sexta-feira, 27 de junho de 2008

En route pour le Brésil

Viagem de férias. Tudo separado. Roupas de um lado, encomendas de outro, presentes no meio e as dezenas de revistas Brazuca num canto. Agora é só botar na mala. Peguei uma pequena. Não coube. Troquei por uma grande. Não coube também. A grande e a pequena. Ainda não deu. Separei então duas malas tamanho mamute, coisa que eu me prometi não fazer de novo. Com muito esforço, tudo entrou.

Eu posso ter uma semana de prazo para preparar as minhas coisas, mas sei que vou sempre fazê-las no último minuto. Dessa vez não foi diferente, claro.

Hora de sair. Com uma mochila nas costas e puxando as duas valises mastodônticas, demoro eras geológicas para chegar à Gare de Lyon, de onde sai o ônibus para o aeroporto. No ponto, um funcionário da Air France e um ciclista com sua bicicleta desmontável discutem animadamente sobre a Eurocopa. Entro no papo. Perguntam se sou espanhol. “Brasileiro”, respondo. “Brasileiro? E você pode me dizer o que o Ronaldo foi fazer com aqueles travestis?”. “Ronaldo? Nunca vi mais gordo”, digo. Eles não entenderam a piada, que também nem era tão boa assim.

Entro no ônibus e ligo o iPod no modo shuffle. Where the streets have no name, do U2, começa a tocar. Em Paris, as ruas têm nome. Em Brasília, para onde vou, não. São siglas. L2, W3, N1 e outras, que mais parecem códigos da NASA.

Pelo Boulevard du Temple, uma rua que tem nome, chegamos à Place de La Republique. O trânsito estava lento, mas a faixa exclusiva de ônibus facilita bem as coisas.

Paramos no sinal. Entra Sleep the clock around, do Belle & Sebastian. Lembro que nunca a escutei em uma festa. Na praça, uma espécie de sopa coletiva está sendo distribuída. Tudo muito organizado. Até um bêbado, que mal consegue ficar em pé, aguarda cambaleante sua vez de ser servido. Tenho a impressão de que ele bamboleia no ritmo da música.

Passamos por um ponto de vélib. Depois, por um Carrefour. Quando era criança, jurava que Carrefour era brasileiro. Esse supermercado sofreu horrores com o tanto de chocolate que meu irmão e eu comíamos de graça quando a família ia fazer compras mensais. Não sei como não quebraram. Só quem se deu bem com isso foi o nosso dentista carniceiro, que sempre teve renda garantida a cada visita que fazíamos ao seu consultório.

Um caminhão verde, amarelo, azul e branco passa ao lado. Depois, passa um conversível, com o motorista dando um trato nas coxas da passageira. É a vez de tocar Mala Vida, do Mano Negra, antiga banda francesa da qual fazia parte o Manu Chao, talvez mais amado no Brasil do que no próprio país.

À direita, um outro Carrefour. Apesar do supracitado desfalque na filial brasileira, parece que eles conseguiram sobreviver bem. Mais à frente, uma Ikea. Sinto náuseas. Uma ida à Ikea é pior do que tortura chinesa. É pior do que ressaca de tequila. Só não é pior do que ouvir Seu Jorge.

Estamos quase chegando ao aeroporto, e a música troca de novo. Agora são os Strokes, com Hard to explain. Vou pro inverno brasileiro, mas em Paris o dia tá quente. Ontem fez 33ºC. A cidade é muito melhor no verão, quando podemos sair sem aqueles 12 casacos que somos obrigados a vestir na época de frio, e que nos fazem parecer ursos polares ambulantes. No verão, os parisienses até sorriem nas ruas. Bom, quase sorriem. Também não dá pra exagerar, né?

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Conversa de elevador

Ato 1 (manhã) - Vizinho do oitavo

- Bonjour.
- Bonjour.
- Qual andar?
- Oitavo.
- Eu desço no sexto.
- ...
- ...
- E esse tempo, hein?
- Ô.
- Tem dia que chove. Tem dia que faz sol. Uma loucura.
- Uma loucura.
- É Paris.
- É, é Paris.
- ...
- Ainda estamos no quarto. Esse elevador não ficou mais lento?
- Acho que sim. E um dia vai quebrar. É um absurdo.
- Absurdo.
- ...
- Sexto. Fico aqui.
- Eu continuo.
- Bom te ver.
- Bom te ver.


Ato 2 (noite) - Entregador do Pizza Hut

- Bonjour.
- Bonjour.
- Tá pesado isso. Você pode apertar o segundo pra mim?
- Claro.
- ...
- Quantas pizzas tem aí?
- Oito.
- São para os estudantes ingleses do segundo andar?
- São sim. Sabe, tem uma coisa ali que eu acho muito estranha.
- E o que é?
- Ah, não dá pra dizer agora. Chegamos ao segundo.
- Tchau...


Ato 3 (hora do almoço) - Térreo, esperando que o elevador chegue, ao lado de um casal com filho pequeno

- Bonjour.
- Bonjour.
- Maman, eu quero o chocolate!
- Só mais tarde.
- Eu queeeeeero!!! Quero, quero, queeeeero!
- Não grita, menino. Não incomoda o moço.
- Me dá! Me dá! Me dá!
- Você quer parar de puxar a camisa do moço?
- Me dá o chocolaaaaate!!!
- Chegou o elevador. Entra e não grita.
- Eu queeeeero!
- Pára de pular no elevador. A gente vai cair e todo mundo vai morrer por sua culpa.
- Mas eu quero agoooora!
- Não age assim. O que o moço vai pensar de você?
- Me dá o chocolaaaaate.
- Moço, qual o seu andar?
- Deixa. Eu pego o próximo.
- Chocolaaaaaaaaaaaate...


Ato 4 (tarde) - Vizinha aposentada do sexto, cuja televisão a cabo eu regulei três meses atrás

- Bonjour Michelle.
- Bonjour Daniel.
- E a televisão?
- Funcionando bem.
- ...
- ...
- Nunca mais deu problema?
- Nunca.
- ...
- ...
- A imagem tá nítida?
- Super.
- ...
- ...
- Sem interferências?
- Nenhuma.
- ...
- ...
- E o som? O som tá bom também?
- Muito.
- ...
- ...
- A programação da TV é que não ajuda, né?
- Eu gosto.
- ...
- ...
- Eu só assisto ao jornal das 20h.
- Ah, esse eu não vejo.
- ...
- ...
- Bom, chegamos. Tenha um bom dia.
- Você também.


Ato 5 (domingo de manhã) - Estudantes ingleses do segundo

- Bonjour.
- ... jour.
- Segundo, né?
- ... oui.
- Ressaca?
- Yes. Ou talvez a pizza de ontem.
- Pizza Hut?
- Como você adivinhou?
- Palpite.
- Aquela pizza tem algo muito estranho.
- O que é?
- Ah, não dá pra dizer agora. Chegamos ao segundo. Bom dia.
- Bom dia...


Ato 6 (qualquer hora) - Edith

- Oi, Daniel.
- Edith?
- Vai pegar o elevador?
- Ah, não. Vou a pé mesmo. Faz bem pro coração, sabe?

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Arigatô, monsieur

Em Paris:

. No bairro chinês tem muito mais pessoas vindo do Camboja ou do Vietnã do que da China.
. Apesar disso, todos os letreiros de lojas estão em chinês. Ou talvez não estejam, já que não consigo ler mesmo.
. Lá existe um grande supermercado chamado Irmãos Tang, onde há picanha brasileira, mas não há um só saquinho do suco em pó Tang.
. Os chineses gostam tanto de Paris que construíram uma réplica da cidade no subúrbio de Xangai.
. Eu já comprei café cambojano.
. E feijão japonês.
. E sorvete vietnamita.
. E mala chinesa, que estragou com um mês de uso.
. Em restaurantes vietnamitas há a foto de Ho Chi Mihn. Mas em restaurantes chineses não há a de Mao Tsé-Tung.
. Dos restaurantes japoneses, 90% são comandados por chineses. São japoneses Made in China.
. Já vi pizza no menu de um restaurante tailandês.
. Aliás, há tantos motoboys entregadores de sushi quanto de pizza.
. No Palácio de Tóquio, raramente há um japonês.
. Talvez porque grande parte deles esteja diariamente em frente à Mona Lisa.
. Uma vez presenciei um casamento coletivo chinês embaixo da Torre Eiffel, reunindo 10 casais.
. No bairro chinês tem um McDonalds com cardápio em chinês. Ou em japonês, sei lá.
. Já vi cartaz de uma ópera coreana.
. No meu curso de francês tinha uma coreana que a professora chamava sempre de japonesa.
. Apesar de ter sido criado por um japonês, o Miojo e seus derivados são chamados aqui de "macarrão chinês".
. O bairro chinês, na verdade, fica na Praça da Itália.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Uma volta pelo Marché d'Aligre

Domingo de manhã. Bom, "de manhã" é só força de expressão, pois já devia ser quase meio-dia. Saí do prédio. Dei como sempre um alô pro Omar, dono do bar da frente. Ele retribuiu, como sempre. Edith, que não trabalha com ele mas vive dando uma força, escrevia o menu do dia: cuscuz marroquino. Na varanda do bar, um grupo se esforçava para tocar clássicos do rock apenas com instrumentos de sopro e bateria. Massacraram Smoke On The Water e Born To Be Wild, mas saíram-se um pouco melhor em Billie Jean, principalmente quando o saxofonista tentou fazer aquela andada pra trás do Michael Jackson e quase derrubou uma velhinha desavisada que passava. Deixei um euro no chapéu, mais pela performance cênica do que pela musical.

Vinda da padaria, Edith chegou ao meu lado carregada de baguetes. Ela está em tanto lugar ao mesmo tempo que eu seria capaz de jurar que tem umas duas ou três irmãs gêmeas. Disse que estava super apressada e não podia conversar muito, mas não conseguiu ir embora antes de uns bons 20 minutos de papo. Falou do vizinho que jogou uma bacia de gordura quente pela janela, de um jantar em comemoração aos 40 anos de maio de 68, das cadeiras que comprou numa loja e vieram com defeito e da meteorologia dos próximos dias. "Separa o guarda-chuva, vai chover muito". Anotei o conselho.

Fui subindo a Rue d'Aligre, desviando das pessoas. No fim de semana tem o dobro de gente. Talvez o triplo. Entrei na fila do fromager, o vendedor de queijos. Um cheiro forte surgiu do nada, e achei que o sujeito na minha frente talvez precisasse ir ao banheiro. Olhei pra ele, incomodado com a suposta falta de educação. Mas o mistério foi resolvido quando a atendente entregou um pacote com um gordo pedaço de camembert a uma senhora que passeava com o seu exemplar canino ao lado. Foram os três, a senhora, o cachorro e o camembert, feder longe dali.

Mais na frente, um feirante tentou me empurrar uma abóbora já meio velha. Um outro ofereceu tomates orgânicos. Desviei do sujeito que vende pêssegos espanhóis. São boas suas frutas, mas ele não deixa a gente escolher. Compro ao lado, e faço questão que ele veja. Confesso que agora, escrevendo sobre isso, acho uma atitude meio idiota. Mas vou agir da mesma maneira quando for lá de novo, tenho certeza. Perto tem o chato da banana, que grita "banana" o dia inteiro, das mais variadas maneiras. Faz poesias com o nome da fruta, canta usando uma como microfone, grita fino, grita grosso e até sapateia. Tudo pra vender bananas. Eu o elegi como uma variante francesa do cara do abacaxi da praia de Ipanema, um dos mais conhecidos chatos do Rio de Janeiro.

Tem uma pedinte que todo dia me aborda. Já me disseram que ela rouba carteiras dos mais desavisados. Não sei se é verdade, mas ao passar por ela sempre confiro os bolsos. Nesse dia senti falta de 10 euros e quase voltei pra falar com ela, mas aí lembrei-me que tinha gasto em cerveja na noite anterior, o que explicava também a minha dor de cabeça. Por auto-penitência, resolvi dar uma esmola dessa vez. Pensei em 50 centavos, mas a primeira moeda que veio era de 10. Tava bom.

A descabelada da salada estava no seu posto, acompanhada pela mãe, que também parece não ver um pente há algumas décadas. As duas contrastam enormemente com as alfaces e rúculas impecáveis que oferecem aos clientes. Um pouco mais à frente, outra dupla mãe-e-filha vendia flores. Um dia desses peguei uma discussão braba entre as duas, sobre o tamanho máximo que uma samambaia atinge.

Passei ainda no vendedor de café. Ele tem cafés do mundo inteiro: da Índia, do Brasil, da Colômbia, da Guatemala, da Itália. Cada vez eu compro um diferente, moído na hora. Dizem que café é bom para a memória. Mas no caso dele eu tenho minhas dúvidas, pois vou lá toda semana e ele parece nunca se lembrar de mim. Ou talvez finja, pois sempre chego com um pacote de atum ou salmão, comprado na peixaria ao lado. E café e peixe não fazem lá a melhor combinação, principalmente para os negócios do rapaz, imagino. Fim da feira, meia-volta.

No caminho pra casa, um velho tocava "Chorando Se Foi" no realejo. Essa mesma que você está pensando. O hino da lambada, que virou música de brinquedo de criança na França e buzina de ônibus no Senegal. Eu vi. Ou melhor, ouvi. Ao seu lado, a polícia municipal observava o movimento, enquanto militantes de esquerda distribuíam panfletos de mais uma manifestação anti-Sarkozy. Com a ajuda da Edith, claro.