sexta-feira, 25 de abril de 2008

O jeitinho francês

- Ô, rapaz.
- ...
- Ô, rapaz.
- Eu?
- Você, claro.
- Em que posso ajudar?
- Simples, pode voltar lá pra trás. Caso não tenha percebido, aqui é o começo da fila, não o final.
- Não é o final?
- Só se agora todo mundo estiver andando de costas.
- Sabe que eu nem tinha notado?
- Ainda bem que eu tô aqui pra te avisar.
- Merci.
- Bom, e agora que tal ir lá pro fim?
- Comment?
- Lá pro rabo da fila, o outro extremo, o lugar de quem chega atrasado.
- Mas olha o tamanho.
- Tô vendo.
- Eu preciso pegar um bom lugar no cinema, sou míope.
- Coloca óculos.
- Não tenho.
- Viesse mais cedo.
- Não deu, tava num aperô na casa de um amigo. Quando cheguei já nem tinha nem mais ingresso.
- E como fez?
- Comprei outro qualquer. Eles nunca olham mesmo.
- Você devia ter vergonha de me contar isso.
- Você é que devia compreender.
- Eu compreendo que o seu lugar não é aqui.
- Já tem tempo que quero ver esse filme.
- Mas estreou hoje.
- Pois é, quero vê-lo desde hoje de manhã.
- Você sobrevive a mais um dia sem assistí-lo.
- Não é a mesma coisa. Eu tenho um pacto com meus amigos: o primeiro a ver qualquer filme conta o final para os outros. E amanhã certamente algum deles já terá assistido a esse aqui.
- Qual é a graça?
- É justamente passar na frente dos outros. E deixá-los saber disso.
- Não dá pra negar, você tem um talento especial pra coisa.
- Então, posso ficar?
- Sem chance.
- Você não tem coração.
- Tenho pelas outras 300 pessoas que chegaram antes de você.
- É que eu adoro o Roman Duris.
- Roman Duris? Ele não está no filme.
- É claro que está. É o ator principal. Ele faz o playboy que fatura todas. Olha ali no cartaz o sorriso de satisfação do sujeito, entre as duas loiras.
- Aqui não é a sala 11, com o filme do Gérard Depardieu interpretando um jogador de pôquer, depressivo e semi-obeso?
- Não, é a 10, com o Duris feliz da vida.
- Merde!
- Fila errada?
- Completamente.
- Olha, a 11 é ali do lado, e já começou a entrar. Melhor se apressar.
- Já era, tá esgotado. E eu também não enxergo bem de longe.
- Fura, oras.
- Hein?
- Fura. Aproveita o buraco entre o careca e a gorda ruiva. Se enfia ali.
- Você acha?
- Confia em mim. Quando eu disser, você vai.
- Ok.
- Vai!
- ("Cara bacana, esse...")

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Calendário de inverno

- Tá frio, né?
- O pior já passou.
- Passou por onde?
- Passou, acabou, c'est fini. Agora é primavera.
- É primavera, mas não impede de ainda estar frio.
- Você nunca tá satisfeito. Quanto é verão, reclama do calor. Quando é inverno, reclama que está gelado.
- São os ares parisienses.
- Que fazem o frio?
- Não, que me fazem reclamar.
- Bom, ao menos terminou a estação.
- Demorou, né?
- Isso é verdade.
- Sabe, contei quantos dias dura o inverno aqui.
- Ué, são três meses, como em qualquer país.
- Três meses no calendário, mas o "fator friaca" varia de acordo com a região. Ou você acha que as pessoas vão pegar uma praia na Antártida quando é verão por lá?
- C'est vrai.
- Então, quer acompanhar meus cálculos?
- Diga.
- Estamos de acordo que o outono é frio?
- Estamos.
- Então some outono e inverno. São 180 dias de temperaturas gélidas.
- Ok, 180. Mas resta meio ano de calor.
- Nada disso. A primavera tá aí e todo mundo ainda sai de casaco. Acrescenta mais 45 dias.
- Continua.
- E quando tá nublado? Já viu cidade pra ter um tempo mais feio do que Paris?
- Às vezes é dose mesmo. Deve ser assim uns 3 meses por ano, né?
- Exatamente. Mais 90 dias.
- Já são 315.
- E aí uma manhã você acorda e tá um tremendo sol lá fora. Animado, desce de bermuda e havaianas, mas congela até o pâncreas ao sair do prédio.
- É horrível.
- Ô, se é.
- De que lado fica o pâncreas mesmo?
- Sei lá. Do lado de dentro.
- Tá, gênio, continua...
- Então, ano passado houve 26 desses falsos alarmes.
- E você congelou os 26?
- Não, só 25. No último já estava esperto.
- Acho que o inverno gelou foi o seu cérebro.
- Tá somando ou não tá?
- Tô. Até agora deu 341.
- E ainda não citei as tempestades de verão, comuns por aqui. Li no jornal que foram 22 em 2007.
- Fazendo os seus cálculos, são 363 dias de frio. Ainda sobram 2 de sol.
- O quê? Não sobra nada. Esqueceu que recentemente nevou duas vezes?
- Você é brilhante mesmo...
- Minha mãe também acha.
- No fim das contas, o que importa é que o verão está chegando.
- É verdade. Não agüentava mais.
- E quais são seus planos?
- Eu vou pro Brasil.
- Pro Brasil, pro inverno de lá? E vai fazer o quê?
- Como assim? Usar todos esses casacos que comprei, claro.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Protesto!

Francês adora uma manifestação e todas as suas derivações. Desde que uma delas deu certo e a Bastilha caiu, há duzentos e tantos anos, pegaram um grande gosto pela coisa. Todo dia tem uma em Paris, pelos motivos os mais diversos. Ontem mesmo esbarrei em uma passeata pelo direito dos cães. Não entendi bem o que significava, e parece que os donos dos bichos também não. Mas os cachorros, que obviamente marcavam presença, pareciam contentes, e babavam e latiam de felicidade.

Quando cheguei em casa, encucado com a situação, comecei a fazer uma lista de possíveis novas manifestações, organizações e movimentos, caso a inspiração dos parisienses acabe um dia. Compartilho-a com vocês:


. Movimento Mais Manteiga no Croissant (MMMCrô)

Nada mais triste do que comprar um croissant amanteigado e ele estar seco, duro e sem gosto. Se o nome diz "croissant na manteiga", então que venha realmente com o que promete.

Palavra de ordem: "Ô, Pierre, assim já não vai dar / Coloca mais manteiga ou o bicho vai pegar, uh la la"


. Aliança Pró Vinho Tinto nas Escolas (Bebe, bebê)

Todo francês um dia vai acabar bebendo vinho tinto, então melhor começar logo cedo. Chega de suco de laranja encaixotado! Chega de água com calcário! Vinho tinto para todos.

Palavra de ordem: "O vinho tinto / Por ele tenho apreço / Está sempre comigo / Começa já no berço"


. Bastiões do Mau Humor Francês (BoF!)

O mau humor é uma instituição francesa, como a Torre Eiffel e o biquinho. Não se pode mexer nisso. Essa coisa de rir à toa não pega muito bem por aqui. Antes que consigam transformar a França em um país de sorridentes, saiamos às ruas!

Palavra de ordem: não tem, pois as pessoas podem achar engraçado, e não é essa a intenção.


. Manifestação Contra o Direito de Usar Calça Capri (MaCaCa)

O verão na França é agradável, ainda mais depois de seis meses de frio. Mas tem uma coisa nessa estação que definitivamente não é legal: é só começar a esquentar e milhares de pessoas saem às ruas com suas calças capri, aquelas de pegar siri, que acabam no meio da canela. A calça capri é uma das mais execráveis peças de vestuário já inventadas, junto com a pochete e a camiseta regata. Lutar contra isso é mais que nosso direito, é nosso dever.

Palavra de ordem: "Ei, você de calça capri nesse horrível tom vermelho / Você não se enxerga ou quebrou o seu espelho?"


. Passeata dos Que Estão à Toa (Paquetô)

Tá em casa de bobeira? Deu aquele comichão para dar uma reclamadinha? Junte-se a eles. Não se preocupe com o motivo da manifestação, qualquer um vale. Importante: traga suas próprias bandeirolas, pois se a passeata é coletiva, os protestos são individuais.

Palavra de ordem: "Eu vim pra reclamar / Não vim pra fazer média / Se motivo me faltar / Acho um na enciclopédia"

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Oras, pombas!

Quando eu era criança eu gostava de pombos. Na minha inocência infantil, todo bicho que voava era passarinho, do pardal ao pterodáctilo dos livros de ciências. E não existe quem não goste de passarinho. Então foi fácil concluir, no auge da sabedoria dos 5 anos de idade, que pombo era legal.

Aí um dia eu descobri que existia pingüim. Segundo o André Dourado, companheiro de filosofias do 3º jardim, o pingüim era um passarinho que não voava. Diabos, como um passarinho não voava?

- E tem mais: avestruz também não voa.
- Coitado...

A questão mudou: tudo o que voava era passarinho?

- Claro que não, Daniel. Tem o avião.
- Não vale. É construído.
- E tem o morcego.
- Não vale também.
- Por quê?
- Porque ele vira o Drácula depois.
- Ai, deixa de ser burro!
- Burro é você. Eu vi num filme na televisão.
- Só existe um Drácula. Os outros morcegos viram vampiros.
- Ah...

Apesar desses novos fatos, os pombos continuavam inabaláveis: eram passarinhos e eram bacanas. E isso durou. Só comecei a achar que algo estava errado aos onze anos. Já muito mais sábio, fui levado pelo meu pai a um restaurante em Fortaleza, onde passávamos as férias.

- Vamos comer pombos.
- Pombos?
- É.
- Eu não sabia que se comia passarinho.
- Pombo não é passarinho. Além do mais, você não come galinha?
- Galinha é diferente. Já vem cortada e embalada.
- Você vai gostar de pombo.
- E por que então a gente não pega um desses da rua e faz em casa?
- Os da rua são sujos e cheios de doenças. Os do restaurantes são criados em viveiros, especialmente para serem comidos.

Nesse dia eu desconfiei que meu pai não sabia muito das coisas. Claro que pombo era passarinho, e pra mim era um choque comê-lo. Sentia-me um monstro. Se o Frajola tentava devorar o Piu-Piu desde muito antes de eu nascer, e nunca tinha conseguido, talvez não fosse mesmo para tocar nesses bichinhos. Quanto à galinha, achei mais fácil deixá-la, por ora, sem classificação.

Esqueci um pouco dessa história até vir morar Paris. Aqui só existe uma coisa mais numerosa do que turista: os tais pombos. Eles estão nas praças, ruas, pontes, terraços e em todos os cantos da capital francesa.

Minha convicção infantil não demorou a estremecer. Não bastasse o fato de já ter sido premiado mais de uma vez com seus excrementos, que numa espécie de trajetória teleguiada acertam sempre a minha cabeça, ainda tem a aporrinhação de escutá-los mesmo quando estou em casa.

Moro virado para um jardim. E não é raro um deles vir rulhar na janela logo de manhã cedo, o que invariavelmente me acorda. E num baita susto, pois poucas coisas são mais estranhas do que o barulho que esses animais fazem.

- Começou a 3a Guerra Mundial?
- Volte a dormir, é só um pombo.

Já estava quase decidido a pedir divórcio das minhas certezas de criança e admitir que nem todo passarinho é legal. Por sorte, em uma recente viagem ao Brasil, num almoço de família, a minha irmã bióloga Mariana resolveu sem querer a questão. E ainda avalizou o que meu pai tinha dito anos antes.

- ...tava cheio de pássaro lá: pardal, pombo e até galinha.
- Daniel, pombo e galinha não são pássaros. São aves.
- Tem certeza?
- Claro.
- Tô livre!
- Hã?

Apesar de não entender muito bem a diferença entre pássaro e ave, aceitei na hora a explicação. E também o fato de que acho esse bicho chato pacas. Chato e sujo. Chato e sujo e barulhento, aliás. Depois de afastar meus fantasmas pueris, agora posso dormir tranqüilo. Bom, pelo menos até o próximo maldito pombo vir gritar na minha janela. Ele que se atreva, esse protótipo de passarinho.