sexta-feira, 30 de maio de 2008

Pequenos espaços, grandes problemas

Julien Drouot não acreditou quando o cara da tevê anunciou o seu nome, e sacudiu Annie, que dormia ao lado.

- Eu ganhei. Ganhei, Annie. É minha!
- Ganhou o quê, Julien?
- A televisão de 150 polegadas, tela plana, totalmente digital, som estéreo futurista e disco rígido interno. Tem até despertador automático, com uma imagem holográfica do Charles Aznavour cantando La Bohème na nossa própria sala. Uma maravilha tecnológica.
- Que história é essa?
- Eles fizeram uma pergunta, e aí escolheram a resposta mais criativa.
- Que pergunta?
- "Qual a diferença entre a mulher e a televisão?"
- E o que você respondeu?
- O controle remoto!
- Você continua de uma finesse sem par, Julien. Mas me diga então onde vamos colocar essa outra tevê. Não vai caber nos nossos quinze metros quadrados.
- São dezesseis e meio, Annie. E eu já pensei em tudo. A gente pode botá-la no lugar daquele objeto marrom ali na parede, que eu nem sei bem pra que serve.
- Aquele objeto marrom ali na parede é o armário de louça. E você não sabe pra que serve porque nunca lavou um só copo na vida.
- Não é verdade. Semana passada eu lavei dois. Tá certo que um deles escorregou e quebrou, mas o outro ficou inteirinho.
- Foi por essas e outras que ontem comprei um lava-louças.
- Um lava-louças? E em que lugar vamos pôr esse monstro?
- Não se preocupe, Julien. Minha mãe vai ajudar a organizar tudo.
- Sua mãe?
- Ela chega na quinta.
- Agora são dois monstros...
- Dessa vez não fica muito tempo não, só um mês.
- Um mês?
- Chato, né? Eu também queria que fosse mais, mas ela disse que não gosta de incomodar.
- Por mim, tudo bem. Só que a velha vai ter que dividir o sofá com o Clement Diderot, que vem passar uma semana em Paris e pediu pra dormir aqui em casa.
- Clement Diderot, o gordo roncador?
- O próprio. Ele vem defender o título do Campeonato Francês de Arroto.
- Ele é asqueroso! Minha mãe não vai agüentar ficar aqui.
- Olha que sorte: eu conheço um hotel baratinho e super limpo a quatorze estações de metrô daqui. Quinze, talvez. Ela vai adorar.
- Você nunca fica feliz quando minha mãe vem.
- Não é verdade. Ela diz coisas que eu adoro.
- Jura?
- Claro.
- O quê?
- "Estou indo embora", por exemplo.
- Julien, você é um grande cretino.
- Annie, você é uma chata de galochas.
- Amanhã me mudo pra casa da minha amiga Marie.
- Não precisa se incomodar. Vou agora mesmo pro apartamento do Pierre. Sábado passo pra pegar minhas coisas.
- Aproveita e leva as suas cuecas furadas, que só entopem as gavetas.
- Pode deixar. Assim você vai ter mais espaço pra todos aqueles tubos e potes de pastas e pomadas.
- Saiba que são cremes de beleza caríssimos.
- E por que não funcionam?
- Suma!
- Fui.

Julien sai e bate a porta. Mas volta minutos depois, com a voz doce e um sorriso no rosto, e entrega um bilhete à Annie. Ela sorri também.

- Annie, pensei bem e tenho uma coisa super importante pra te dizer.
- Diga, mon amour.
- Você pode mandar a televisão nova pra esse endereço aqui?

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Um quadro, três histórias

Jean Novion, francês no nome, argentino na nacionalidade e brasileiro no local de nascimento, visitou o Louvre em 1996, antes que O Código da Vinci transformasse o célebre museu em filial da Disneylândia e a Mona Lisa em uma espécie de "New Mickey". Não era o frenesi que é hoje, mas milhares de pessoas já se acotovelavam diariamente em frente ao quadro, muito mais para tirar fotos dele do que para realmente observá-lo. Isso apesar de uma placa em letras garrafais prevenir em diversas línguas que "é proibido fotografar".

Mas vai tentar controlar 200 japoneses e seus aparelhos.

Pois bem, Jean seguiu as indicações e chegou, junto com a delegação asiática, à pintura mais famosa do mundo. Estranhou o tamanho.

- É aquela titica ali?

Verdadeiros samurais modernos, munidos de máquinas fotográficas ao invés de espadas, os japoneses não se importaram com as dimensões da obra e nem com o aviso, e saíram clicando em uma velocidade digna de Guiness. Do livro dos recordes, claro, não da cerveja.

Só que a Mona Lisa é o único quadro do Louvre com um guarda de plantão ao lado. Um carinha pago para dar esporro, que fica lá o dia inteiro. E ao ver metade de Tóquio dentro da sala, ele tratou de iniciar uma sessão de bronca multilíngüe.

- Pas de photos! No photos! Sem fotos! いいえ写真!

Gesto imediato, os japoneses viraram-se todos para o sujeito e, de forma sincronizada, dispararam centenas de flashes em sua direção. Aproveitando o momento de cegueira do rapaz, voltaram-se novamente para La Gioconda e bateram mais trocentas fotos. Satisfeitos, viraram-se e foram embora, com aquele sorriso Made in Japan.

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Ronald Walker, ex-punk, nascido na Inglaterra, quase trinta anos de Brasil, aproveitou uma viagem à França e deu uma passada no Louvre. Chegando à sala onde a Mona Lisa repousa, ou tenta repousar, ficou de costas para a obra.

- Não vou olhar.
- Tá doido?
- Não vou.
- Por quê?
- Quero ser o primeiro a vir aqui e não ver o quadro.
- É a Mona Lisa, tem que ver.
- Tem que ver por quê?
- Porque tem. Saiu em livro.
- Não li.
- E em filme.
- O unico cinema verdadeiro é o turco, legendado em aramaico.
- Tá em milhares de camisetas.
- Só uso camiseta do Sex Pistols, de preferência com uns dois ou três furos.
- Tem música que fala dela.
- Se os Ramones não gravaram, não presta.
- Você é chato, hein? Vamos nessa.
- Peraí, peraí. Vamos fazer o seguinte: eu vou olhar de relance, mas você não conta pra ninguém, viu?
- Combinado! Não abro o bico.

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Asdrúbal Inocêncio, cearense há 12 gerações, também conheceu a pintura de Da Vinci.

- Ô muié feia da peste, diabo!

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Pé na cova

Um dia acordei com uma dor nas costas danada. Um pouco a contragosto, decidi ir ver um doutor. No caso, um clínico geral, pois o atendimento médico na França funciona de uma maneira diferente. A não ser em casos extremos, como o surgimento repentino de um terceiro braço no meio do peito, todo mundo vai primeiro ao clínico geral. Daí, se necessário, ele encaminha para um especialista.

Como em uma espécie de pronto-socorro, muitos desses médicos atendem de acordo com a ordem de chegada, sem a necessidade de marcação de consulta. Não tem lista, nem secretária e nem nada. Você simplesmente pergunta quem é o último da fila.

O sistema é diferente, verdade. Mas tem coisa mais igual no mundo do que sala de espera em consultório médico? Os que aguardam a vez disputam de forma ferrenha o título "Pé Na Cova", e desfilam sem parcimônia a lista de ziquiziras e urucubacas, compartilhando a gravidade dos próprios problemas como quem compartilha a opinião sobre o time do Paris Saint-Germain.

Quando eu cheguei à ante-sala, dois senhores já estavam lá. O menos deprimido tinha cara de quem acabara de chegar de um velório.

- Quem é o último? Perguntei.

- C'est moi. Eu sou o último a entrar, mas provavelmente o primeiro a bater as botas. Tô tossindo mais do que cachorro de bêbado.


Eu não tenho muita paciência pra ouvir esse tipo de lamúria. Mas, para não ser antipático, fiz um comentário rápido.

- Acho que comigo é mais simples. É só uma dor nas costas. Nada grave.

Erro fatal. Não se pode dar corda para esse tipo de assunto. O outro infeliz, que também aguardava a vez, semi-imóvel, com a parte de trás da cabeça encostada na parede, moveu a boca o suficiente para sentenciar meu destino.

- Ah, eu também comecei assim. Um dia, com a sua idade, acordei com dor. O médico me entupiu de remédios, e de nada serviu. Hoje, quarenta anos depois, estou aqui, completamente entrevado. Acho que não duro muito mais.


Já era, o debate estava iniciado. O da tosse sentiu-se ofendido. Como aquele tipo ousava colocar no mesmo patamar de sofrimento um simples mau jeito nas costelas e a sua magnânima tuberculose? Mas o entortado também não deixou barato. Já eu passei a espectador.

- Monsieur, dor nas costas eu tenho desde que nasci. E não é isso que vai me matar. Agora experimenta tossir de manhã, de tarde e de noite. É um inferno. Tem horas que até me falta ar.

- Vous rigolez? Inferno é não conseguir se mover direito, depender dos outros pra fazer qualquer coisa. Quando eu tenho uma crise de dor, preciso ficar deitado o dia inteiro.


- Entendo, mas ao menos a dor passa quando você deita. Eu, quando durmo, continuo tossindo. Dois casamentos meus terminaram porque minhas ex-esposas não conseguiam dormir ao meu lado.


- Você teve sorte e ainda se casou. Eu não. Que mulher ia querer um homem como eu, mais torto do que a Torre de Pisa?


- O problema é que, além da tuberculose, tem dias que acordo com uma tremenda enxaqueca. Parece que minha cabeça vai explodir.


- Agora você vai me falar de enxaqueca? Enxaqueca é meu sobrenome. E não adianta tomar remédio que não passa.


- Comigo é a mesma coisa. Eu até me ofereci de cobaia para testar medicamentos novos.


- Isso é uma coisa que já faço há tempos. Atualmente estou testando um remédio ótimo contra sinusite.


- Umas pílulas verdes, bonitas que só?


- Essas mesmas. Eles dizem pra tomar duas. Mas gosto tanto que mando logo umas três ou quatro pra dentro.


- Eu também estou testando a mesma. Mas prefiro um novo colírio contra catarata. Duas gotinhas e o mundo fica azul.


- Sim, sim, conheço, conheço. Experimenta usar esse aí combinado com um talco contra chulé.


- Contra chulé?


- É uma maravilha! E dizem que a mistura dos dois destrói o cerebelo.


- E o que é o cerebelo?


- Sei lá, acho que mais uma dessas doenças tropicais.


No auge da cumplicidade dos dois, o médico abriu a porta e chamou o próximo. Renovado, o aleijado andou sorridente e a passos largos até ele. O tuberculoso emitiu um "até logo", em alto, claro e bom som. Depois olhou pra mim, novamente com tom fúnebre, e deu uma tossida.

- Dor nas costas é só o começo, meu filho, é só o começo.

Não falei mais nada até chegar a minha vez de ser atendido.

- Pois não, o que você está sentindo?

- Depende. Antes ou depois de chegar à sala de espera?

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Como irritar (um pouco mais) um parisiense

Parisiense é um ser naturalmente irritado e impaciente. Não sou eu que digo, mas os próprios, que usam essa característica até em publicidades locais. Recomendo enormemente nunca entrar em uma discussão com um deles, pois você dificilmente vai se dar bem. Mas, caso você goste de polemizar, ou se estiver disposto a uma imersão antropológica mais profunda na sua estada em Paris, aqui estão algumas dicas de assuntos que certamente vão despertar a ira dos habitantes da capital francesa. Mas atenção: é melhor estar preparado para se defender. Não diga que não avisei.

. A provocação é vermelha

Se existe um patrimônio nacional francês, é o vinho. Há todo um ritual para tomar a bebida, seguida de forma dogmática por alguns puristas. Tenha em mente que mexer com esse tabu é algo que pode custar uma extradição sumária para o Brasil.

Graduação do insulto - Em uma escala de 0 a 10, falar mal do vinho francês merece nota 7,5.

Como incitar - Em um restaurante:

- Tem vinho argentino?

- Não, senhor.

- E chileno?

- Não.

- Italiano?

- C'est bon, non? Aqui só temos vinhos franceses.

- Só tem vinho nacional?
- Oui.

- Que boteco vagabundo. Pra tomar vinho nacional eu teria ficado no Brasil.


. O incômodo é cremoso

Não se critica o odor dos queijos franceses. Eles fedem, mas são feitos para serem assim mesmo. Aliás, quanto mais fétidos, melhor. E não há nada que se possa fazer a respeito.

Graduação do insulto - É um pouco mais grave do que o anterior, e merece 8,2.

Como incitar - Em um vendedor de queijo, coisa que tem aos montes por aqui:

- Monsieur, esse queijo que o senhor trouxe está fedendo.
- Heresia! Pois saiba que é um camembert super refinado.

- Rapaz, eu seria capaz de jurar que ele foi esquecido junto com a roupa suja do time do Paris Saint-Germain.


. O chato é falante

Já pegou metrô de manhã cedo em Paris? As pessoas estão de cara tão feia que a quantidade de carrancas ali encontradas faria a alegria de qualquer barqueiro do Amazonas. Pra freqüentar o ambiente, é recomendável ter tomado vacina anti-rábica.

Graduação do insulto - Não sei se dá pra classificar como insulto. Mas em termos de provocação uma nota 9 não é exagero.

Como incitar - Fale com desconhecidos no metrô, de manhã. E fale muito. Comece com uma das opções abaixo:

. E o Paris Saint-Germain, hein? Faz tempo que não fazem um gol, hein? Acho que eles vão cair, hein? O que eles poderiam fazer? Hein? Não entendi? Pode repetir? Hein?

. Estou tão sozinho. Me sinto tão triste.
Minha mulher me deixou. Não tenho mais teto. Achei que o senhor poderia me ajudar. Um ombro amigo, sabe? Você me parece tão simpático. Posso dormir na sua casa hoje? No sofá mesmo, pois detesto incomodar.

. Conhece a piada do "não, nem eu"? Não? Nem eu! Ha ha ha! Essa é boa, né? Excelente pra começar o dia de bom humor. E eu logo vi que bom humor é o seu sobrenome. Tenho ainda várias outras. Quer ouvir? Te convido para um café. Meu repertório é enorme, você vai adorar.


. O beijinho é fatal

O beijinho é a arma final. A apelação. O cinismo. Se nada funcionar, utilize-a.

Graduação do insulto - Esse vale 10, com menção honrosa.

Como incitar - Alguém gritou com você? Mande beijinho. Bufou do seu lado? Bisous nele. Te disseram "ça va pas"? Bitocas são a saída. Seguem exemplos práticos de utilização, quando alguém vier reclamar:

1.
- Monsieur, o senhor está no meu caminho. Isso me incomoda muito.

- Posso te dar um beijo?

2.
- Sabia que esse seu sorriso na cara é proibido em Paris? Faça o favor de parar com isso agora mesmo.
- Só se você me deixar dar um bom cheiro no seu cangote.


3.
- Merde! Franchement, ça me dérange! C'est bon! Ça suffit!
Putain!
- Mas você prefere no rosto ou na boca?

sábado, 3 de maio de 2008

Amigos, amigos, esposas à parte

- Alô.
- Quem é?
- Jacques Bodin.
- Jacques Bodin?
- Sim, eu mesmo.
- O crápula desgraçado?
- Eu também estava com saudades.
- Como você tem coragem de ligar?
- Calma, não precisa ficar assim.
- Não precisa? Você era meu sócio e meu melhor amigo até o dia em que precisei passar uma semana em Lyon e pedi pra você tomar conta da minha casa.
- E eu tomei, não?
- Tomou tão bem que fugiu com a minha esposa.
- É verdade que isso não estava previsto, mas a culpa não foi só minha.
- Você é mesmo um cara-de-pau.
- Eu sei. Estou arrependido.
- É fácil dizer isso três anos depois.
- Puxa, já faz três anos? O tempo voa, né?
- Chega de conversa fiada. Você me ligou pra quê?
- Pra te devolver a Marie.
- Devolver?
- Não a quero mais.
- Não estou entendendo.
- Ela me cansa.
- Agora é tarde. É toda sua.
- Acho que você podia fazer isso em nome da velha amizade.
- Que amizade? Ela se foi quando vocês fugiram para Toulouse.
- A Marie reclama de tudo.
- Novidade.
- Reclama quando eu não faço o jantar.
- Conheço bem essa cantilena.
- E reclama também quando eu faço, pois nunca está do gosto dela.
- Ela continua assim?
- Nem te conto.
- E faz cara feia se você chega atrasado?
- Você não imagina o bico.
- Imagino, vivi isso quinze anos. Mas não tenho que falar disso com você, seu mau caráter.
- Desculpa, desculpa. Minha vida virou um inferno com ela. Nem futebol eu posso assistir.
- Nem futebol?
- Nada, ela vira uma arara. No máximo uma novelinha.
- Novelinha é dose.
- E ela adora as mexicanas, aquelas cheias de chororô.
- A Marie não muda.
- Não mesmo. Então, quer de volta?
- De jeito nenhum.
- Eu pago. Você pega a mulher e ainda fatura um bom troco.
- Tá maluco?
- Ainda não, mas tô ficando. A minha vida virou...
- Já sei, já sei, virou um inferno.
- E se a gente se livrar dela?
- Hein?
- Dar um fim na mocréia, o que acha?
- Olha, Jacques, a idéia não é má. Ela bem que merece. E você também, seu pulha.
- Depois a gente se acerta. Vamos cuidar da bruxa primeiro.
- E como seria?
- Cortamos o cabo do freio do carro. Vai parecer acidente.
- Não funciona. Fica muito na cara. E se colocar veneno na bebida? Aposto que ela ainda bebe duas garrafas de vinho por dia.
- Parece uma esponja.
- A Marie bêbada era barra.
- Era nada, ainda é.
- Então, é fácil. Duas gotinhas de cianureto dão conta do recado.
- Não sei. Talvez a gente possa simular um almoço de reconciliação, nós três, e fazê-la comer uma meia dúzia de ostras estragadas. É tiro e queda.
- Jacques, você é um gênio.
- Você também não é de se desprezar.
- Como pudemos deixar essas pequenezas estragarem nossa amizade?
- Também senti sua falta.
- Bom, vamos tratar de negócios. Onde vai ser o almoço?
- No lugar de sempre, Chez Paul. Amanhã tá bom?
- Amanhã, Chez Paul. Não esquece de levar a Marie.
- Claro, claro. Até amanhã, sócio.
- Até amanhã, sócio.

(Mais ou menos baseado numa história mais ou menos real)