sexta-feira, 28 de março de 2008

Tempestade de palavras

Começo de dor de cabeça, saí para dar uma volta e pegar um pouco de ar, na esperança de melhorar sem precisar de remédio. Comprei o Libération e andei até o Marché d'Aligre. No caminho, pela primeira vez na vida, vi neve caindo. Tal qual um abobado, em pé e de boca aberta, fiquei observando os flocos que desciam suavemente do céu.

O bucolismo da cena foi interrompido por um grito agudo, que me gelou os ossos muito mais do que o frio que fazia.

- Daniel! Daniel! Danieeeeeel!!!

Era a Edith que me chamava. Num ato reflexo, cobri meu rosto com o jornal, como se adiantasse alguma coisa. Mas ela já tinha me visto. A Edith é implacável. Se ela te vê, ela fala com você. E se ela fala com você, só ela fala.

- Tá fazendo o que aí, parado?

- Esperando a neve.

- Hein?

- Tá começando a nevar, olha. E eu nun...

- Sim, eu sabia que ia nevar. Sempre olho a meteorologia antes de sair de casa. E no Brasil? Quanto faz lá no inverno? Dez graus? Doze? Quinze? Na televisão a gente sempre vê todo mundo na praia, bronzeado. Você não sente saudade da praia? Eu tenho vontade de passar o carnaval no Rio. Minha amiga já foi. Você acha que eu preciso comprar uma fantasia? De quê? Não tem perigo de assalto? Eu tenho medo de assalto. Uma outra amiga foi roubada, no metrô de São Paulo. Aliás, vi no jornal que o metrô de lá afundou.

- O problema do met...

- O problema são os políticos, eu sei. Na época de eleição, vêm pedir votos. Depois, nem se lembram do que prometeram. É igual no Brasil, na França, na Rússia, na Eslováquia. E aí é buraco no metrô, buraco na rua, buraco até na camada de ozônio. Falando nisso, tava com um baita buraco no meu dente. Ontem fui ao dentista. Olha aqui, ó, como ficou bom. Dá pra comer normalmente, até pão. Menos o pão daquela padaria da esquina, claro, que é horrível, duro. Nunca vi fazer pão com tamanho desleixo, um desrespeito.

- Eu só compro pão na padar...

- Eu também! Fica um pouquinho mais longe, mas é gostoso. Como se diz em inglês, "no pain, no gain". Você fala inglês? Eu falo um pouco, aprendi com uma vizinha americana. É útil nesse mundo globalizado. Dá pra ler notícias de outros países pela internet. Sabia que outro dia eu tava navegando e dei em um site de receitas mexicanas? Tentei fazer tacos, mas errei o ponto. Acho que meu espanhol não é dos melhores. Vou tentar de novo depois. O difícil é conseguir aquela pimenta deles.

- Eu acho que você consegue se for ao sup...

- Já fui, não tinha. Mas tinha sabe o quê? Massa de pão-de-queijo. Eu adoro pão-de-queijo. Já te contei que minha avó era brasileira? Acho que já. Semana passada fui a um restaurante e pedi...

A essa altura a minha cabeça já explodia. A quantidade de informações recebidas era muito maior do que eu podia processar. Tenho a impressão de que a Edith, assim como os melhores saxofonistas, desenvolveu a técnica da respiração circular, que permite expirar o ar pela boca e inspirar pelo nariz, ao mesmo tempo. Isso dá a ela autonomia de umas três horas e meia de conversa, sem pausa.

Desliguei. Entrei no modo automático e passei apenas a balançar a cabeça, enquanto ela continuava.

- ...e me disse que só comprava orgânicos...

- ...Sarkozy e a mulher, hein? Eles foram...

- ...os da safra de 2001 são os melhores...

Eu estava encrencado ali. Não via como escapar. Mas a salvação caiu do céu, quando a neve fina virou chuva grossa. Era a desculpa que precisava pra dar no pé.

- Edith, preciso ir.

- Eu também. Com esse tempo a gente tem que ficar atento. Por isso eu sempre olho a meteorologia antes de...

Na volta, passei na farmácia e comprei logo dois remédios. Um contra gripe, pra aliviar os sintomas da tempestade pluviométrica. E um contra enxaqueca, pra aliviar os sintomas da tempestade de palavras. Mas as seqüelas dessa última me preocupavam bem mais.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Não tinha teto, não tinha nada


Ano passado, uma infiltração d'água estragou as pinturas da sala e da cozinha e reuniu metade da defesa pública de Paris no meu apartamento. Pouco tempo depois começou um vazamento na caixa de descarga e na pia do banheiro. Uma verdadeira crise aquática. Apesar dos apelos encharcados, só agora, 8 meses depois, o seguro autorizou a reparação dos problemas. Se as coisas demoram no Brasil, na França podem demorar, demorar, demorar muito mais.

Duas pessoas foram escaladas para o conserto. Luís, o sorridente pintor, se diz um refugiado político colombiano. Tem uns 20 e poucos anos, e está na França há 2. Previu 5 dias de trabalho pra raspar e pintar 25m2. Já Rollin, um simpático senhor francês, é bombeiro hidráulico há 43 anos. Enquanto o primeiro espalhou plásticos, latas e pincéis pela casa, o outro se fechou no banheiro. A dupla não inspirava muita confiança, e resolvi sair pra tomar um ar.

Quando voltei, Rollin falava no celular, que estava apoiado entre a cabeça e o ombro, enquanto tentava arrancar a pia na marra. E Luís tinha sacado um videogame PlayStation portátil. Achei que ele fosse sentar no chão e iniciar um jogo, e eu já estava até pensando em pedir pra ficar de próxima. Mas aí apertou uns botões e começou a sair música do aparelho.

- Es la música colombiana. ¿Te molestas?
- Vai fundo. Não incomoda nada.

A salsa comia a todo volume. No meio de vários "arriba", um "ai", mais alto. Achei que fizesse parte da canção, mas logo ele se repetiu, dessa vez fora do ritmo. A porta do banheiro se abre e Rollin escapa saltando, com o dedo na boca e cara de bebê-chorão. A cena, se não era patética, chegava muito perto disso.

- Merde! Cortei o dedo.
- Quer um band-aid?

- Oui, merci!


O trabalho havia acabado de começar, mas a primeira pausa já era necessária. Rollin, chupando o dedo, viu uma foto do Senegal na estante e perguntou se eu conhecia o país. Logo alternou uma tese sobre o lugar e o lamento pelo machucado.

- No interior, as pessoas dormem em casas de palha.

- Meu dedo...

- Tem muita pobreza lá.

- Ai, tá sangrando ainda.


30 minutos de histórias e "ai ai ai" depois, ele voltou ao trabalho. Aliás, ele e o Luís, que também parou o que fazia para participar do debate. Rollin acabou o último causo e se trancou no banheiro. Exatos 26 segundos depois, saiu pra atender o telefone. E voltou. E o telefone tocou. E ele saiu. E voltou de novo. E tocou de novo. E saiu de novo.

Indiferente ao vai-e-vem do bombeiro, Luís raspava a parede e se sacudia no compasso do som.

- ¿Conoces Maná? Es un grupo mexicano.
- Não, do méxico só conheço Café Tacuba.

-
¿Café Tacuba? Je les adore.
- Eu gosto também.
- Mas do que gosto mesmo é do carnaval brasileiro.
- Ah, legal. Já foi?
- Eu? Nunca.

Mais uma vez, Rollin abre a porta de supetão, tipo o Kramer, do Seinfeld. Levei um susto. "Agora vou precisar chamar a emergência", pensei. Mas ele só queria avisar que tinha terminado o trabalho.

- Acabei.
- Já?

- Troquei a pia.
- Ótimo.
- E também a caixa de descarga. Olha aqui: o botão menor solta água suficiente para pequenos problemas. E o maior para problemas mais sólidos, entende?

- O senhor não poderia ser mais claro.

Trabalho feito, um dos trapalhões foi embora. Luís, o outro, continuou na labuta um pouco mais. Mas não por muito tempo, pois Dedé sem Didi não faz sentido.

- Acabei por hoje. Já raspei toda a tinta velha e passei um impermeabilizante.
- Tá ok.

- Você vai ver como o trabalho vai ficar bom. A nova pintura vai durar 5 anos .

- 5 anos?

- Bom, entre 3 e 4 eu garanto.
- Como?

- Olha, tenho certeza absoluta que 2 anos ela segura, pois...

Interrompi o raciocício do sujeito. No passo que a coisa ia, era capaz de ele querer refazer mesmo antes de estar pronto.

- Obrigado. E até semana que vem.
- Semana que vem?
- Claro, pra acabar de pintar.
- Ah, é.

Agora já não sabia se ficava feliz, porque ele voltaria pra acabar o serviço. Ou se ficava triste, exatamente pelo mesmo motivo.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Roteiro de viagem

- Museu do Louvre.
- Ok.
- Catedral de Notre-Dame.
- Ok.
- Jardim de Luxemburgo.
- Ok.
- Sacré Coeur, em Montmartre.
- Ok.
- Bastilha.
- Ok.
- Arco do Triunfo.
- Ok.
- Les Invalides.
- Ok.
- Torre Eiffel.
- Essa não.
- Não?
- Não!
- Não quer visitar a Torre Eiffel?
- Quero não.
- Mas todo mundo que vai a Paris visita.
- Pois eu vou ser o primeiro a não ir.
- Por quê?
- Porque não quero. Ponto.
- Mas já tem mais de 100 anos que é um dos principais símbolos da cidade.
- Mais um motivo pra não ir. Vai que esse monte de arame despenca.
- Não vai cair. É um prodígio da engenharia da época.
- Pra mim é um monstro metálico. Sabia que os franceses não queriam que ela fosse erguida? Os artistas até fizeram manifestos contra sua construção.
- Mas agora ela está lá, e com um bando de artista em volta.
- Já não se fazem mais artistas como antigamente...
- Se quiser, você pode até subir.
- E esperar 3 horas na fila? Tá doido.
- Você não tem curiosidade de ver Paris de cima?
- Pra ver telhado eu vejo no Brasil.
- Ok, não precisamos subir. Mas passamos na frente.
- Pra quê?
- Se tiver sol, podemos fazer um pique-nique no Champs de Mars.
- Já disse que não vou. Você nunca ouviu aquela música que fala "você não vê a torre"?
- Mas você é chato, hein? A música é sobre a torre de Brasília.
- Pois se encaixa perfeitamente no caso.
- É sua última palavra?
- É.
- Bom, então a gente se encontra mais tarde, num café.
- Como assim?
- Eu vou.
- Vai?
- Claro que vou.
- Eu não.
- Já entendi.
- Mas, olha...
- Sim?
- Tá aqui minha câmera. Dá pra fazer umas duas ou três fotos pra mim?

sexta-feira, 7 de março de 2008

365 dias na França

Um balanço numérico do meu primeiro ano em domínios napoleônicos:

. 100 garrafas de vinho, em casa, em festas ou em bares
. 11 encontros - ocasionais - com a Edith, que tomaram cerca de 670 minutos do meu tempo
. 54 metros de baguete consumidos
. 70 aperôs. 72, talvez
. 1 vez barrado na entrada de uma festa
. 32 cervejas quentes
. 23 tentativas de pechincha no Marché d'Aligre, 3 funcionaram
. 8 croques monsieurs (o misto-quente), comidos com garfo e faca
. 30 m2 de casa
. 500 km de Vélib, 6 deles debaixo de uma puta chuva
. 12 vezes em que a temperatura ficou negativa
. -8ºC um dia
. 96 verificações da meteorologia antes de sair
. 4 pratos de feijão com arroz
. 8 vezes que comprei carne bovina
. 40 euros o quilo do filé mignon
. 47 queijos diferentes provados
. 375 "ben oui" ("é claro") escutados
. 1574 "ça va pas" ("assim não dá") escutados
. 4 meses embromando na língua
. 25 piadinhas ouvidas sobre o fato de a França sempre ganhar do Brasil no futebol
. 25 respostas "sou italiano também", só pra lembrá-los quem venceu a última Copa
. 25 respostas "a propósito, nós temos 5 títulos, e vocês?", para a mesma ocasião
. 1 cabeçada à Zidane, na boca do estômago de um pobre francês
. 3 jogos de rugby assistidos, não suficientes para me fazer compreender o porquê da existência desse esporte
. 3 idas à Ikea, que bastam para toda uma vida
. 7 idas à Torre Eiffel, mas só 1 subida, pois a fila demora 3 horas
. 2 festas como DJ, em barcos no Sena
. 1 maleta brasileiro, que me perturbou durante toda a primeira festa
. 67 atrasos em compromissos
. 50 textos nesse blog
. 1 deles censurado
. 6 meses esperando consertar a pintura da cozinha, estragada por um vazamento d'água
. 6 bombeiros e 3 policiais na minha casa para observar esse vazamento
. 2 meses acordando às 5 da manhã, graças ao despertador musical do vizinho, no último volume
. 6 números como editor da Brazuca
. 15 visitas de amigos
. 3 idas ao túmulo de Jim Morrison, no cemitério Père Lachaise
. 65 camisetas do The Doors vistas no mesmo cemitério
. 4 clones do Jim Morrison também
. 43 voltas para casa fedendo a cigarro dos outros
. 8 bricolagens, mais ou menos bem sucedidas
. 622 trocas de linha no metrô
. 21 "não, eu não sei sambar"
. 21 demonstrações de que não sabia mesmo
. 35 "ça suffit, ça suffit" ("basta, basta") escutados, nas mesmas ocasiões
. 365 dias em que tento, sem sucesso, fazer esse maldito biquinho