sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Meu vizinho Chico Buarque

Gosto de dizer que o Chico Buarque é meu vizinho em Paris.

Essa é uma história boa para se contar em mesa de bar. E é claro que não é verdadeira. Mas como eu conheço uma pessoa que realmente tem um apê no mesmo prédio que ele - ou diz que tem, vai saber -, resolvi apropriar-me do fato. Causa um certo frisson dizer que tem o Chico Buarque como vizinho, mesmo fictício. Ainda mais se lançar a conversa na hora certa, bem sutilmente.

- ...e aí tava tocando aquela música que o Chico Buarque fez na época...
- Ele é meu vizinho.
- Hã?
- O Chico Buarque. Meu vizinho.
- O Chico Buarque?
- Isso.
- Vizinho de porta?
- De porta não. Mora perto.
- Perto como? Pertinho, pertinho?
- Perto, bem perto.
- E você já encontrou com ele?
- Nem te conto.

Não conto porque não tenho nada pra contar. O apartamento dele fica a uns bons 30 minutos de caminhada a partir do meu. E nunca cruzei com ele na rua. Mas esses detalhes não preciso revelar.

- E como é que ele é?
- Nem alto, nem baixo. Cabelo curto, olhos azuis, seus sessenta e poucos anos...
- Mas isso todo mundo sabe. Quero saber da vida dele. Como ele é pessoalmente?
- Aí tá exagerando, né? Nunca falei que era conhecido meu. Falei que era vizinho. Apesar de...

Esse recuo estratégico, dizer que não é conhecido, é importante para manter o ar de veracidade. Os mentirosos contumazes entrariam com os dois pés, já evocando uma falsa intimidade com o compositor, ou com o "Chiquinho", como eles diriam. Eu prefiro sugerir e deixar a pessoa imaginar a continuação da história. Esse é o papel do "apesar de..." na frase. E a conversa depois vai mais ou menos pra esse lado.

- Apesar de quê?
- Deixa pra lá. Você não vai acreditar mesmo.
- Acredito, claro.
- Muita gente acha que é mentira.
- Eu não.
- Mas eu nem falei ainda.
- E eu já acho que é verdade, olha só.
- Acha nada.
- Acho, juro.
- Tem aquele documentário.
- Qual?
- Em Paris. Ele fala que anda pelas ruas da cidade pra se inspirar.
- Eu vi.
- Então...
- Agora você vai dizer que viu o Chico Buarque compondo enquanto andava por Paris?
- Eu não disse nada.
- O cara rabiscando uma letra embaixo da torre Eiffel, assoviando no Champs-Elysées, batucando uma baguete?
- Por isso que eu prefiro não falar nada. Você não vai acreditar.
- Você é um tremendo de loroteiro. E eu caindo no seu papo-furado.
- Bom, já que você não acredita então nem vou contar onde o Veríssimo fica quando vem à cidade
- Vai dizer que é na sua casa?
- Não conto, já disse. Você não vai acreditar mesmo.
- Mas eu acredito. Conta.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Paisagem da janela

Antes de começarmos, olhem bem para esta letra: û.

Essa é mais ou menos a visão aérea da disposição dos prédios vizinhos ao meu, considerando que eu moro ali em cima, no acento circunflexo. Tenho vista para toda a vizinhança. E toda a vizinhança tem vista para mim.

No começo, essa exposição me incomodava. Mas agora já me acostumei. A questão de se viver em Paris é que a sua privacidade é tão real quanto a popularidade do presidente Sarkozy: dizem que existe, mas ninguém prova.

Com tantos apartamentos à mostra, se eu fosse o James Stewart, em Janela Indiscreta, teria um prato cheio à disposição. Mas mesmo não bisbilhotando (muito) a vida da vizinhança, existem coisas que não dá pra deixar de notar.

. O solitário da sacada
No prédio da frente, tem um sujeito que fica o dia inteiro encostado na sacada, paradão, fumando e olhando a rua. Não sei o que ele faz da vida, mas desconfio se tratar de uma versão francesa do Seu Rafael, está ali para garantir que nada vai mudar. A diferença é que o equivalente brasiliense só se preocupa com a temperatura do dia. Já o meu vizinho parece se importar com a sucessão, pois agora passou a contar com a companhia - estática também - de uma criança, que eventualmente passa algumas horas ali, talvez aprendendo os segredos do ofício.

. Os festeiros do 7º andar
É um absurdo! Todo sábado, sem exceção, eles se reúnem no prédio à esquerda do meu. São trinta, quarenta, sei lá. Bebem, escutam música em volume alto, dançam, riem e ficam nessa até tarde. Já decidi reclamar com eles, aprontar um barraco, essas coisas de vizinho, sabe? Afinal, é um absurdo nunca terem me convidado.

. O casal atômico
Nunca os vi, mas já os escutei diversas vezes. E sempre que eles têm uma discussão braba (e eles sempre têm uma discussão braba) a vizinhança logo aparece nas respectivas janelas. É a chance de ver o velho barbudo do prédio da direita, a gorda da frente com lenço na cabeça, e o seu vizinho de baixo, que está sempre com um poodle nos braços. Vida besta? Quem disse?

. A vizinha de porta
Também não mostra a cara, só a voz. Fico tanto tempo sem ouvir qualquer barulho vindo da sua casa que chego a pensar que ela morreu ou se mudou. Mas há um processo infalível para saber se continua por lá: basta tocar violão na sacada. Não importa a hora do dia. Não importa quem toque. O violão soou, ela pintou! Pra reclamar, é claro.

. Os cozinheiros do 2º andar
Ao contrário do casal atômico, eles não fazem barulho. Mas o cheiro do que preparam se espalha pelos arredores. Outro dia quase gritei pra avisar que o bolo de chocolate estava queimando. Achei melhor deixar quieto.

. A mocinha de baby doll
Mora bem em frente à minha janela. Em frente mesmo. Mas ela, diabos, só apareceu uma vez.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Sartre em si

Uma coisa que me intriga nas teorias de Jean-Paul Sarte é essa classificação de seres em Em-si e Para-si. Se bem entendi, o Em-si é um objeto qualquer que possui uma essência definida, criado para suprir uma necessidade, tipo um sanduíche de mortadela, uma calça capri ou uma bandeira do Vasco.

Já o Para-si cria as relações funcionais e temporais entre os seres Em-si. Por exemplo, é um sujeito que acorda, dá uma bocada no seu sanduíche de mortadela, veste a calça capri e pendura a bandeira do Vasco na janela.

Até aí, tudo bem.

Sartre continua dizendo que o Para-si é um ser que tem conhecimento a respeito de si mesmo e do mundo. Já o Em-si, em se tratando de consciência, ele não tem nenhuma. Não sabe nem mesmo que existe.

Eu concordo que o Em-si não tenha consciência. Afinal, não costumamos ver sanduíches de mortadela reclamando. "Ei, caramba, morde com menos força". E calças capri, até onde se sabe, ainda não saem andando sozinhas pelas ruas.

Já dizer que o Para-si tenha consciência, é questionável. Discute-se nos meios filosóficos se um cidadão que pendura a bandeira do Vasco na janela pode ou não ser enquadrado como um grande conhecedor do mundo.

Entendam que eu não tomo partido. Apenas tento compreender Sartre.

Bem, ele ainda dizia que os objetos do mundo - os seres Em-si - apresentam-se à consciência humana por meio de suas manifestações físicas. E os Para-si não têm uma essência definida. Ou seja, determinam sua existência a cada momento, e têm a liberdade de mudar de vida desse segundo em diante.

Disso tudo, pode-se concluir que o sanduíche de mortadela é a manifestação física da idéia do sanduíche de mortadela, o que faz um grande sentido quando se vai ao mercado municipal de São Paulo e se depara com o baita sandubão que eles preparam. Ali entende-se a existência do sanduíche como algo sólido. Bem sólido.

A calça capri, um ser Em-si, não tem consciência de sua existência. Sartre, se ainda estivesse vivo e utilizasse esse exemplo, provavelmente reformularia sua teoria. Diria algo como "no caso da calça capri, ela não tem a consciência de sua própria existência. Parece que quem veste uma também não a tem".

E a bandeira do vasco, também um ser Em-si, para existir depende de um ser Para-si, que é o sujeito que a pendura na janela. Como esse mesmo ser Para-si tem a liberdade de mudar o rumo de sua vida a cada instante, pode ser que ele deixe de torcer pelo Vasco. Seguindo o raciocínio, se todos os torcedores do Vasco mudassem de idéia e passassem a apoiar, por exemplo, o XV de Piracicaba ou o Itabaiana, a bandeira do Vasco deixaria de representar a idéia de torcedor do Vasco. Portanto, deixaria de fazer sentido a sua existência. O que, para alguns, faria muito sentido.

Não sou eu quem diz, é Sartre.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Bigodeado

Josivaldo foi passar férias em Paris, e voltou ostentando um fino bigode, daqueles com as extremidades apontando para cima, sabe?

- Bigode, Josivaldo?
- Dá um ar francês, Filomena, tipo Napoleão.
- Napoleão não tinha bigode.
- Não?
- Não.

- Ué, ele não tinha alguma coisa marcante? Bigode, aparelho nos dentes
, mullets?
- Tinha, mas era a mão dele. Que ficava sempre dentro da camisa.

- Droga, como eu posso ter me confundido?
- É o que me pergunto.

- Tenho certeza de que vi na tevê um francês conhecido com um bigode igual ao meu. Alain Prost, acho.
- A cara do Prost é tomada pelo nariz mastodôntico, e não por pêlos.
- Jacques Chirac?
- Careca, Josivaldo.
- Le Corbusier?
- Tinha óculos redondos.
- Piaf?
- Era
Edith Piaf. E, por acaso, era mulher.
- E não tinha bigode?
- A não ser que trabalhasse como mulher barbada, o que não era bem o caso.

- Lembrei, Filomena! Eu copiei daquele
famoso pintor francês, o Salvador Dali.
- Josivaldo, o Dali era espanhol.
- Não era francês de forma alguma?
- Era completamente espanhol, desses nascidos na Espanha. Apesar de que se achava o máximo, como um bom francês.

- Diacho.
- Josivaldo, se eu fosse você eu raspava esse bando de pêlos aí.
- E demorou tanto pra crescer... Ainda bem que me resta a boina.
- Boina?
- É, a que eu comprei na França.
- Hã?
- Igual à daquele revolucionário parisiense.
- Qual?
- O Chê.
- Ô, Josivaldo...