sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Joue-nous Raoul!

Tem coisas que não dá pra traduzir. Por melhor que você chegue a falar uma segunda língua, existem expressões que necessitariam de tanto tempo para serem explicadas que é melhor nem tentar.

Isso não sai da minha cabeça desde que estava em um festival em Paris e, meio da muvuca, alguém deu um grito. Uma espécie de senha-para-se-reconhecer-brasileiro-em-show-de-rock-em-qualquer-parte-do-mundo. O "toca Raul!" saiu esganiçado, quase desafinado. Mas era um "toca Raul!" legítimo, bem audível.

Como explicar para um francês todo o significado sócio-anárquico-místico-irônico-contracultural da expressão?

- Não dá pra explicar.
- Tenta.
- O Raul Seixas é um músico baiano, um pioneiro do rock brasileiro.
- Então as pessoas querem escutar as músicas dele no show?
- Não é isso.
- E por que pedem para tocá-las?
- Elas não estão pedindo para tocá-las. Só estão gritando "toca Raul!".
- Não entendo.
- Eu disse que era complicado.
- Continua.
- O Raul Seixas fez muito sucesso nos anos 70, principalmente pelas músicas em parceria com o Paulo Coelho.
- Paulo Coelho, o bruxo adorado aqui na França?
- O próprio.
- Já até imagino. Eram músicas de meditação, de elevação espiritual, né?
- Na verdade, muitas eram de adoração ao coisa ruim.
- Coisa ruim?
- O canhestro.
- Hein?
- O príncipe das trevas.
- Paulo Coelho adorando o capeta? Agora embolou tudo.
- Avisei...
- Deixa eu tentar compreender: as pessoas pedem músicas do Raul Seixas, mas não querem escutá-las. E muitas dessas músicas foram feitas juntas com o diabo, mas adoravam o Paulo Coelho.
- Na verdade, é o contrário.
- É confuso.
- Ele também era confuso. Tanto que ficou conhecido como maluco beleza.
- Era doido?
- Era. Quer dizer, não era. Bom, talvez fosse. Sei lá. E o mais curioso é que existe até hoje uma legião de fanáticos que se vestem exatamente como ele.
- Então são esses os malucos beleza que gritam "toca Raul!"?
- Nem sempre.
- Eu acho que nunca vou entender o que isso significa.
- É complicado mesmo. "Toca Raul!" é uma expressão muito brasileira. Tão brasileira quanto a Gisele Bündchen.
- Gisele Bündchen? Ela não é alemã?
- Ah, não enche.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Praias, pandeiros e limoncelos

Paris fica a centenas de quilômetros do oceano. Mas no verão, ou no que eles chamam de verão, tem sua própria praia, a Paris Plage, nas margens do rio Sena. E tem tudo a que se tem direito: areia, corpos bronzeados, espreguiçadeiras, cerveja gelada e uma grande programação de espetáculos e eventos. Só falta mesmo o mar, esse pequeno detalhe.

Fui lá um dia desses, à noite, pra um show. Cheio pacas. Não dava pra chegar perto do palco. E nem pra ouvir de longe, pois não havia caixas de som espalhadas pelo lugar. Ou pagava uma de sardinha e me enlatava lá na frente ou desistia. Fiquei com a segunda opção. Assim como os amigos com quem estava.

Yasir, um desses amigos, carrega um pandeiro aonde vai. Ele pode esquecer os documentos, o dinheiro e até o próprio nome, o que já vi acontecer algumas vezes. Mas o pandeiro ele não esquece jamais.

Sem ter o que fazer, sentamos à beira do rio. Rapidamente, o a partir de agora chamado psicopata do pandeiro sacou seu instrumento, numa velocidade digna de pistoleiro. E antes que eu pudesse impedir, passou a tocar e cantar seu repertório repleto de hits. O cara é animado. Se começar, não pára. É do tipo que, se tivesse uma banda, só sairia do palco expulso. Se fizesse um filme, colocaria cenas depois dos créditos. Se escrevesse um livro, faria a enciclopédia Barsa parecer gibi.

Nesse dia, porém, ele disputou os holofotes com outro figura.

Entre uma pandeirada e um "la la iá", surge do nada um sujeito com um violão em uma das mãos e uma garrafa de limoncelo em outra. Bandana na cabeça, pose de roqueiro, bigode, era a cópia francesa do Santana. Sua chegada na roda foi impactante. Todos silenciaram e o encararam. "Deve tocar muito", era o pensamento comum. Sem dizer nada, posicionou o violão, levantou a palheta e mordeu a ponta da língua, preparando-se para atacar as seis cordas. Tensão geral. A palheta continuou levantada, agora refletindo a luz da lua. Estávamos ansiosos pelo desfecho daquilo, pela reencarnação de Hendrix. Sua mão começou a se mover. E a palheta lentamente escorregou pelos seus dedos e caiu, enquanto a língua continuava meio de fora, já com um pouco de baba. Nosso guitar hero ficou assim longos segundos, travadão da silva.

Sem titubear, o psicopata do pandeiro puxou logo uma versão de Mas Que Nada, acompanhado alegremente pelos diversos franceses que já tinham se enturmado, e batiam palmas e cantavam a plenos pulmões.

Santana cover, de volta da sua viagem tipo miojo, instantânea e pessoal, não encontrava a palheta desaparecida. Então sacou de um canivete que trazia no bolso e cortou uma garrafa pet, improvisando um novo artefato. Com isso, resgatou um pouco do respeito que havia conquistado e perdido tão rapidamente. Observando o movimento, o psicopata do pandeiro não parecia disposto a fazer outra concessão no seu set list, e continuou a surrar o couro.

Vendo que não dava pra competir, Santana cover esperou o fim da música, deu um gole do limoncelo e pediu a palavra.

- Vou tocar uma pra todo mundo. E você, com o pandeiro, pode acompanhar.

As primeiras notas foram facilmente reconhecidas. E todos entraram juntos no refrão de No Woman No Cry. Todos, menos o próprio violeiro, que ficou novamente pelo caminho, mais estático que a Vênus de Milo. Sem perder tempo, o psicopata do pandeiro fez um rápido medley, e passou de Bob Marley a Camille, para a alegria dos franceses.

Com a apresentação inevitavelmente comprometida, Santana cover, mais uma vez de volta, deu outro gole da garrafa e levantou-se, determinado. Foi em direção a Yasir, que aumentou a intensidade das pancadas no instrumento. O guitarrista continuou andando. O pandeirista, pandeirando. Um olhava pro outro, fixamente. Eis que, no meio do caminho, o viajante solitário mudou bruscamente de direção e foi rumo ao rio. Despencaria tal uma âncora, não fosse a pronta intervenção de um dos presentes, que e o aparou e ainda o convenceu a voltar pra casa.

- Tá bom, nós vamos.

Disse isso, pegou o violão, virou o resto do limoncelo e saiu conversando animadamente com alguém que só ele via. Aproveitei e fui também, mas pro outro lado. Só o psicopata do pandeiro ficou. Afinal, com ou sem Santana, Hendrix ou Bob, o show tinha que continuar.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Literatura de metrô

A Carol, uma grande (na qualidade, não no tamanho) amiga, tem uma teoria interessante: o seu itinerário no metrô parisiense depende do livro que você está carregando. Se for bom, você pega o caminho mais longo. Se for ruim, o caminho mais curto.

Pensando nisso, faço algumas sugestões - não de títulos, mas de assuntos - e os respectivos trajetos que eles merecem.

. Revolução Francesa

É importante conhecer bem. Mas, acredite, o que se aprende na escola no Brasil é mais do que a maioria dos franceses sabe sobre o episódio. Uma revisada básica já te deixa bem na fita. Vá de itinerário normal.

. Qualquer coisa do Victor Hugo

Para ler Victor Hugo bem lido são necessários silêncio e concentração. Melhor pegar o banco do fundo do penúltimo metrô, que parte por volta da meia-noite. É importante ser o penúltimo, porque o último carrega a leva final de bêbados, e eles não vão entender o seu esforço de fazer um ar superior ao ostentar a capa de Les Misérables. Além disso, se um deles passar mal e der umas golfadas no seu livro, toda a sua pose de intelectual vai por água(s) abaixo.

. Um livrinho de auto ajuda

Pra mim, auto ajuda é quando você socorre o carro em pane do seu amigo. Pode pegar o itinerário mais curto, que você se auto ajuda muito mais chegando cedo em casa.

. Qualquer livro com título em português e as cores do Brasil na capa

Se você quer fazer sucesso na França, deixe saberem que você é brasileiro. Não falo de vestir a camisa da seleção, uma peruca amarela e sair sambando de braços abertos no metrô, jogando confete pro alto. Esse mico pode causar incidentes diplomáticos permanentes. O segredo é ser sutil. E um sutil culto vale o dobro. Se quiser valorizar-se ainda mais, solte umas frases meio sussuradas, misturando português e francês, como "c'est pas possible! Ele vai mesmo matar cette femme". Nesse caso, planeje o caminho mais longo, com muitas trocas. Mas atenção: lembre-se de não sair com um livro que tenha o atacante Ronaldo na capa. Nem preciso explicar porquê, preciso?

. A biografia do presidente Sarkozy

Dê uma olhadinha ligeira no capítulo Carla Bruni, entregue o livro para os bêbados do último metrô (eles sabem o que fazer) e vá a pé.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

E pro jantar?

(Renoir - Déjeuner des Canotiers)

A comida é uma grande obsessão na pátria de Paul Bocuse. Tão grande que, enquanto se come, fala-se do que se irá comer mais tarde. Ou do que já se comeu antes.

- E pro jantar?
- Coq au vin.
- Amo frango ao vinho.
- Eu também. Mas nada se compara à maravilha que comi semana passada na casa do Gérôme.
- E o que foi?
- Pato com laranjas. Não existe melhor que o dele.
- Você diz isso porque ainda não provou o peru com castanhas que a Julie prepara.
- Já me disseram que é divino.
- Divino, divino.
- A Julie uma vez me convidou para uma tarde de crepes.
- Que inveja...
- Tinha de queijo e presunto, de champignons, de ratatouille e, pra sobremesa, crepe Suzette.
- Crepe Suzette da Julie?
- O mitológico crepe Suzette da Julie.
- Inimitável.
- Incomparável.
- Semana passada sonhei com ele cinco dias seguidos.
- Me deu tanta vontade que vou até fazer crepe amanhã para a sobremesa, depois do steak tartare.
- Tem steak tartare pro almoço?
- Tem sim. E foie gras de entrada.
- Já estou com água na boca.
- Foie gras é o manjar dos deuses. No casamento da Heloïse eu comi frito. Já provou?
- Nunca. É bom?
- Ô.
- Não foi nesse mesmo casamento que serviram blanquette de veau?
- Não, não. A blanquette foi no casamento do Fabrice. Antes daquelas batatas gratinadas divinas.
- Divinas, divinas.
- Você estava lá?
- Claro. Não lembra? Fomos juntos, depois de tomarmos o aperô na casa do Patrick.
- Patrick Florian?
- Ele mesmo. Grande anfitrião. Serviu-nos um delicioso fondue bourguignonne.
- Agora lembro. Foi nesse dia que a Marguerite Ducrois queimou feio os dedos.
- Coitada. Deixou a carne cair no óleo quente e tentou pegá-la.
- Eu ainda gritei: "Marguerite, atenção!".
- E a pobre entendeu "com a mão!".
- Queimou tanto que precisou largar o emprego de digitadora.
- A vantagem é que passou a ter mais tempo para cozinhar para os amigos.
- Isso é mesmo uma grande vantagem. As quiches da Marguerite são realmente...
- Divinas.
- Divinas, divinas.
- Combinam perfeitamente com o crème brûlée do La Grille, o restaurante lá perto de casa.
- O deles tem aquela casquinha bem crocante?
- Bem crocante.
- Nem me diga. Crème brûlée é a minha perdição.
- Nossa, conversamos tanto que esquecemos do coq ao vin. Qual pedaço você quer?
- Nenhum.
- Nenhum?
- Depois de falar tanto de comida? Quer que eu engorde?

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Como era verde o meu coentro

Ele não imaginava que o único conhecimento culinário que adquiriu em sua temporada francesa fosse lhe render tanto.

- E aí você coloca coentro.
- Coentro?
- Isso. Mas não pode pôr muito. Só salpicar um pouquinho assim, ó.

A dica gastronômica ganhou ares de grande revelação, impulsionada pelo fato de João Pedro - que agora só aceitava ser chamado de Jean Pierre - ter trabalhado em um restaurante parisiense. Lá, fez as vezes de garçom e lavador de louça. Nunca fritou nem um ovo. Mas é claro que ninguém precisava saber do detalhe.

- Sabe, no Au Canard Heureux a gente sempre tinha coentro fresco.
- E é tão diferente assim?
- Uh la la, nem te falo.

Acontece que um famoso chef de cozinha, em uma dessas coincidências mirabolantes da vida, disse na TV em horário nobre que coentro fresco era o segredo da boa culinária francesa. No dia seguinte, todo o bairro comentou o fato.

- Você viu aquele chef no jornal de ontem, antes da novela?
- Vi sim. Ele falou do coentro.
- E João Pedro já dizia isso bem antes.
- João Pedro, nada. Jean Pierre!

Jean Pierre virou celebridade instantânea e passou a ser tido como uma referência, não apenas culinária. Em qualquer assunto, de moda a mecânica de automóveis, todo mundo passou a consultá-lo antes de tomar decisões.

- Esse vestido está bom, Jean?
- Tá muito rouge. Tenta algo mais bleu.
- Qual vinho combina com carne vermelha?
- Nada nesse mundo é melhor do que um bom Côtes du Rhône, safra 2001.
- Jean, meu carro tá engasgando há tempos.
- Vende e compra um Peugeot.

Com a fama repentina, decidiu criar o próprio negócio. Alugou um cafofo, comprou um par de cadeiras, uma mesa e um sofá e mandou colocar na entrada da rua uma placa em letras garrafais: “Jean Pierre, consulteur professionel. Você não sabe o que quer? Chame Jean Pierre.” E passou a vender dicas a preço de ouro.

- Tô pensando em plantar tomates. O que você acha?
- Tomate é démodé. Planta abacaxi. Abacaxi é a nova sensação.
- Muito obrigado!
- De rien. E passa ali no caixa, na saída.
- Jean, minha mulher quer me deixar. Parece que ela se engraçou com um garotão mais novo. O que eu faço?
- Deixa a mocra sumir. Compra uma passagem pra Paris, veste uma camisa da seleção brasileira e vai pra perto da Torre Eiffel. Você vai descolar uma francesa em meia hora.
- Nossa, nem sei como agradecer...
- Pode começar fazendo um cheque.

Jean Pierre passou a ser o cara do momento. O mais cool de todos. Se usasse calça cor de abacate, no dia seguinte todo mundo estava com uma igual. Se cortasse as madeixas em forma de rabo de poodle, não demorava pra haver fila nos cabeleireiros do bairro. Se falasse uma expressão em francês – “je suis désolé”, por exemplo -, até as criancinhas começavam a repeti-la. Era a fama que ele nunca imaginou. Tinha até que sair disfarçado de casa, para não ser atacado por admiradores histéricos.

Mas o sucesso, no galope que veio, foi-se também.

Um dia, ao chegar ao escritório, Jean estranhou: não havia a habitual fila, de dobrar quarteirão, lotada de gente esperando a vez de ser atendida. Na verdade, não havia ninguém. Nenhuma alma, viva ou penada.

Achando que fosse uma espécie de brincadeira, abriu a porta da sala, esperando encontrar uma multidão enfurecida lá dentro. Mas estava vazia. Desorientado, saiu às ruas, tentando entender o que tinha acontecido. Não demorou, deu de encontro com uma fila babilônica, ainda maior do que a que havia habitualmente em frente ao seu escritório. Entrou nela, como quem não quer nada. E puxou papo com uma senhora de idade já avançada.

- Que fila é essa, madame?
- É para ver o Mathäus Kaninchen.
- Mathäus Kaninchen?
- É o novo guru alemão. Sabe tudo. Dizem até que cura unha encravada só de olhar pra ela.
- Como é que nunca ouvi falar?
- Ele era conhecido como Mateus Coelho.
- O Mateus limpador de privada, casado com a Úrsula, a mulher barbada do circo?
- Esse mesmo. E ele é ex-limpador de privada. Aliás, ex-bombeiro hidráulico. Mais respeito, viu?

Aflito, e ainda disfarçado, Jean quis saber mais.

- E o Jean Pierre?
- Quem?
- O guru francês.
- Coisa do passado.
- E como isso aconteceu de um dia pro outro?
- Você não viu? Ontem o homem da TV falou que o segredo do bom chucrute é colocar um pouquinho de suco de maçã em cima do repolho. E o nosso Mathäus já dizia isso há muito tempo.
- Mas o Mateus...
- Mathäus!
- Mas o Mathäus é um charlatão. Nunca cozinhou na vida.
- Que coisa mais feia, moço. Isso não passa de Missgunst.
-
Missgunst?
- Inveja, em alemão.