sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Resoluções e revoluções

Os dois estavam na cama. Ele abaixou o cacho de uvas, para que ela pudesse alcançá-lo. Com a boca meio cheia, foi ela quem começou o diálogo.

- Paul, tomei uma resolução de ano novo.
- Já sei, Virginie. Fazer regime.
- Não, essa foi a do ano passado, chéri.
- Então vai terminar de pintar aquele quadro que você começou há séculos.
- Também não. Essa tinha sido a de dois anos atrás.
- E não cumpriu nenhuma das duas, né?
- Eu sei, eu sei. Mas dessa vez é pra valer.
- Vai juntar dinheiro pra uma viagem pra América do Sul?
- Não.
- E o que é?
- Vou trocar de marido.
- Cuméquié? Endoideceu?
- Decidi arrumar um outro homem.
- Um amante?
- Não, não. Apenas trocar você por outro.
- Mas... tem algo de errado comigo?
- Nada.
- Tô feio? Barrigudo?
- Você continua um gatão selvagem. Faz miau.
- Miau.
- Viu? O mesmo de sempre.
- Mas o que é, então? A gente se dá mal?
- Não, Paul. Você sabe que a gente se entende perfeitamente. Você até chorou assistindo Titanic comigo. Coisa mais linda.
- É meu ronco? É isso?
- Nada a ver. Eu gosto do seu ronco. Me faz sonhar que tô na selva.
- Então é por causa daquela minha cueca furada.
- A cueca furada te dá um charme especial, meio rústico.
- E é o quê, então?
- Não é nada. Só achei que precisava de uma troca na minha vida.
- E por que não foi aprender a trocar pneu de carro?
- Não dá pra exagerar, né? Trocar de marido é mais fácil.
- Mas, Virginie, de onde veio essa idéia? Ficou maluca?
- Foi a Marie que começou tudo, ano passado. Tava meio entediada e trocou o marido por um garotão 10 anos mais novo. Hoje está ó-ti-ma, super feliz, com pele e unhas lindas.
- E aí você resolveu embarcar nessa...
- Não só eu, mas todas as nossas amigas. Sabe, Paul, acho que você também está precisando de tomar resoluções arrojadas. Vão te fazer bem.
- Olha, acho que você tem razão, Virginie.
- Claro que tenho. Você vai ver como vai se sentir mais leve.
- Pois é. E acabei de decidir qual será minha resolução de ano novo.
- E qual é?
- Vou trocar hoje mesmo a senha do cartão de crédito.
- Do nosso cartão de crédito ilimitado?
- Do meu, você quer dizer.
- Credo, Paul. Por que você é sempre assim tão radical?

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Duas historinhas de Natal

Tia Sophie

A tia Sophie estava atrasada, mas todos sabiam que não tardaria a chegar. Ela era como o Papai Noel: só aparecia nas noites de Natal. E sempre trazia um peru para a ceia. No resto do ano, enfiava-se na sua casa, que ninguém sabia muito bem onde era, e não dava notícias.

Esperaram até um pouco mais tarde para começar o jantar e nada da tia Sophie.

- Melhor. Assim não tenho que aguentá-la me contar todas as doenças que teve no ano, como ela sempre faz - Falou Michelle, a dona da casa.
- E a velha nunca traz presentes - Disparou alguém.
- Pior é aquele peru seco que ela prepara.
- Horrível, horrível. Não desce nem com muito vinho.
- E a gente é obrigado a comer, para agradá-la.

Passaram para a sobremesa, e a tia Sophie não chegava. Decidiram abrir os presentes (na casa da família Collin, os presentes só eram entregues depois do jantar, pra "manter as crianças na mesa", como dizia Julien, o patriarca). No fim da distribuição, notou-se um pacote abandonado embaixo da árvore. Sem etiqueta, sem nome, sem nada. Como ninguém reclamou sua propriedade, Julien tomou a iniciativa de abri-lo.

Dentro, apenas um envelope com uma carta, que Julien tratou de ler.

"Minha família amada, aqui é a tia Sophie. E se vocês receberam essa carta é porque já não faço mais parte desse mundo."

Consternação geral. Todos se olham assustados.

"Quero dizer que vocês foram a maior alegria dos meus últimos anos de vida. Esperava ansiosamente pela noite de Natal, para poder dividir a ceia e os bons momentos com aqueles que mais amava."

Michelle deixa escapar uma lágrima e sente-se culpada por ter falado mal dela momentos antes. O mesmo sentimento é compartilhado por todos na sala, que baixam a cabeça numa auto-penitência. A voz de Julien fica embargada.

"Sempre vivi muito discretamente e escolhi morrer assim. Meu corpo foi cremado e todos os meus bens foram doados. Mas não poderia partir sem deixar um pouco de mim com vocês."

A família se olha e se abraça mutuamente, formando uma grande roda na sala. Philippe, sempre o mais emotivo, não contém o choro compulsivo.

"Por isso, junto a essa carta, deixo a receita do meu tradicional peru de Natal, que cozinhei com muito gosto por mais de 60 anos. A cada vez que vocês o fizerem, saibam que estarei por perto. Com amor, tia Sophie"

Nessa hora, Alain, o primo bêbado, pega a carta da mão de Julien e a queima com seu isqueiro.

- Acho que ela não tem que se aborrecer em ficar voltando aqui todo ano. Deixa a velha descansar em paz.

A roda desfez-se rapidamente e nunca mais falou-se no peru de Natal da tia Sophie.

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Qualquer coisa

- Pierre, o que você quer ganhar de Natal?
- Ah, qualquer coisa tá bom.
- Qualquer coisa?
- É.
- Uma caixa de bombons, por exemplo?
- Uma caixa de bombons não, Danielle. A gente tá falando de presente de verdade. Caixa de bombons não é presente de verdade, porque você come todos os bombons e depois fica sem nada. O máximo que você guarda pra depois é a barriga, que vai ficar maior.
- Então não é qualquer coisa o que você quer.
- Tá bom. Qualquer coisa menos uma caixa de bombons.
- E uma calça nova?
- O que tem de errado com as minhas calças?
- Não tem nada de errado, mas uma calça nova e bonita é um bom presente.
- Eu só compro minhas calças em liqüidação*. Não vou gastar meu presente de Natal assim, com uma calça nova. Seria um desperdício. Coloca na lista aí: qualquer coisa menos caixa de bombons e uma calça nova.
- Uma viagem à Côte d'Azur! Ça te dit?
- Você ainda não sabe que eu detesto viajar? Sair de Paris pra quê? Aqui tem tudo o que eu mais gosto na França: croissant e mau humor.
- Mas você é difícil, hein?
- Eu gosto de qualquer coisa. Só não quero caixa de bombons, calça nova ou viagem.
- Esse seu qualquer coisa está ficando é bem restrito.
- É só pensar melhor.
- Já sei: um perfume.
- Perfume? E homem usa perfume, Danielle? Perfume é coisa de mulher.
- Quer saber? Vai ficar sem presente. Você é muito chato. Enquanto você pensa no que quer, eu vou pra cozinha fazer um chá.

Pierre chega na cozinha.

- Faz um pra mim também?
- Você não tá merecendo, mas eu faço. Quer de quê?
- Qualquer um.
- Erva cidreira tá bom?
- Ah, não. Erva cidreira?

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* Pobre trema, em breve morto.

ps: outra crônica natalina minha bem aqui.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Paris para crianças II

Outro dia nevou em Paris. Aí eu perguntei pro meu pai o que que era a neve. Ele disse que era o gelo bem fino que caía do céu. E eu perguntei se tinha congelador nas nuvens, pra poder fabricar o gelo. Meu pai disse que não era preciso, pois ficava tão frio lá em cima que a água congelava sozinha. Aí eu me lembrei que na nossa geladeira a água congelada vira uma pedrona de gelo e perguntei se no céu tinha uma máquina pra quebrar esse gelo em um montão de pedacinhos, pra virar neve fininha. Ele disse que queria ver o jornal e que falava sobre isso depois.

Percebi que o meu pai não sabia nada sobre neve e fui perguntar pro meu irmão mais velho, que é tão grande que consegue encostar o pé no chão quando senta na cadeira. Ele falou que a neve era um fenômeno meteorológico que fazia cair cristais de gelo. Aí eu perguntei pra ele o que era meteorológico e ele disse que eu era burra. Então eu chorei bem alto e forte e minha mãe veio perguntar o que tinha acontecido. Eu disse que o João tinha me chamado de burra e minha mãe falou pra ele ir pro quarto. Mas aí eu fiquei sem saber o que é meteorológico.

E quando minha mãe fazia um café com leite bem quentinho pra mim eu perguntei também pra ela o que era a neve. Ela me explicou que eram os vapores de água que se congelavam, lá em cimão, nas nuvens bem altas. Aí é que eu não entendi nada mesmo, pois pra mim o vapor é quente. Pelo menos é o que a minha mãe sempre me diz quando eu chego perto do fogão pra ver a chaleira soltando aquela fumaça. Ela diz "sai daí, Gabriela, esse vapor vai acabar te queimando". Eu também começo a achar que a minha mãe não entende muito das coisas. Se o vapor é quente, como é que ele não derrete a neve?

Sabe, eu nunca desisto de uma pergunta. A professora da escola diz que eu tenho espírito de cientista, porque eu gosto de saber tudo em detalhes. Mas não é nada disso. É que os adultos falam bobagens para as crianças, talvez com medo de que a gente não entenda a explicação de verdade. Mas o que eu acho mesmo é que eles nunca sabem as respostas, então inventam uma história qualquer. Ou então dizem "olha, é complicado explicar isso", "você ainda não tem idade pra saber", "depois da novela a gente conversa", "pergunta pro seu pai", "pergunta pra sua mãe" e esse tipo de coisa.

Por isso eu fui perguntar pro Mathieu, que é meu amiguinho da escola. O Mathieu é muito inteligente. Ele já consegue até amarrar o cadarço do tênis sozinho. Outro dia eu consegui também, mas depois minha mãe ficou reclamando comigo, dizendo que eu tinha dado tantos nós que mais parecia uma teia de aranha aquele cadarço e que ela ia ter que cortar tudo com a tesoura e comprar um novo. Pra mim estava bem bonito.

E o Mathieu falou que a neve era o que os adultos usavam para fazer o sorvete. Mas que eles guardavam esse segredo bem guardado que era pras crianças não tomarem sorvete o tempo todo. Aí eu perguntei pra ele como é que o sorvete chegava em um país quente como o Brasil sem derreter. E ele disse que todo o sorvete do mundo era feito nos países frios e depois era transportado em geladeiras muito grandes dentro de navios muito grandes.

Aí eu tive uma idéia muito muito boa. Falei pro Mathieu que quando a gente for grande pode pegar um avião, voar bem lá no alto e jogar sabores diferentes em cima das nuvens. Aí não vai nunca mais cair neve. Vai cair sempre sorvete, já prontinho. O Mathieu adorou a idéia e até já falou que vai ser piloto de avião pra gente poder fazer isso sem pedir a ajuda de ninguém. Aí eu falei que já que a gente ia ficar rico podia se casar e ter muitos filhos. E nessa hora ele saiu correndo pro parquinho. O Mathieu pode ser muito inteligente, mas às vezes ele ainda é um pouco imaturo.

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Leia também: Paris para crianças

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Questão cavalar

- Bonjour.
- Bonjour. O que vai querer hoje?
- 300 gramas de carne moída.
- Très bien, du steak haché! De boi ou de cavalo?
- Comment?
- Perguntei se o senhor quer carne de boi ou de cavalo.
- Como assim, de cavalo?
- Cavalo. Aquele animal que relincha e mostra os dentes. Muito visto nos filmes de bangue-bangue americanos, quase sempre com um índio em cima.
- Que por sinal acaba sempre morrendo.
- O cavalo?
- O índio, no caso. Ainda mais se o John Wayne estiver no filme.
- Pois bem. O senhor conhece o animal.
- Que animal, o John Wayne?
- Não, céus, o cavalo.
- Pessoalmente, de freqüentar a casa, telefonar, dividir uma cerveja, não. Mas sei do que você está falando.
- Então, qual carne moída você quer?
- Como vocês conseguem fazer isso?
- Não é difícil. Tem uma máquina bem ali que mói.
- Não é disso que eu falo.
- E do que é?
- Como vocês têm coragem de comer carne de cavalo?
- Ué. Os chineses não comem cachorro?
- Nesse caso é compreensível. Eles têm os olhos fechados. Devem achar que é filé mignon.
- E a Lapônia? Um amigo meu mora lá e me contou que eles adoram fígado de rena.
- Deve ser por isso que tantas crianças não recebem presentes de Natal, com tamanho desfalque na equipe do bom velhinho.
- E ainda tem a Venezuela, onde eles se estapeiam por um prato cheio de tarântulas.
- E palitam os dentes com as pernas delas depois da refeição?
- Tudo isso pra você ver que é normal que a gente coma carne de cavalo. Uma questão puramente cultural.
- Não me convenceu.
- Mas por quê?
- Porque não dá pra comer. Simples assim.
- Já provou?
- Tá doido?
- Devia. Você vai adorar.
- Eu não. Vai que acordo trotando.
- Você é que sabe.
- Bom, obrigado assim mesmo. Vou pra casa me virar com os restos do ensopado de coração de galinha de ontem.
- Coração de galinha?
- É.
- Eca.
- Qual o problema?
- Eca, eca!
- Não, qual o problema? Já provou?