sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O pacto

Eu tinha tinta até no cabelo. Vai inventar de pintar e reformar uma casa sem nunca ter feito isso antes. Aí a campainha toca.

- Bonjour.
- Bonjour.
- Sou a vizinha de vocês. Moro embaixo.
- Enchanté.
- Enchantée.
- Estou fazendo muito barulho?
- De jeito nenhum. Só vim dar as boas vindas a vocês, e estabelecer um pacto.
- Comment?
- Um pacto de boa convivência. Se você tiver qualquer reclamação ou observação sobre barulhos e incômodos, fala comigo. E eu faço o mesmo. Assim é mais fácil, né?
- Très bien, madame. Façamos assim, alors.

Eu achei a coisa mais simpática do mundo. No prédio onde residíamos antes, a moradora de baixo tinha o hábito de surrar o teto com a vassoura, pra reclamar de ruídos. Eu nunca vi seu rosto, mas sou capaz de jurar que ela tinha umas 3 ou 4 vassouras diferentes, e escolhia a que iria utilizar de acordo com seu nível de insatisfação. A mais macia era para os momentos de pequenos burburinhos, e ela esfregava sua palha no teto, sem muito alarde. A mais grossa era para festas e reuniões, e sacudia tanto o chão que dava a impressão que o prédio ia desabar.

- Corra, corra. Tá tudo caindo!
- Nada, é só a vizinha das vassouras.

Feliz com essa relação mais civilizada, passei a cruzá-la frequentemente, no elevador, na rua, no marché d'aligre. E ela, uma senhora com seus sessenta anos, sempre sorridente. Um dia, quando fazia buracos na parede, a campainha toca. Era ela de novo.

- Bonjour madame. Tô incomodando?
- Que nada, que nada. Só vim para pedir para vocês, à noite, fazerem menos barulho durante o banho. O pacto, sabe?
- Sim, o pacto.
- É que as paredes desse prédio são finas, e dá pra escutar tudo da minha casa.
- E o que seria fazer menos barulho?
- Nada de mais. Só não colocar música ou conversar a partir de onze da noite. Esse tipo de coisa.

Dessa vez achei estranho. Não sou do tipo de soltar a voz embaixo do chuveiro. Eu mesmo não suportaria, confesso. Ainda assim tentei atender ao pedido, prestando atenção quando estivesse no banheiro.

Só que não adiantou muito.

Uma ou duas semanas depois, ao voltar de uma festa, fui tomar um banho. Eram duas da manhã, ou mais. No meio da ducha, começou aquele barulho seco, característico, que eu seria capaz de reconhecer em qualquer apartamento do mundo: a vassoura da vizinha de baixo. Mas não era só uma, dessa vez era como o Olodum, umas dez. Possivelmente com um ou dois rodos fazendo o contratempo. Sei lá de onde ela tirou tanta mão. Parecia que tinham aberto a porta do zoológico. E ela vinha na frente, junto com os elefantes. Desliguei a água e deu pra escutar a voz dela, esganiçada, chegando pela ventilação comum dos banheiros.

- O pacto! O pacto, putain de merde! O pacto!

Desliguei o chuveiro. E no dia seguinte cruzei com ela na feira. Fingiu que não me viu. Eu fiz o mesmo. O pacto dançou. E eu é que não vou lá na casa dela tomar satisfação. Com tantas vassouras assim, vai que é uma bruxa.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

As aventuras de Mané le coiffeur

Ele chegou a Londres no mesmo avião que Caetano e Gil, em 1969. Porém, enquanto estes eram exilados políticos, nosso personagem viajou só pelo oba oba, e principalmente por todo o desbunde que uma passeada pela Europa poderia proporcionar. Mas, ao descer na capital inglesa, ficou horrorizado com os cortes de cabelo dos compatriotas da rainha, "aquela coisa très cafona", e decidiu embarcar na mesma hora para Paris.

Logo apaixonou-se pelos impecáveis cortes franceses, e também pelo padeiro Jean Pierre, "que me deu muito, e quando eu mais precisava". Assim o baiano Manuel Melo Pinto resolveu fixar-se na França, de onde nunca mais tirou os pés, dedicando-se ao estudo da engenharia capilar, como diz. Em pouco tempo abriu um salão.

Por sugestão de JP, o Jean Pierre, decidiu adotar o nome "Mané le coiffeur". Idéia que venceu fácil outras como "Manuca da peruca" e "Manuel, rei do gel". O último, aliás, ele guardou para utilizar apenas com JP, "o único a entender seu mais profundo significado". Juntando o savoir faire francês e o exotismo brasileiro, logo conquistou uma respeitável - ou nem tanto - clientela. Teve um dia em que um ex-jogador da seleção francesa apareceu por lá.

- Posso sentar?
- Normalmente sou em quem sento. Mas só hoje vou abrir uma exceção pra você.
- Tô falando da cadeira, pra cortar o cabelo.
- Mas que falta de criatividade...
- Comment?
- Nada. Senta, santa. Como vai ser?
- É pra cortar.
- Mas é claro que é pra cortar, né? Ou você acha que veio até aqui só pra ficar olhando essa minha carinha de botox? Eu quero saber qual tipo de corte você quer.
- E tem isso, é?
- Bien sûr, mon amour. Olha aqui o menu. Pra você, que tem cabelo curto, eu sugiro experimentar o Charles de Gaule, que consiste em uma ligeira desapropriação lateral, seguida de uma consequente valorização da massa capilar superior. É bastante requisitado por celebridades que desejam passar um ar mais militar, mais belicoso. E também por dançarinos de boite gay.
- Não gostei.
- Outro muito pedido é o Escargot à la Mer.
- Como é esse?
- Eu embebedo seu chumaço com gel, e depois executo movimentos circulares com uma brossa, segurando na outra mão um aparelho de ventilação quente forçada. L'effet c'est divin!
- Mas isso não é fazer uma escova com secador?

Mané deu um pescotapa no sujeito.

- Cala-te! Escova é para cabeleireiros. Eu sou engenheiro capilar.
- Bom, esse corte não combina mesmo comigo. No seu menu não tem nada pra jogador de futebol?
- E você entende de bola, é?
- Um pouco.
- Chocrível! (As gírias de Mané le coiffeur são as mesmas desde os anos 60). Tenho uma opção par-fai-te pour toi. É uma extração circular de madeixas, na altura da abóboda craniana, preservando a extensão do conjunto restante. Antigamente era chamado de São Francisco, mas por razões comerciais mudei para La Tête à Zidane, A Cabeça de Zidane.
- Eu lembro bem desse corte que o Zidane usava em 98. Sempre dizia para ele mudar aquilo.
- Hã?
- Eu falava para ele raspar tudo, quando a gente jogava na seleção de 98. E foi o que ele fez depois.

Mané le coiffeur já é muito mais francês do que brasileiro. Menos quando o assunto é futebol.

- Quer dizer então que você jogou com o Zidane na seleção?
- Sim.
- Então eu tenho um corte ideal, na medida para o seu pescoço.
- Pescoço?
- Cabeça, cabeça.

E passou a navalha com força na nuca do coitado, que falou por entre os dentes.

- E qual é esse corte?
- É o Louis XVI, no qual eu ceifo todo o seu cabelo, com uma única e rápida incisão de navalha, logo abaixo da linha do queixo.
- Ei, olha ali o Platini!
- Onde?

Aproveitando a distração, o ex-jogador deu um rápido drible de corpo e escapou rapidinho pelas ruas. Mané ainda teve tempo de gritar.

- Volta. É por conta da casa.

Ele não voltou.


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Em breve, mais histórias de Mané le coiffeur

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Les soldes

As liquidações francesas, chamadas les soldes, acontecem duas vezes por ano - no verão e no inverno -, e são o momento da catarse coletiva no país. Quase todas as lojas participam dessa orgia capitalista, que tem dia e hora marcados para começar. É aí que muitos acabam perdendo a razão.

- Preparada, Anne?
- Tô. E você, Maurice?
- Preparadíssimo.
- Eles já vão abrir as portas.
- Eu sei, eu sei.
- Não se esqueça: você corre pela direita e eu corro pela esquerda. E cada um sai pegando o que puder.
- A gente já ensaiou isso em casa um milhão de vezes.
- É que você nunca se lembra o seu lado.
- E você, lembrou de passar aqui ontem?
- Passei, e escondi tudo o que a gente queria.
- Escondeu bem?
- Escondi.
- Separou pra mim aquele conjunto de três cuecas com a estampa do Napoleão?
- Claro.
- Colocou lá no alto?
- Como a gente tinha combinado. Mas acho que ninguém mais vai se interessar por isso.
- Nunca se sabe... Anne, olha atrás de você.
- O quê?
- A de chapéu vermelho. Tentando passar na sua frente.
- Ah, mas aqui não passa mesmo.

Sem se mexer muito e demonstrando habilidades que Maurice não conhecia, Anne resolve a situação.

- Pronto! Ela não incomoda mais.
- Eu acho que você exagerou.
- Exagerei nada. Uma pisadinha de leve no pé.
- A pisadinha não tem problema. Mas você não precisava ter enfiado o batom no olho dela ao mesmo tempo.
- Foi um batonzinho vermelho básico. É bom que combina com o chapéu.

Enquanto Anne guarda o batom na bolsa, Maurice observa a multidão em torno deles.

- Putain, olha ali o meu chefe!
- Onde?
- Ali, todo espremido naquele canto, já comendo o boné do Mickey do cara da frente.
- É ele mesmo. Abaixa, Maurice, abaixa.
- Ele não pode me ver. Falei que estava doente, pra não perder o começo dos soldes.
- Fica aí até ele ir embora.
- Anne...
- Hã?
- Vem aqui embaixo. Me ajuda a amarrar o cadarço desse pessoal, assim a gente tem uma vantagem na partida.
- Boa. Mas e aquela ali, de botas?
- Toma. Passa essa fita adesiva que eu trouxe exatamente pra esses casos.

Anne levanta-se e constata que o chefe de Maurice desapareceu, mas a aglomeração duplicou de tamanho.

- Pode vir, Maurice.
- Ele sumiu?
- Sumiu. Ao que parece, foi engolido pela peruca laranja daquela moça com cara de assistente social, ao lado do senhor que equilibra o filho e o cachorro em pé sobre a sua cabeça.
- Melhor. Assim podemos fazer as compras sem medo de sermos pegos.

Nesse momento, um funcionário abre as portas da loja. Quem passasse por ali sem saber do que se tratava certamente imaginaria que um leão havia fugido do circo. A multidão entra toda ao mesmo tempo, Anne e Maurice inclusos. E todo mundo fica bloqueado na seção de sapatos, a primeira da loja, sem possibilidade de movimentação.

Colada na estante das sandálias, Anne consegue mover alguns dedos até pegar um par exatamente do seu tamanho.

- Maurice, você consegue alcançar minha mão?
- Acho que sim.
- Segura esse par aqui. Um achado!
- Mas Anne, isso está infernal. Não dá pra mexer.
- Não reclama, Maurice. 70% de desconto. Não reclama.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Praça da Bastilha, -5ºC


Foi duro sair de casa. Como aliás tem sido nessa época, com os termômetros marcando -5ºC. O curioso é que depois da semana mais gelada dos últimos anos em Paris, quando nevou como há tempos não nevava e chegou a fazer -10ºC, você começa a escutar com uma certa simpatia as previsões meteorológicas que indicam 0ºC para o fim de semana.

- Vai comer ou beber? - Perguntou o garçom negão do café na praça da Bastilha. Exatamente lá onde um dia existiu a famosa prisão, que caiu junto com a monarquia. Pelo sotaque, ele vem de uma das colônias que a França ainda mantém, e insiste em chamar de "territórios além-mar". Apenas um novo nome para uma prática milenar.

Chega o meu café, e a conta ao mesmo tempo. Aqui, eles fazem assim. O copo d'água ele esqueceu. Tenho que lembrá-lo. Logo volta com a água e diz que precisa "encaisser". Como "la caisse" significa "o caixa" em francês, uma possível tradução para o termo seria "encaixar", ou simplesmente cobrar a conta. Encaixar um café a 2,60 euros - 9 reais! - deveria ser motivo para uma nova revolução francesa. Ainda mais com Nicolas Bonaparte no poder, como exibe a montagem fotográfica na capa de uma revista.

Na mesa ao lado, uma senhora pede mais um bule de chá, provavelmente aguardando alguém que não chega. Solidarizo-me. Não com a que espera, mas com a que está atrasada. Pois eu, bom brasileiro, também não sou um especialista em chegar no horário.

Mais na frente, uma outra senhora parece ter visto uma assombração. Ou talvez a assombração seja ela, de tão branca que está, entupida de maquiagem. Considero seriamente a hipótese de ela ser um dos fantasmas que habitam nas redondezas desde a época em que Danton e Robespierre perderam suas cabeças.

Em uma outra mesa, no canto, duas japonesas se esforçam para ler o cardápio. Apontam para um item, riem com a mão na frente da boca e saem sem pedir nada. Eu, mesmo sabendo que provavelmente precisarei hipotecar a casa que ainda nem tenho para poder pagá-lo, peço um chocolate quente.

- Monsieur, un chocolat chaud!
- Un coca?
- Non, un chocolat!

O chocolate chega, e a fatura também, que o garçom cuida de colocar virada para baixo. Desviro. 4,50. Viro de novo.

O casal apaixonado ao meu lado acende um cigarro. Há um ano começou a valer a lei que interdita o fumo em lugares fechados. Mas onde estou, uma varanda na calçada cercada por toldos e que fica ao ar livre nos meses mais quentes, é considerado o lado de fora. Mesmo se não há circulação de ar. Quem disse que não existe o jeitinho francês de burlar a lei?

Apesar do clima gélido, dois alemães loucos (ou dois escandinavos loucos) passam ao lado fazendo cooper, de calça de moletom e camiseta. E dois chineses com frio (ou dois coreanos com frio, sei lá) vêm do lado oposto, segurando com as duas mãos seus copos enormes de café da rede americana Starbucks. Outra mentira sobre os franceses é que eles são antiamericanos radicais, apesar de muitos ainda tentarem resistir à invasão ianque. A prova é a quantidade de McDonalds, sempre cheios, espalhados por Paris, singelamente chamados de macdô.

Às 17h em ponto o garçom avisa que acabou seu horário de serviço e sai encaixando todo mundo. No sentido francês da palavra, é claro, oras.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Breve história nasal da França

Como todos sabem, a França foi fundada por Asterix, o herói narigudo que tinha Obelix como parceiro. Obelix não possuía uma fuça tão avantajada como a de seu comparte, mas compensava o fato com a grandeza de sua pança. Os três, Obelix, Asterix e seu narix, derrotaram os romanos e preservaram a integridade do território gaulês.

A partir da idade média, o país passou a ser governado por reis. Um deles, Luís XIV, adorava enfiar o nariz onde não era chamado. E um dia soltou a famosa frase "quem peidou aqui?", seguida de outra menos conhecida, "o estado sou eu". Mas foi seu herdeiro, Luís XVI, quem pagou o pato, quando veio a Revolução Francesa e o monarca perdeu o nasal e a cabeça. Ao mesmo tempo.

Nesse interim (texto com pretensão histórica tem que ter a palavra interim, para passar um mínimo de credibilidade) nasceu Napoleão. Dizem que ele colocou as ventas pra fora de sua mãe e falou "isso não está cheirando bem". Depois deram um banho na progenitora, o que amenizou um pouco o problema. Mas a impressão de que algo fedia na França continuou nas idéias e nas narinas do sujeito, e ele decidiu que seria imperador. Não contente com aquele cheiro de camembert que imperava no país, Napoleão saiu atrás de novos ares, conquistando tudo o que encontrava pela frente. Exatamente por olhar apenas para a própria protuberância, não percebeu que os ingleses chegavam por trás. E dançou.

Mas os franceses têm uma capacidade de entrar em confusão comparável apenas ao tamanho de suas fuças, e meteram-se em duas guerras mundiais. Na segunda, foram salvos graças à intervenção do General De Gaulle, dotado de uma capacidade estratégica e de uma tromba invejáveis. Dizem que De Gaulle metia muito medo nos seus adversários, principalmente quando ameaçava espirrar.

Após tantas batalhas, eles decidiram investir em outras áreas, como cinema e esportes. Na primeira, o ator Gérard Depardieu fez suspirar metade das mulheres do mundo, com seus dois órgãos sexuais, um deles pendurado entre os olhos. E na segunda viram surgir o campeão de fórmula 1 Alain Prost, que faturou quatro títulos mundiais. Devido à sua napa, Prost largava sempre em primeiro, mesmo que estivesse na última fila. Depois dele, as regras do esporte foram mudadas. Para ser declarado vencedor, passou a ser exigido que o carro atingisse antes a linha de chegada. E não o piloto.

Hoje em dia, a França continua honrando sua tradição de criar personalidades com um grande sugador de oxigênio, tanto que é presidida por Nicolas Sarkozy. E mesmo que muitos dos franceses já torçam o nariz para ele, ao se casar com a Carla Bruni o baixinho mostrou que pelo menos para as mulheres tem um ótimo faro.