Eu tinha tinta até no cabelo. Vai inventar de pintar e reformar uma casa sem nunca ter feito isso antes. Aí a campainha toca.
- Bonjour.
- Bonjour.
- Sou a vizinha de vocês. Moro embaixo.
- Enchanté.
- Enchantée.
- Estou fazendo muito barulho?
- De jeito nenhum. Só vim dar as boas vindas a vocês, e estabelecer um pacto.
- Comment?
- Um pacto de boa convivência. Se você tiver qualquer reclamação ou observação sobre barulhos e incômodos, fala comigo. E eu faço o mesmo. Assim é mais fácil, né?
- Très bien, madame. Façamos assim, alors.
Eu achei a coisa mais simpática do mundo. No prédio onde residíamos antes, a moradora de baixo tinha o hábito de surrar o teto com a vassoura, pra reclamar de ruídos. Eu nunca vi seu rosto, mas sou capaz de jurar que ela tinha umas 3 ou 4 vassouras diferentes, e escolhia a que iria utilizar de acordo com seu nível de insatisfação. A mais macia era para os momentos de pequenos burburinhos, e ela esfregava sua palha no teto, sem muito alarde. A mais grossa era para festas e reuniões, e sacudia tanto o chão que dava a impressão que o prédio ia desabar.
- Corra, corra. Tá tudo caindo!
- Nada, é só a vizinha das vassouras.
Feliz com essa relação mais civilizada, passei a cruzá-la frequentemente, no elevador, na rua, no marché d'aligre. E ela, uma senhora com seus sessenta anos, sempre sorridente. Um dia, quando fazia buracos na parede, a campainha toca. Era ela de novo.
- Bonjour madame. Tô incomodando?
- Que nada, que nada. Só vim para pedir para vocês, à noite, fazerem menos barulho durante o banho. O pacto, sabe?
- Sim, o pacto.
- É que as paredes desse prédio são finas, e dá pra escutar tudo da minha casa.
- E o que seria fazer menos barulho?
- Nada de mais. Só não colocar música ou conversar a partir de onze da noite. Esse tipo de coisa.
Dessa vez achei estranho. Não sou do tipo de soltar a voz embaixo do chuveiro. Eu mesmo não suportaria, confesso. Ainda assim tentei atender ao pedido, prestando atenção quando estivesse no banheiro.
Só que não adiantou muito.
Uma ou duas semanas depois, ao voltar de uma festa, fui tomar um banho. Eram duas da manhã, ou mais. No meio da ducha, começou aquele barulho seco, característico, que eu seria capaz de reconhecer em qualquer apartamento do mundo: a vassoura da vizinha de baixo. Mas não era só uma, dessa vez era como o Olodum, umas dez. Possivelmente com um ou dois rodos fazendo o contratempo. Sei lá de onde ela tirou tanta mão. Parecia que tinham aberto a porta do zoológico. E ela vinha na frente, junto com os elefantes. Desliguei a água e deu pra escutar a voz dela, esganiçada, chegando pela ventilação comum dos banheiros.
- O pacto! O pacto, putain de merde! O pacto!
Desliguei o chuveiro. E no dia seguinte cruzei com ela na feira. Fingiu que não me viu. Eu fiz o mesmo. O pacto dançou. E eu é que não vou lá na casa dela tomar satisfação. Com tantas vassouras assim, vai que é uma bruxa.
Há 2 dias