete parece mais um submarino, e é grande. Esse é como uma baguete que encolheu.
- Voilà! É a mini-baguete.
- Menor ainda.
. É a mini-baguete cortada ao meio?
- Mas aí continua sendo uma mini-baguete, só que cortada ao meio.
- Tem razão.
- Imagina que a baguete é o pai.
- Tô imaginando.
- O pão francês é o filho gordinho.
- Nunca ouvi falar.
- É o pão do dia-a-dia no Brasil.
- E vocês o chamam de pão francês?
- Sim.
- Olha, acho que ele não existe na França.
- Quer dizer que temos sido enganados esse tempo todo?
- Lamento te revelar isso assim, de supetão.
- Estou chocado.
- Ainda temos a baguete. Quer?
- Vai, me dá uma.
- Qual? Normal, tradicional, integral, com cereais?
- Mas é difícil comprar pão por aqui, hein?
- O que você queria? Estamos na França. Temos dezenas de pães diferentes.
- Só não tem o pão francês.
- Esse não.
- Me dá uma baguete com cereais, então.
- Aqui está.
- Pode embrulhar?
- Hã?
- Colocar num saco.
- Aqui não...
- Já sei, não tem saco pro pão também.
- Isso.
- Vai me dizer que tenho que levá-lo debaixo do braço?
- Exatamente.
- Olha, mudei de idéia. Dá pra sair um misto-quente?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

O garçom de Marseille


O Mendes adora maltratar garçons. Se eu acreditasse no inferno, apostaria que ele iria pra lá numa via expressa, sem direito a estágio no purgatório. Não que faça atrocidades físicas, mas aluga os atendentes de tal maneira que já senti vontade de enfiar sua cabeça numa panela de feijoada. É sempre constrangedor.

- Seu chope, senhor.
- Pedi suco.

- Pronto! Seu suco.
- Tá muito doce.

- Aqui o novo suco.
- Traz açúcar?


A única vez que tive saudades do Mendes durante uma refeição foi num feriado em Marseille, maior frio e só um restaurante aberto.

- Bonjour.
- Mesa pra quantos?
- Cinco.
- Aqui.
- É perto da porta, tem corrente de ar.
- Você não vai ficar doente não.
- Já tô um pouco.
- Não devia ter saído de casa.
- Agora é tarde.
- Muito.
- E esse vento vai esfriar a comida.
- É raro ela vir quente.
- Bom, nós vamos sentar ali no outro canto.
- Eu não tenho nada a ver com isso.


Eu nunca tinha visto um garçom páreo para o Mendes, mas esse tinha talento. Transformava o ato de atender numa coisa tão desagradável que beirava a arte. Tive vontade de ir embora, mas fiquei muito mais para apreciar o espetáculo do que simplesmente para comer.

- Escolheram?
- O que você indica?
- Indico uma olhada no cardápio. Tá cheio de coisa ali.
- E como está o peixe hoje?
- Morto.
- Isso é um alívio.
- Ô.
- Mas ele é bom?
- Eu não como.
- Hã?
- Não como peixe nem forçado.
- E a pizza?
- Pizza no almoço?
- Tem quem goste no café da manhã.
- Não na Itália.
- Aqui é a França.
- A Itália é ao lado.
- Traz só um vinho tinto por enquanto.


Saiu, demorou um século e voltou com o vinho. Não serviu os copos, claro. Deixou a garrafa, deu as costas e foi ser desagradável na mesa ao lado. Quando nos ouviu chamá-lo, virou devagar, com a cara mais impaciente, como se ele é que estivesse sendo servido. Mal servido.

- Garçom!
- Hã.
- Acho que esse vinho virou vinagre.
- Acha?
- Prova.
- Nem.
- Gostaríamos de trocá-lo.
- Eu troco, sapateio e até canto pra vocês. Só não me peça pra beber vinho tinto.


A comida do lugar era melhor do que o atendimento, o que realmente não era muito difícil. Acabamos e pedimos a conta. Nessa hora ele se esforçou para ser mais simpático, talvez visando a gorjeta. Mas carisma não era sua praia mesmo, e o máximo que ele conseguiu foi soltar umas frases secas, que saíam pelos cantos do sorriso pálido.

- Como foi?
- Uma experiência. Tenho um amigo que vai adorar o lugar.
- Bom pra ele.


No mesmo dia mandei um e-mail pro Mendes, que prontamente respondeu, animadíssimo, prometendo para ainda esse ano uma visita a Marseille. A conta, já disse, é minha.