sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Autour de Paris XV - Torre Montparnasse


Como fazem todos os anos desde que se conhecem, eles passam o réveillon no último andar da torre Montparnasse, de onde têm uma visão privilegiada de Paris. Absortos, observam a neve que cai em grossos flocos. Até que a contagem regressiva coletiva os traz de volta ao mundo real. Eles se olham nos olhos, sem nada dizer.

- Dix!

Ele pensa: Não acredito. Outro ano inteiro passado com essa aí. Quando esse inferno vai terminar?
Ela pensa: O que eu estou fazendo ao lado ele? Isso é autopenitência.

- Neuf!

Ele pensa: O Greg está passeando de barco no Caribe. O Vincent faz uma festa de arromba na casa dele.
Ela pensa: Por que deixei de ir ao jantar na casa da Véronique?

- Huit!

Ele pensa: No restaurante ali embaixo eles estão servindo foie gras e champagne. E eu aqui com essa mercadoria de terceira qualidade na minha frente.
Ela pensa: Vi na tevê que eles esperam 500 mil pessoas no Champs-Élysées. Pelos menos umas 400 mil devem ser mais interessantes do que este cidadão.

- Sept!

Ele esboça um sorriso com o canto dos lábios.
Ela levanta a sobrancelha em complacência.

- Six!

Ele pensa: Batom no dente. Ela sempre tem batom no dente. É medonho.
Ela pensa: O hálito dele hoje está ainda pior. O bafo do faraó.

- Cinq!

Ele pensa: E esse vestido vermelho? Que coisa mais brega. Tá um tonel e fica usando roupa colada.
Ela pensa: Todo ano ele coloca esse terno xadrez e essa camisa de listras. Nunca vi alguém com tão mau gosto.

- Quatre!

Ele pensa: A meia dela está rasgada. Tem banha escapando pelo furo.
Ela pensa: O corcunda de Notre-Dame jogou fora esse sapato que ele está usando hoje.

- Trois!

Ele respira fundo.
Ela suspira.

- Deux!

Ele pensa: Se ela caísse daqui de cima, quase sem querer, pareceria suicídio.
Ela pensa: Intoxicação com ostras estragadas só mata 48 horas depois. Dá tempo de eu me mandar pra outro canto do mundo.

- Un!

Ele pensa: Tomara que ela desapareça quando 2011 começar.
Ela pensa: Tomara que ele desapareça quando 2011 começar.

- Bonne année!!!

Ele a pega nos braços, como em um passo de tango.
Ela vira a cabeça pra trás.
Ele a beija como nunca e aperta sua bunda.
Ela dá uma reboladinha.

Ele diz: Vamos embora dessa festa chata.
Ela diz: Só se for pra nossa cama.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Autour de Paris XIV - As catacumbas


Na noite de Natal, dois casais de turistas brasileiros estão perdidos nas catacumbas de Paris. Como companhia eles têm os 6 milhões de esqueletos ali guardados.

Santina (mulher do Klaus), iluminando o próprio rosto com a única lanterna que eles possuem - Quero saber o que vamos fazer agora. Quem vai ter a próxima idéia genial?

Klaus – É, quem vai ter?

Noel (marido na Natália, que vai aparecer mais pra frente) - Calma, Santina. Você tá mais ansiosa que madame em dia de liquidação.

Santina – Se você não tivesse inventado aquela história a gente não tinha se perdido.

Klaus – É, não tinha.

Noel – Tudo isso só porque chamei vocês em um canto pra encenar Macbeth com uma caveira na mão?

Santina – Hamlet, Noel.

Klaus – É, Hamlet.

Santina – Fez a gente se separar do grupo e ainda por cima recitou o texto errado.

Noel – Ué, não era “let it be, let it be, whisper words of wisdom, let it be”?

Santina – Claro que não. É “to be or not to be, that’s the question”. “Ser ou não ser, eis a questão”.

Klaus – É, a questão.

Noel – Mas agora não adianta ficarmos discutindo o texto das peças de Beethoven. Temos que pensar no que fazer. É noite de Natal, nossas famílias estão longe e ninguém vai sentir nossa falta até amanhã de manhã. Eu vejo duas soluções: a primeira é dormirmos aqui mesmo, no chão, com um de nós alternando na vigília.

Santina – Nem morta, Noel. Qual a segunda?

Noel – A segunda é disputarmos um concurso de sombras com as mãos. Eu faço um cavaleiro montado em um dragão cuspindo fogo e saltando corda que é imbatível.

Santina – Noel, não estou para brincadeiras.

Klaus – É, não estou.

Noel – Tem idéia melhor?

Santina – Acho que devemos continuar andando. Vamos acabar encontrando o grupo.

Noel – A essa hora eles já foram embora. E além do mais estamos andando em círculos. Tem um esqueleto ali atrás que até me reconhece. Já me fez sinal de positivo duas vezes.

A lanterna dá a primeira piscada.

Santina – Jesus Cristo!

Klaus – É, isto.

Noel – Precisamos pensar em algo. Estamos a 20 metros embaixo da terra. Os telefones não funcionam. A lanterna vai pifar em breve. Se gritarmos ninguém vai escutar. E o pior é que eu vou perder o Natal do Faustão, que vai passar ao vivo na internet.

Santina, fazendo boca de choro – Não posso morrer agora! Eu tenho três filhos, cinco cachorros e um panettone me esperando.

Noel – Se tivesse um panettone me esperando eu preferia ficar por aqui mesmo.

A lanterna dá a segunda piscada, dessa vez mais longa. Natália, que é engenheira eletrônica formada pelo ITA e tem conhecimentos avançados em informática, pega todos os celulares e vai pra um canto improvisar uma bricolagem. Volta dois minutos depois.

Natália – Consegui fazer uma pilha super forte somando as baterias dos nossos celulares. Desmontei os aparelhos e com a ajuda de um grampo de cabelo coloquei-os em conexão. Assim as antenas também somaram potência e deu pra captar um sinal de rede vindo do lado de fora. Bem fraco, mas suficiente para eu conseguir enviar um e-mail curto para nossas famílias no Brasil, avisando-os da gravidade da situação e pedindo que tomem providência urgente. Fiz tudo isso antes que as baterias explodissem.

Noel – E o que você disse?

Natália – Estamos com probleminha. Favor gravar Natal Faustão. Beijos.

Santina – Ai, meu Deus, tenha piedade de nós.

Klaus – É nós!

E a lanterna pifa de vez.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Autour de Paris XIII - Biblioteca François Mitterand


Ele chega à enorme Biblioteca François Mitterand carregando dezenas de livros de poesia. Foi inventar esse mestrado de análise poética crítica e comparada pra quê?, é o que pensa diariamente ao ingressar no recinto.

Dessa vez, sua mesa de praxe está ocupada. Ele procura, mas só encontra vaga na seção de culinária. Suspira, instala-se lá mesmo e vai buscar outras obras para o seu estudo da semana, o destrinchamento de Les fleurs du mal, de Baudelaire.

Quando volta é que repara na linda japinha sentada na cadeira em frente à sua. Apesar de entretida em leituras sobre os segredos dos grandes chefs de cozinha, ela também o nota. Ele baixa os olhos de timidez. Ela levanta a cabeça. Ele fica amarelo. Ela faz um psiu. Ele se acha o cara mais sem sal do mundo. Ela dá um sorriso doce. Ele submerge na sua poesia. Ela retorna à culinária.

Ele é de poucas palavras próprias, mas é mestre em encontrar outros que falem bem por ele. E na hora em que a japinha levanta-se para buscar um livro, ele deixa Les fleurs du mal em cima da mesa dela, aberto no poema À une passante. E vai embora antes que ela retorne e ele não tenha coragem de encará-la.

Ailleurs, bien loin d'ici ! trop tard ! jamais peut-être !
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais !


(Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado — e o sabias demais!)


No dia seguinte, ele volta à biblioteca e vai diretamente à seção de culinária. Não escolhe a mesa do dia anterior, mas uma outra, nem tão perto e nem tão longe, de onde pode observar sem ser visto. Mas a japinha não está lá. E nem em canto nenhum, ele percebe, depois de vasculhar todas as salas.

Durante toda a semana ele retorna outra vez e outra e outra e não mais a vê. Procura em todas as seções, em todas as mesas, entre todas as prateleiras, pergunta a todos os bibliotecários e não descobre pista alguma.

Foi a poesia que a afugentou, pensa. Não, foi Baudelaire, reflete. Não, foi ele próprio, conclui. Ela deve ter odiado receber um elogio tão século XIX, na forma e no conteúdo. A poesia não serve de nada, amaldiçoa. Palavras bonitas não têm mais vez. E talvez nunca tenham tido. Não é à toa que os poetas românticos brasileiros morreram jovens, torturados pelo mal do século.

Ele sai, cabisbaixo. Do lado de fora, está tão compenetrado na própria imersão que quase não escuta o psiu sussurrado vindo do banco de concreto pelo qual acabou de passar. Levanta os olhos e a vê, a japinha. Fica completamente desconcertado e deixa escorregar todos os seus livros. O do Neruda cai aberto na página de Tu risa, um dos poemas que ele mais gosta. Ela o ajuda a recolher e lê em espanhol os primeiros versos.

Quítame el pan, si quieres,
quítame el aire, pero

no me quites tu risa

(Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não

me tires o teu riso.)

Ela sorri ainda mais docemente. Ele fecha o livro. Ela dá um bombom pra ele. Eles caminham juntos.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Autour de Paris XII - Square Léo Ferré


Em Paris é assim: virou a esquina, trombou com uma equipe de cinema. Às vezes uma rua inteira fica isolada para uma filmagem. E enquanto os técnicos preparam o set, o diretor e o elenco aguardam tranquilões na van. De vez em quando vou bisbilhotar.

- Quem tá na van?
- Lesse Hallström.
- A cachorra?
- Não, o diretor sueco.

Não tenho o menor talento pra representar. Acredito que estaria facilmente entre os 4 ou 5 piores atores da história, talvez na frente apenas do cigano Igor (abraço pra ele) e do Maurício Mattar. Mas ainda assim às vezes me pego imaginando se com um papel adequado e bem dirigido eu não descobriria um talento escondido e viraria um desses fenômenos que já chegam arrepiando, faturando Cannes, Oscar, Berlim e o escambau.

Daí que outro dia tinha um pessoal filmando em frente à creche da Louise, no square Léo Ferré. Passei por eles na ida e na volta e parei um pouco pra observar. Fiquei uns bons 10 minutos, puxei uma conversa fiada com um dos produtores sobre a enorme quantidade de produções cinematográficas simultâneas em Paris e sobre o que era aquele filme.

- Basicamente é o encontro de uma francesa com um estrangeiro.

No dia seguinte, eles estavam outra vez lá, na mesma hora. Eu butuquei de novo.

- É pra pegar a mesma luz, me contou o produtor. Filmaremos aqui a semana inteira.

Toda manhã eu passava com a Louise e na volta fazia um aceno pro carinha, que já me reconhecia.

- Bonjour!
- Precisando de um sotaque brasileiro, tamos aí. Se já tem um estrangeiro, por que não dois?

Na sexta-feira era o último dia das filmagens. Preparei Louise no seu carrinho, coloquei meu sobretudo novo, estilo Sgt. Peppers, e deixei-a na creche. Na saída, levantei as abas do casaco, fazendo um gênero meio Gainsbourg dos trópicos, coloquei as mãos no bolso e atravessei tranquilamente o set de filmagem. Se fumasse, era a hora perfeita de acender um cigarro. Aquele produtor tinha nas mãos a chance entrar pra história como o revelador do meu dom de ator. O figurino já estava pronto. Bastava uma ou duas frases bem colocadas, com um sotaque sob medida, e eu chamaria imediatamente a atenção do universo cinematográfico.

Ele grita.

- Ô, brasileiro.
- Opa, eu?
- É, você.
- Diga aí.
- Dá pra acelerar o passo, s'il vous plaît? Estávamos filmando e como você entrou no meio vamos precisar refazer a cena.
- Ah, claro, respondi, tropeçando.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Autour de Paris XI - Le Cirque d'Hiver


O Cirque d’Hiver, circo de inverno, é uma bela construção do século XVIII, perto da place de la République. Um desses lugares pelos quais vivia passando e nunca parado para conferir. Hoje resolvi conhecer, exatamente no dia em que Paris acordou sob a neve, exibindo um inverno que chegou antes do previsto.

Na esperança de me aquecer, decido enfrentar andando um percurso de pouco mais de 20 minutos. A tática não deu muito certo, é claro, e chego ao Cirque semi-congelado. Dou uma olhada rápida, afinal foi pra isso que vim, e me enfio no l’Autobus, o primeiro café que encontro. Solto um bonjour para o único cliente presente e interrompo a faxina do funcionário para pedir um chocolat chaud.

- Dos grandes, faz favor!

Assim como minha boca, minhas papilas gustativas estão adormecidas e eu não consigo dizer se o chocolate está muito ou nada doce. Na dúvida, sapeco uma pedra de açúcar. Está quente, então está bom.

Pela janela, observo o bar ao lado, Le Centenaire, onde um sujeito encapotado lê um livro e desobedece à regra básica da estação: ao entrar em um ambiente aquecido, tire toda a vestimenta pesada, para não sentir frio quando sair.

O outro cliente do Autobus puxa um papo qualquer com o atendente sobre nevascas no centro do país, veste seu sobretudo e ameaça ir embora. Abre a porta, recebe uma rajada glacial, volta para o seu lugar e passa longos minutos contemplando o infinito. Toma novamente coragem, levanta-se outra vez e parte.

Um estrangeiro – digo isso pelo seu sotaque – entra e pede um gim com Coca. São 3 da tarde e o servente diz que infelizmente não pode servir álcool a essa hora. O cidadão insiste, com uma fala lenta, argumentando que trabalhou 36 horas seguidas e precisa de algo forte para aquecê-lo.

- Désolé, mas não posso fazer nada, diz, enquanto no meu canto penso em como as estações determinam o ritmo de vida nos países temperados, você querendo ou não.

O inverno, o frio, a neve e o nariz escorrendo; as camisetas em malhas quentes, os casacos de lã, os sobretudos e a pele ainda assim arrepiada; as luvas, as echarpes, os gorros e as extremidades destemperadas; as meias finas cobertas por meias grossas, os calçados especiais e os pés escondidos e encolhidos, tudo isso faz parte de uma realidade que ainda não consegui entender e talvez nunca consiga.

Mas ao menos parei de brigar com ela.

Agora podemos ter uma relação de respeito, o inverno e eu.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Autour de Paris X - Strasbourg Saint-Denis


Raimundo Batista é mais conhecido como Raimundô Batistá, porque ninguém aqui consegue falar meu nome direito, ele diz. Ainda não encontrou em Paris um restaurante baiano que mate saudades da sua terra natal, então decidiu compensar com os indianos da rue du Faubourg Saint-Denis, que pelo menos na ardência não fazem feio.

Desce o prato do dia com uma porção dupla de curry forte, costuma pedir para contínuo espanto dos irmãos de Bangalore, donos daquela pocilga que chamam restaurante. Uma dose simples já é difícil encarar, duas só esse louco mesmo, os dois pensam quase em voz alta, enquanto se lembram que o curry deles é especialmente apimentado pra disfarçar a baixa qualidade do rango servido.

Para Raimundô não faz a menor diferença se a comida é boa ou ruim, o que importa é que a boca pegue fogo. Outro dia ele chegou falando que estava com a macaca e tal e queria um prato cheio daquela especiaria. Qual vai ser a refeição, perguntaram os indianos. Nenhuma, ele disse, só o curry mesmo e hoje vai ser puro.

Os irmãos nunca tinham visto uma coisa daquelas e chamaram tuodo mundo pra presenciar tão dessemelhante cena, cozinheiros, garçom, a moça feia do balcão e os clientes da casa, que vivia cheia porque era barata. Pára tudo porque um episódio desses merece platéia, disse o mais velho, contando com a instantânea aprovação do outro, que passou a chave no caixa e juntou-se aos demais.

O baiano sentou-se na mesa mais central do salão, pendurou um guardanapo na gola da camisa fazendo as vezes de babador e tomou dois copões d’água porque estava mais seco por dentro do que o sertão da Paraíba. Ninguém entendeu o comentário feito em português, mas mesmo que fosse em francês nenhum cidadão ali ouvira falar da Paraíba e muito menos do seu sertão. E depois todo mundo tava interessado era na capacidade do exótico magrela de bigode mandar pra dentro o pratão de l’enfer indien, o apelido do curry mais pungente das redondezas.

Raimundô nem ligou para o público e deu a primeira colherada. Sem piscar abocanhou logo a segunda. Um casal penteadinho começou a suar só de olhar aquilo, jogou 12 euros na mão de um dos indianos e foi embora sem terminar a refeição. Foi bom eles terem saído porque a notícia do brasileiro maluco já tinha corrido o bairro e tava assim de gente querendo entrar.

A terceira dose veio caprichada, com a colher transbordando, seguida da quarta, da quinta e da sexta. É o curry daqui que ele tá comendo, perguntou incrédulo um velho que havia perdido o começo da história. É sim, respondeu a senhora de vestido vermelho. Olha lá, os olhos dele tão inchando, gritou alguém do fundo. Nossa, disse um outro, seguido de vários oohh exclamados pelos presentes.

Os olhos estavam inchando mesmo e ficaram desse tamanho, as lágrimas escorrendo como rios. Ele chorava tanto que o prato ficou até molhado, e o pior é que começou a soluçar e uma hora até engasgou e cuspiu de volta o que tinha na boca. Vai morrer, esse doido vai morrer se continuar, isso é suicídio. Todo mundo estava horrorizado e fascinado com a cena.

Indiferente aos comentários, Raimundô foi até o fim da empreitada. Depois da última colherada, com os olhos a ponto de explodir, chamou um dos indianos, que veio estabanado.

Precisa de alguma coisa?

Sim. Traz outro desses.

E tirou da velha bolsa um saco de farinha de mandioca torrada, que guardara para ocasiões especiais, enquanto cantava ai que saudades eu tenho da Bahia e chorava copiosamente.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

Leia também o primeiro texto sobre Raimundo Batista, o mais louco motorista de táxi de Paris.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Autour de Paris IX - Les Galeries Lafayette


No 3º andar da megaloja Galeries Lafayette, um homem com seus 50 anos e barba por fazer passa por uma mulher da mesma idade, que passeia ao lado de um jovem adulto. Os dois param, se encaram e parecem não acreditar no que estão vendo.

- Nicolas?
- Leila?
- É você? Pensei que tivesse morrido. – Dizem ao mesmo tempo.
- Quanto tempo faz? Onze anos?

Nicolas olha a data no relógio. Deve ser a última pessoa na Terra a fazer isso.

- Faz onze anos amanhã, exatamente às 15h32.
- Seu safado, crápula, sem caráter. Me deixou esperando.
- Peraí, Leila. Você que fugiu. Eu fui ao banheiro e quando voltei você não estava mais aqui.
- Ao banheiro? Fiquei te esperando e você nunca mais voltou.
- Estamos nas Galeries Lafayette, Leila. Isso é um monstro que te engole e você nem percebe. Olha o tamanho da loja. Você já viu alguém encontrar qualquer coisa aqui em menos de quatro horas? Sabe quanto tempo demorei pra achar o banheiro? Dois dias. E depois mais três pra voltar ao nosso ponto de encontro.
- Isso é mentira, fiquei aqui plantada uma semana. Até porque nunca consegui achar a saída dessa loja.
- Você também?
- Como assim eu também?
- Você também não conseguiu? Passei onze anos procurando a saída desse lugar.
- Assim como você, também estou presa aqui desde o Natal de 1999, quando você teve a infeliz idéia de vir "comprar um presentinho" pra família Dupont, com quem íamos jantar.
- Não se preocupe com os Dupont, Leila. Eu avisei que chegaríamos atrasados.
- Teve uma vez que pensei ter encontrado a saída, mas era a despensa.
- A do 5º andar?
- Essa mesma. Fiz amizade com o controlador de estoque, que sempre me descola uns enlatados quase vencidos.
- Eu já eu tentei escapar seguindo um cliente.
- E aí?
- Ele se perdeu também.
- Pobre homem.
- Mas calma aí, Leila. Tem algo estranho nessa história. Como é que a gente nunca se encontrou?
- Você já viu o tamanho dessa loja, Nicolas? É um monstro que te engole e você nem percebe.
- Ei, essa frase é minha.
- Sua e de todo o pessoal do 3º subsolo.
- Você conhece o pessoal do 3º subsolo?
- Claro. Eles são os piores, coitados. Vieram pra inauguração e até hoje não conseguiram voltar pra casa. Acabaram locados por lá, fazendo serviços administrativos. Pelo menos pararam de morder os clientes.
- Ouvi falar desses casos.
- E você, Nicolas, trate de me explicar o que fez durante esses onze anos.
- Já que tava por aqui, arrumei uns bicos. Trabalhei um tempo na seção de gravatas e agora me instalei na divisão de bebidas. Área perigosa pra quem curte um copinho, como eu. Durante cinco anos cheguei até a ser o Papai Noel do 4º andar. Ou será que foi do 6º?
- Deve ser por isso que a gente não se esbarrou. Eu comecei nas lingeries e depois fui promovida pra seção de vestidos de noiva, aqui no 3º andar, onde tô até hoje.
- Carreira ascendente, a sua.
- Ô.
- Que orgulho de você, Leila.
- Você até também não se saiu mal. E eu pensando que tinha fugido com uma sirigaita qualquer...
- É claro que não. Mas você parece que se arranjou, né? Esse aí do seu lado tem idade pra ser seu filho.
- E é, Nicolas. Aliás, é seu também. Não o reconhece?
- Louis?
- Papai!

Emocionados, os três se abraçam e se beijam, enquanto o som ambiente da loja toca Love me Tender. A cena é interrompida por um cliente que os cutuca, pois eles estão atrapalhando o bom andamento da fila da seção de meias e cuecas.

- Vamos juntos procurar a saída? – Sugere Nicolas.
- Tenho uma idéia melhor: e se fôssemos à cobertura ver a mais linda vista de Paris? Conheço um ótimo atalho.
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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Autour de Paris VIII - A casa do Mubarak


O grande point do 8º arrondissement de Paris não é o Arco do Triunfo, com suas toneladas diárias de turistas e as 12 avenidas que ali se encontram e formam, segundo os parisienses, o balão mais complicado do mundo. Um balão que tive a ocasião de enfrentar a bordo do carro de Márcio Jacuzzi, atacante banheirista do Paristeama, que fez manobras em um espaço do tamanho de um guardanapo e demonstrou no volante uma habilidade em desviar de automóveis, ônibus, motos e velhinhas comparável à facilidade com a qual se desvencilha de defensores adversários. Talvez Jacuzzi possua mesmo o dom da escapada, mas o mais provável é que tamanha valentia se explique pelo fato de ser eu, e não ele, que estava no banco do carona, servindo de escudo no caso de acidente.

Não é tampouco o gigantesco obelisco de mais de 20 metros, que fazia parte do templo de Ramsés II e hoje está situado na place de la Concorde. Um monumento doado pelo Egito, segundo a França, e larapiado pela França, segundo o Egito. Tomando como verdadeira a segunda hipótese, há duas versões para o furto, ocorrido nos anos 1830. A primeira diz que os supostos ladrões se aproveitaram do exato momento em que entrou areia do Saara no olho do guarda da fronteira para embarcar o objeto em um navio. A segunda, mais crível, relata que um francês muito parecido com o Gérard Dépardieu (mas 150 anos mais jovem) passou carregando o obelisco nas costas, dizendo que estava ensaiando para as filmagens de Astérix e Obélix, que ainda nem haviam sido inventados mas fatalmente fariam grande sucesso no século XX.

A igreja de la Madeleine e suas grandes colunas de inspiração grego-romana também não são a principal atração do bairro. Impressionante construção que inicialmente seria um templo em honra às tropas de Napoleão, a Madeleine quase virou uma estação de trem e, por fim, acabou transformando-se em igreja católica. Fortes babados dão conta que o McDonald’s estaria prestes a adquirir o local. Mas o Papa Bento XVI teria negado o boato, alegando que o Pizza Hut chegou na frente e ainda ofereceu melhor cardápio infantil.

O grande point do 8º arrondissement de Paris é – prepare-se para uma grande tiração de onda – a casa de Hosni Mubarak, o presidente do Egito (olha o Egito aí de novo!). Pra ser mais preciso, todo o prédio de Hosni Mubarak, com sua escadaria de mármore e seus apartamentos gigantes e ultra luxuosos. Não, ele nunca me convidou pra ir lá, mas mesmo assim já fui incontáveis vezes, graças ao coletivo Jeudi Noir e à associação Macaq, que tomaram conta do lugar e ali fundaram o mais descolado squat de Paris. Além de abrigar pessoas que não têm onde morar, é palco das melhores festas da cidade. Graças a uma brecha nas leis francesas, os squats são completamente legais. O processo de expulsão dos moradores que se neles instalam leva cerca de 5 anos.

Na casa de Mubarak sempre tem algo acontecendo. Lá eu já assisti a shows de bandas tocando na sala, visitei uma instalação com um grande barraco montado na entrada do apartamento, acompanhei filmagens para o cinema e participei de uma roda de samba.

Também já passei um reveillon, quando fazia –5ºC do lado de fora e uns 35ºC do lado de dentro, de tanta gente que tinha. Em outra ocasião, fiz com um amigo um caldo de feijão para mais de 100 pessoas. E até fui DJ em uma festa afro-franco-brasileira, que só terminou porque o som era alugado e o dono da aparelhagem deu um piti e não quis prolongar a noitada.

É claro que um lugar desses só poderia estar na place Rio de Janeiro, localização que por si só explica muita coisa. Muita gente já participou dos sensacionais eventos que ali acontecem. Só quem ainda não apareceu foi o próprio Hosni Mubarak. Se ele ler esse texto, quero que saiba que está convidado a ir à próxima festa. Basta deixar uma colaboração na entrada. Afinal, é preciso manter a associação Macaq funcionando.
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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Autour de Paris VII - Les Invalides


No vasto gramado dos Invalides, um bêbado de rua abria sua 3a garrafa de vinho e filosofava consigo mesmo, embaixo de uma árvore.

- Foi daqui que o povo, pê da vida, partiu pra derrubar a Bastilha. Eu não estava, acho que tinha ido à festa de aniversário do meu primo Sylvain, mas me contaram que foi uma confusão dos diabos. O povo estava brabo com os privilégios de uma tal burguesia que, se não me engano, era uma rainha sueca que inventou de mandar por aqui. Aí saiu todo mundo em marcha cantando La Marseillaise, o hino do Olympique de Marseille, que havia acabado de conquistar o seu primeiro campeonato de futebol. Coisa bonita esse hino, fala nos pilares da democracia francesa, as divisas da pátria, a tríade liberdade, igualdade, paternidade. É legal saber que a França assegura o direito a cada um de ser pai. Eu não quis ser, ao contrário do meu primo Sylvain, que quis e muito, tanto que teve uns 4 ou 5, cada um de uma cor diferente, coisa mais linda. Falando em cor, aqui nessa esplanada muito sangue vermelho foi derrubado. Eu faço questão de dizer que era vermelho, porque sangue azul só quem tem é nobre e barata. Sabe qual a diferença entre a barata e o nobre? Em um a gente pisa em cima, o outro pisa em cima da gente. Posso ser bêbado, mas sei do que falo. E todo esse sangue foi derrubado porque a rainha da França, Maria Madalena, maior megera, disse pro povo comer no McDonalds. Pô, McDonalds é caro, minha rainha, se liga. Não é à toa que ela foi apedrejada. E agora essezinho que tá aí, o Carla Sarkozy, ainda quer cortar as ajudas que o governo dá, o que deve levar o preço do Big Mac lá pras alturas. Meu primo Sylvain conta que sem a ajuda do governo ele não seria capaz de manter os filhos na escola e muito menos de abastecer seu Porsche. Meu primo Sylvain sabe das coisas, inclusive como enganar o governo. Mas isso não é problema, ele diz, porque a gente vem sendo enganado há tanto tempo, né? Dizem que tudo começou com aquele ator que virou presidente, o Napoleão, que está enterrado bem naquele prédio bonitão bem ali. Napoleão teria prometido casa, comida e uma pontinha em Hollywood pra todo mundo, o que, é claro, ele não cumpriu. Sabe o que eu acho? Que são todos uns doidos. Ainda bem que tem alguém como eu pra manter a sanidade desse país. Aliás, vou ligar pro meu primo Sylvain.
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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Autour de Paris VI - Saint-Germain-des-Prés


Mochila nas costas e iPod no ouvido, People are Strange no volume máximo, ele calculava quantas estações ainda faltavam até a Gare du Nord, onde pegaria um trem para Amsterdã. Estava tranquilo, pois pela primeira vez na vida chegaria adiantado.

Aí seu olhar cruzou o dela. Devia ter sua idade, uns 18, 19 anos, estava meio descabelada, usava óculos de aro grosso e vestia umas roupas coloridas que não combinavam com nada. Não era bonita, mas também não era feia. Uma dessas meninas que passam quase desapercebidas, ainda mais perto das “bombas ambulantes de hormônio”, que era como ele classificava as garotas dotadas de atributos físicos mais generosos.

Só que algo bateu. Talvez o sorriso, as covinhas na bochecha ou até a maneira dela mascar chiclete. Ele não sabia o que tinha sido. Sabia que tinha batido tão rápido e certeiro que quando ela desceu do metrô ele desceu atrás, nem sabia qual estação era.

Saíram em frente à igreja de Saint-Germain-des-Prés, a mais velha de Paris, construída no ano 558. Ele mantinha uma certa distância pra não dar muito na cara, mas a verdade é que a estava seguindo.

Ela parou para aproveitar de um raio de sol que banhava seu rosto, fechou os olhos e sorriu. Ele fingiu trocar a música do iPod e depois simulou amarrar os cadarços do surrado All Star.

Menos de um minuto depois, ela olhou para o relógio e dirigiu-se para a igreja. Ele esperou que ela entrasse e tomou o mesmo rumo. Não a encontrando lá dentro, decidiu sentar em um dos bancos localizados perto da porta. Ela surgiu do nada, sentou ao seu lado e cochichou.

- Eu vi a Patti Smith.

Ele não esperava que ela lhe dirigisse a palavra. E muito menos que falasse de Patti Smith que, como todo roqueiro que se preze, ele bem sabia quem era. Ficou tão nervoso que acabou dizendo uma bobagem.

- Patti Smith, a santa? Apareceu pra você?

Ela riu.

- Não, bobinho. A Patti Smith, poeta, compositora, cantora. Fez parte do pré-punk de Nova Iorque, andava com o Lou Reed, o Iggy Pop, o pessoal do MC5. De santa eu acho que ela não tem nada. Eu a vi aqui, nessa igreja.

- Rezando?

Novamente ela sorriu. Não com desdém, mas cumplicidade, o que o deixou mais tranquilo.

- Foi um show, há dois anos, em uma Nuit Blanche. Cheguei tarde e já não tinha mais lugar, então sentei no chão, em frente ao palco improvisado no altar. Uma hora ela parou de tocar e sentou ao meu lado. Foi como um milagre.

- Você a tocou?

- Eu não! Tinha medo de ser um sonho que acabaria se eu a tocasse.

Eles se olharam mais uma vez nos olhos. Dessa vez permaneceram incontáveis segundos se encarando. Ela o convidou para tomar uma cerveja ali por perto. Ele topou. Conversaram sobre Patti Smith, Lou Reed, Joy Division, The Smiths, Echo & the Bunnymen, Wilco e The Flaming Lips. Sobre Liverpool, Manchester e Nova Iorque. Sobre Stratocaster, Rickenbacker e Les Paul.

A conversa fluia docemente. Ele até chegou a pensar “se esse momento fosse uma canção, seria The Killing Moon”. Pediram mais uma cerveja e continuaram o papo, agora evocando a “old school” de The Kinks, The Byrds, The Zombies e The Small Faces. Ela era perfeita, ele se dizia. E ela achava o mesmo dele, tanto que mais uma vez ela deu um sorriso e fechou os olhos, agora fazendo um biquinho que só uma francesa sabe fazer, pedindo um beijo sem pedir.

Ele olhou pra ela, sentindo-se feliz como poucas vezes na vida, levantou-se, puxou uma nota amassada do fundo do bolso e a colocou em cima da mesa. Ela não entendeu bem o que estava acontecendo. Tentou dizer algo, mas ele foi mais rápido.

- Você é como um milagre. Tenho medo de te tocar e esse sonho se acabar.

E correu para o metrô, pois ainda tinha tinha um trem pra Amsterdã e já estava atrasado.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Autour de Paris V - Les Arènes de Lutèce


Nas Arènes de Lutèce, verdadeiras arenas romanas do século I escondidas em pleno centro de Paris, duas crianças conversam.

- Meu pai me contou que gladiadores desse tamanho lutaram exatamente aqui, muitos e muitos anos atrás.
- O que é um gladiador?
- Gladiador era um homem que pesava muitão, que carregava uma espada que pesava muitão, um escudo que pesava muitão e vestia uma armadura que pesava muitão e que por levar todo esse peso virava comida de leão.
- Noooossa. O que mais esses gladiadores faziam?
- Meu pai conta que havia batalhas de um contra o outro e só o mais forte sobrevivia.
- Mas por que eles lutavam?
- Pra divertir o imperador e distrair o povo.
- Não era melhor o povo ficar em casa vendo futebol?
- Ai, você é burro, hein? O povo não tinha dinheiro e o futebol naquela época passava só na TV a cabo.
- Como é que você sabe que o povo não tinha dinheiro?
- Se as pessoas tivessem dinheiro você acha que elas se vestiriam com aqueles poucos panos sobre o corpo e aquelas sandálias horríveis de hippie velho?
- É mesmo.
- Meu pai conta ainda que o pai do pai do pai dele era um gladiador.
- Também virou rango de leão?
- Não, o pai do pai do pai do meu papai era um gladiador muito muito forte.
- E por que ele virou gladiador?
- Porque assim ele podia se transformar em alguém importante.
- Não era mais fácil participar do Big Brother?
- E também porque podia depois comprar a liberdade dele.
- Se fosse pra comprar um video-game de última geração eu até entendia.
- Meu pai me diz que naquela época o mais importante era a força, mas que as pessoas aprenderam a dialogar e isso virou coisa do passado.
- Como eles eram brutos.
- Eram sim.
- Inclusive o pai do pai do pai do seu pai.
- Esse não.
- Era sim, como todos os outros.
- Não era não!
- Era sim!
- Era não, seu bobão.
- Era sim, seu idiota.
- Ai, você me chutou!
- Tira o dedo do meu olho!
- Meu cabelo, larga o meu cabelo...
Ps1: Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

Ps2: Hoje enfrentei hoje uma batalha (como os gladiadores), e queria compartilhar isso com os leitores do blog: apresentei a minha tese e agora sou mestre em jornalismo cultural pela Sorbonne!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Autour de Paris IV - La place des Vosges

Antes de qualquer outra coisa, aperte o play abaixo.
(Yves Montand - Les feuilles mortes)




Na place des Vosges as folhas amarelas caem das árvores em um lento balanço rumo ao chão, já repleto delas.

Um funcionário da prefeitura as aglomera em grandes montes, em cima dos quais eu adoraria me jogar se ainda fosse criança, como eu fazia com as porções da grama recém-cortada na minha infância em Brasília. Seu trabalho hercúleo é ainda mais complicado porque o vento teima em espalhar a folhagem agrupada.

O outono definitivamente chegou. Assim como esse ano a estação não teve pressa em se instalar, o empregado também não demonstra urgência em terminar sua tarefa. Ele deve saber que, por mais folhas que recolha, sempre haverá mais e mais caindo. Inevitavelmente penso em Prometeu, o semi-deus grego que entregou o fogo aos homens e por isso foi condenado a passar 30 mil anos tendo seu fígado comido por uma águia de dia e reconstituído à noite.

O funcionário abarrota um contêiner e vai descarregá-lo em uma espécie de gaiola criada para isso, onde um colega pisa nas milhares de folhas reunidas, compactando-as em uma dança desconjuntada na qual seu pé às vezes afunda demais, às vezes desliza em um quase tombo, que nunca se concretiza.

Do outro lado da praça, um terceiro trabalhador manipula dois ancinhos com imensa habilidade, e não demora a preencher seu próprio contêiner. Labuta cumprida, ele enfia seus instrumentos de trabalho na grande caixa, com os cabos para baixo, deixando visíveis apenas as bases, espécies de vassoura em metal. De longe, tenho a impressão de ver dois espantalhos. Por via das dúvidas, os poucos pombos que ainda não se recolheram com a chegada do frio nem passam perto.

O vento sopra mais uma rajada e algumas folhas sustentam-se um segundo no ar, antes de pousarem suavemente em cima de mim. No outono a vida anda mais devagar. Essa época do ano, como diz uma amiga, é mais do que uma estação. É um estado de espírito.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Autour de Paris III - Le marché des Enfants Rouges


No marché des Enfants Rouges tem um velho fotógrafo que vende cartões postais com imagens antigas de Paris e tira jurássicas polaróides dos interessados. Pelos preços que ele pratica, quando você cruza a porta da sua loja o seu dinheiro também parece virar antiguidade.

No marché des Enfants Rouges tem um vendedor de frutas e legumes bio, um peixeiro bio, um padeiro bio e uma rotisseria que espalha o cheiro de fritura por todo o mercado e deixa os bios com aquela cara de bio chorão.

No marché des Enfants Rouges tem uma tratoria chinesa, uma tratoria italiana, uma tratoria marroquina e mesmo uma tratoria francesa. É a globalização no trato rápido à fome.

No marché des Enfants Rouges eu já vi uma menina dar uma flor pra sua mãe, um namorado dar uma flor pra sua amada, um galanteador dar uma flor pra sua paquera e um cachorro alucicrazy destroçar um buquê que um vacilão deixou em cima da cadeira.

O marché des Enfants Rouges, criado em 1615, é o mais antigo mercado de Paris. Uma vez havia por lá que era tão velhinho, tão vetusto, que tenho certeza estava na festa de inauguração do lugar.

O marché des Enfants Rouges está na moda em Paris e é um desses lugares que resume a França em si mesmo. Porém, aos sábados ele é tão cheio que nenhum parisiense arruma uma mesa, nenhum parisiense consegue andar entre os estandes, nenhum parisiense descola nada pra comer. Aos sábados, no marché des Enfants Rouges, os parisienses só conseguem reclamar, o que pra uma parte deles já está de bom tamanho.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Autour de Paris II - Passage des Panoramas


O bom de estar em Paris é que Paris não se cansa de me surpreender. Moro aqui há 3 anos e meio e toda vez que vejo monumentos como a torre Eiffel e a Notre Dame, que já vi milhões de vezes, me dou conta disso e penso “caramba, estou em Paris!”.

Esse tipo de sensação acontece o tempo todo, quando descubro um jardim escondido, uma rua charmosa ou um restaurante imperdível. E hoje aconteceu de novo.

Peguei uma vélib e saí em direção à Bourse, a bolsa de valores, localizada no 2ème e escolhida para essa segunda crônica sobre os bairros da cidade. Porém, com meu aguçado senso de não-direção, acabei parando longe de onde havia planejado. Tant mieux, pois no caminho topei com a Passage des Panoramas, a mais antiga passagem coberta de Paris.

A Passage des Panoramas foi criada em 1799, para que os parisienses pudessem fazer compras abrigados da chuva e da sujeira da cidade, que não tinha esgoto na época. Hoje serve como uma espécie de galeria, cheia de restaurantes, algumas lojas de filatelia e com um climão que me lembra a Galeria Menescal do Rio de Janeiro, onde se encontra a 2ª melhor esfirra da história das esfirras. A melhor está não muito longe dali, na Galeria Condor, no Largo do Machado.

Cheguei perto da hora do almoço, e o cheiro de comida vem de todos os lados. Do restaurante italiano, onde estou e bebo apenas um café, sobe um aroma de manjericão fresco. Do indiano da frente, de curry. Do francês logo ao lado não vem cheiro nenhum, mas o cardápio do dia sugere um “carré de cochon rôti de Paul Legros”, um pedaço de porco grelhado de Paul Legros, Paul o gordo, em português. A dúvida que me bate é se o porco é do Paul, é preparado pelo Paul ou é o próprio Paul. A não conferir.

Ao meu lado, uma senhora fala do marché d’Aligre para o italiano dono do restaurante, e conta a ele maravilhas dos legumes bio que se encontram por lá. Bio – biô, pra eles - é a nova moda francesa. Todos os bo-bos, os bourgeois-bohème, comem biô e se acham super naturebas, enquanto acendem mais um cigarro.

Pouco depois surge um sujeito mais velho, de muletas, e senta-se mais perto do balcão. O italiano faz jus à fama do seu povo e dirige-se a ele num quase grito.

- Ei, pra você nós estamos fechados.
- Eu não quero nada dessa birosca não, só sentar nessa cadeira podre aqui.

Eles sorriem, se abraçam e o dono vai buscar um café para quem parece ser um amigo de longa data, que o bebe com gosto e agradece.

O italiano, feliz da vida, volta pro seu balcão cantando.

- Amore, amore, amore!!!

Paris não se cansa de me surpreender. A poesia está em cada uma de suas esquinas.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique no marcador autour de paris, que está aí embaixo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Autour de Paris I - Jardin des Tuileries


Essa semana o Chéri à Paris inaugura uma nova série de crônicas, chamadas Autour de Paris (Em volta de Paris). Cada história se passará em um dos vinte arrondissements, bairros em português, da cidade.

A série começa no primeiro arrondissement, no lindo jardin des Tuileries, que fica pertinho do museu do Louvre.

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Margaridas

Ela chegou completamente cabisbaixa, fitando o chão com aquele olhar de peixe morto que cairia bem em qualquer integrante de banda emo, e dirigiu-se a uma das fontes do jardin des Tuileries, aquela mais próxima ao Louvre. Escolheu um lugar afastado das crianças que brincavam de barquinho, puxou uma das cadeiras disponíveis, sentou-se, virou a cabeça pra trás, fechou os olhos e respirou bem fundo uma, duas, três vezes.

Se a aparência exterior dela era de calma, ou pelo menos de falta de agitação, dentro da cachola tudo acontecia em grandessíssima velocidade. Mil pensamentos simultâneos se atropelavam e nada parecia fazer sentido.

Partiu sem deixar bilhete, o maldito. Parecia só mais uma de suas escapadas, daquelas que ele fazia sempre, sair pra comprar cigarros ou pra tomar uma cerveja com os amigos. Mesmo que demorasse um ou dois dias ele acabava voltando, mas agora já faz quatro meses que não tenho notícias. A culpa só pode ser do meu chefe, aquele déspota que não entende nada de nada mas adora mostrar quem é que manda. “Anota aí no caderno o que é pra fazer”, ele diz. Muito contrariada eu anoto o que aquela voz de taquara rachada dita. Quem ele pensa que é? Ele acha que estou no jardim de infância pra ficar tomando nota do dever de casa? Lembrei, faz um tempão que não encaro um sorvete de sobremesa, muito tempo. O último foi no verão de 2009, mais de um ano. Tava sol, todo mundo na rua, Paris plages lotada. Montei numa vélib e fui sozinha da minha casa até a Île de St. Louis, na sorveteria Berthillon. Não, acho que estava acompanhada, a Marie foi comigo. Pegamos o ônibus juntas e ficamos contando piada em voz alta, sem nem ligar se estávamos incomodando os outros passageiros. Foi nesse dia aquele horrível acidente, quando o motorista perdeu o controle e passou por cima de um motoqueiro. Ou será que foi de um cachorro? Não sei bem. Mas acho que o acidente foi depois, senão a gente não teria ido tomar sorvete. O problema é que o síndico do meu prédio é um tapado. Que mal tem se eu junto alguns amigos lá em casa de vez em quando? Aí ele vem. convoca uma daquelas reuniões chatérrimas e coloca todos os moradores contra mim. A vizinha do 4º andar faz festas dionisíacas e ele nunca diz nada. O pessoal comenta que ele é a fim dela e não tem coragem de contrariá-la. Talvez espere ser convidado um dia, o que eu aposto nunca vai acontecer. Seria mais fácil eu ganhar na loteria e comprar um mundo novinho só pra mim. Ainda sonho com os gritos do motoqueiro. Ainda sonho que estou esganando meu chefe. Ainda sonho com a sorveteria Berthillon. Ainda sonho com aquele cachorro que não conseguiu completar a travessia da rua. Ainda sonho com a cara de buldogue do síndico. Ainda sonho com a volta daquele desgraçado, ainda...

- Oi.
- Hã? Disse ela, abrindo os olhos.
- Trouxe pra você.
- Uma flor?
- Margarida.
- Mas... Mas por quê? De onde ela vem? E de onde você vem?
- Porque tava passando e te vi aqui e achei que você gostaria de ganhar uma margarida, então fui ali colher uma sem que o fiscal do jardim me visse.

Ele entregou a flor, sorriu e saiu andando. Ela o chamou.

- Ei, volta.
- Eu?
- Você gosta de sorvete de framboesa?
- Prefiro pistache.
- Sei onde tem um ótimo.

Ele ajeitou a margarida atrás da orelha dela e os dois partiram em direção à Île de St. Louis.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Admirável mundo (infantil) novo

Quando se vira pai, um novo mundo de possibilidades se abre, você faz coisas que nunca nem sonhou que existiam. Tipo frequentar o café da manhã que a creche da sua filha organizou para promover a interação entre os progenitores dos pimpolhos e pimpolhas ali alocados. Situações assim me deixam sempre meio sem saber o que fazer. Se os pais estão ali por causa de suas proles, o normal é que falem sobre elas, né? E você não tem escolha a não ser aguentar tudo com aquele sorriso de candidato em campanha e, se possível, tentar participar um pouco.

Esse tipo de evento é normalmente dividido em três fases, que não por acaso nomeei com trechos de letras da época brega do Robertão.

1a fase – Vou servir um café pra nós dois (ou o mais lindo do mundo)

A primeira fase começa quando você está ao lado da mesa, se servindo de café e croissant. E aí topa com uma mãe que, claro, acha sua criação a coisa mais linda de toda a história.

- Olá, eu já te vi aqui. Você é a mãe do...
- Cornelius.

E você pensa meu deus, quem é que chama Cornelius? Deviam prender os pais por desacato, por maltrato de menores, por qualquer coisa, mas deviam prender. Um pouco de tortura também não faria mal. Nada grave, só colocar uns palitos embaixo das unhas, coisa pouca.

- Cornelius, que nome mais, mais, como eu digo?
- Mais lindo, né? E não é só o nome, ele também é maravilhoso. É airoso de manhã, esplêndido à tarde e ainda mais deslumbrante à noite.
- É mesmo incrível juntar tantos adjetivos.
- Em uma só criança?
- Não, em uma só frase.
- Vou ali pegá-lo pra você poder ver que não estou mentindo.
- Carece não, minha senhora...

Mas aí ela já foi e nem te deu ouvidos. A sua única chance de escapar é agora, o melhor é agir rápido. Num impulso, você se afasta da mesa e vai fazer gracinha para um bebê que está no chão e se diverte com seu chocalho. Nesse exato instante os pais se aproximam e, sem perceber, você adentra na segunda fase do evento.

2a fase – Por que me arrasto aos seus pés? (ou ele é o máximo)

- Que gracinha (você acha melhor não perguntar o nome).
- Appolonia.
- Saúde.
- Não, eu disse que o nome dela é Appolonia.

Você devia ter perguntado, você pensa, devia ter perguntado. O choque seria menor e você não teria cuspido na janela da diretora o pedaço de croissant que tinha na boca.

- Ela (você se recusa a repetir o nome) parece se divertir com esse chocalho.
- Tá treinando.
- Treinando?
- Em casa ela toca chocalho e assovia a nona de Beethoven.
- A nona de Beethoven?
- De trás pra frente. Quer ver?

Você já está ali, e pensa que não faz mal nenhum assistir à performance de Appolonia, cordenada pelos pais e futuros empresários.

- Appolonia, assovia. Appolonia, chacoalha o chocalho. Appolonia, lembre-se da introdução. Appolonia, apoquente-se.

Mas tudo o que a Appolonia faz é soltar um tremendo pum.

- Dá pra ver que nessa orquestra pelo menos a tuba tá em cima.

Você já está louco pra ir embora, mas pega mal ser o último a chegar e o primeiro a sair. Então decide refugiar-se no banheiro até que te esqueçam ou inventem o teletransporte que te levará dali direto para sua casa, o que vier primeiro. Só que ao adentrar nas dependências do toalete você dá de cara com aquele casal que você sempre achou meio estranho, trocando a fralda do filho. Sem ter outra opção, você decide ficar ali e puxar papo. Erro craso, pois é nesse instante que a terceira fase do evento inicia.

3a fase – Você, que vem de dentro (ou o mal é o que sai da boca do homem)

Sem saber como começar a conversa, você dá um sorriso e aponta pra fralda suja.

- Cocô, né?
- Não é cocô. São excrementos resultados de uma alimentação à base de produtos orgânicos, preparada com água do Himalaia e em panelas de argila feitas pela minha mãe na própria fazenda. Os legumes que ele come recebem 16 horas de sol por dia e são adubados com materiais orgânicos nobres, vindos diretamente da América do Sul. Às 2as, 4as e 6as ele come apenas alimentos que começam com consoantes. Às 3as, 5as e sábados, alimentos que começam com vogais. Aos domingos, faz jejum com a gente. O que você acha?
- Acho que tá meio amarelão.

E você volta pra casa doido pra ligar a tevê.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Teses musicais 6 - Hamilton das Cévennes


Esse é o último texto da série “teses musicais”, pois finalmente terminei de escrever o mémoire do mestrado (ueba!). É uma crônica feita há 3 semanas, no estilo “redija durante uma música”, quando ainda estava na linda região das Cévennes, no sudoeste francês.

Aperta o play aí.



Lugar paradisíaco esse da foto ao lado. Faz bem uma pausa na tese, para respirar, dar um mergulho e esfriar a cabeça. Quando eu digo esfriar, não é força da expressão. A água estava a 15ºC!

01 byte 10 cordas é o nome da música e de um disco de Hamilton de Holanda. Escute-a com atenção. Quantos instrumentistas tocam? Por incrível que pareça, um só. Esse álbum é o primeiro no mundo gravado com o bandolim de 10 cordas, que Hamilton mandou fabricar para poder fazer acompanhamento e solo ao mesmo tempo. Consagrado no Brasil, ele é amado na França, onde a imprensa o apelidou de “príncipe do bandolim”. A revista Bravo! não quis ficar atrás e o promoveu “de príncipe a rei”. Nos Estados Unidos, a comparação é com Jimi Hendrix. Segundo os críticos, o músico brasiliense (tá, nasceu no Rio, mas cresceu em Brasília, minha cidade) promove a maior revolução no instrumento desde Jacob.

O céu aqui está de um azul incrível, e faz um belo contraste com a vegetação impressionantemente verde das Cévennes. No inverno, imagino, tudo deve ficar na mais alva brancura. Será que esse riacho congela? Dá (quase) vontade de vir ver. Ao meu lado, Louise cochila na sua tenda. Ela cresceu – a Louise, não a tenda. Eu sou capaz de ficar o dia inteiro olhando pra ela, pra não perder um só instante das rápidas mudanças pelas quais ela passa.

Os jornalistas franceses tem uma certa dificuldade em definir a música de Hamilton de Holanda. Pra eles é choro, apesar de o bandolinista ter ultrapassado as fronteiras desse gênero há muito tempo. E o pepino pra imprensa aumenta na hora de explicar o instrumento que ele usa, "uma versão brasileira do velho mandolim europeu, ao qual ele acrescentou um par de cordas". Parte da culpa disso é da grande produtividade do músico, que lançou quinze discos em treze anos de carreira, sempre olhando pro futuro. Ele mesmo diz que precisa “fazer evoluir as formas tradicionais em direção à modernidade, pois quem anda pra trás é caranguejo”.

Quanto a mim, esticado numa cadeira de praia mas longe do mar, observando o riacho, suas pedras e a pequena barragem, fico pensando que essa música poderia durar um pouco mais, pois assim que ela terminar eu vou dar o mergulho diário nessa água gélida e retornar à minha tese. Daqui a alguns dias volto pra Paris. É bom ir pra casa, mas nesse momento gostaria de ficar um pouco mais por aqui. Gostaria que o verão durasse pra sempre.



Aproveito pra colocar aqui a música Bandolim, que o meu irmão, Pedro Cariello, compôs em homenagem ao Hamilton de Holanda, seu amigo de escola. Foi gravada pelo grupo Batucada de Bamba, do qual ele fazia parte, e tem participação do próprio Hamilton.




Leia os outros textos das teses musicais:

. Baden Powell
. Villa-Lobos
. Hamilton de Holanda
. Rolling Stones
. Orfeu Negro

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Teses musicais 5 - Orfeu Negro


Antes de mais nada, aperte o play aí.



Agora vamos lá. Você sabia que o sucesso mundial da bossa nova nos anos 60 deve muito a um filme francês? Pois é, pois é. Lançado em 1959, Orfeu Negro, recriação para o cinema da peça Orfeu da Conceição de Vinícius de Morais, tinha na trilha sonora só músicas desse novo estilo musical (e bossa nova é um estilo?) estalando de novo. Composições do próprio Vinícius, de Tom Jobim e de Luís Bonfá. Merecidamente, a produção do cineasta Marcel Camus papou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Quatro anos depois do lançamento de Orfeu, Baden Powell chegou a Paris de mala, cuia e violão debaixo do braço. Foi apresentado aos músicos franceses e bares parisienses por seu parceiro de música e de copo, o mesmo Vinícius, então diplomata na embaixada brasileira.

Apesar de sua notória timidez, Baden chegou fazendo barulho e logo começou a aparecer. Foi então que conheceu um sujeito chamado Pierre Barouh, cantor, ator e garotão boa pinta, que tinha caído de amores pela música brasileira. Em 1965, Barouh deu um jeito de incluir uma versão francesa de Samba da benção, chamada Samba saravah, no novo filme de Claude Lelouch, Un homme, une femme. E aí a bossa nova explodiu de vez.

“Talvez mais amado na França do que no Brasil”, segundo a revista Mondomix, Baden Powell tornou-se para sempre a representação de um instante mágico vivido por um país mágico. O país da bossa nova, da praia de Copacabana, do futebol que encanta o mundo. Tudo isso eternizado pelas seis cordas de um violão.

De Brigitte Bardot a Françoise Hardy, de Charles Aznavour a Serge Gainsbourg, praticamente todos os grandes cantores franceses da época gravaram ao menos uma música composta no estilo, ou influenciada por ele. Essa que você está ouvindo agora (você apertou o play lá em cima, não apertou?) é uma das minhas preferidas, do meu compositor francês favorito. Trata-se de Ces petits riens, de Serge Gainsbourg, pequena pérola desse grande artista. A letra, poética como tudo o que ele escreveu, começa com “Mieux vaut n'penser à rien que n'pas penser du tout / Rien c'est déjà, rien c'est déjà beaucoup” (“Melhor do que não pensar é pensar em nada / Nada já é, nada já é muito”). Há muito pra pensar aí, ou talvez não haja nada.

Uma parte do sucesso da bossa nova se explica pelas imagens difundidas por Orfeu Negro, de um Brasil de sonhos e esplendoroso, que ainda contava com a trilha sonora ideal. Quando Orfeu toca seu violão para o sol se levantar, quem sobe junto com o astro rei é a música brasileira, que ali conquistou definitivamente o seu espaço no mundo.

Leia os outros textos das teses musicais:
. Baden Powell
. Villa-Lobos
. Hamilton de Holanda
. Rolling Stones

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Teses musicais 4 - Rolling Stones


De volta a Paris, continuo enfurnado na minha tese, que parece não ter fim. Em uma pausa, me deu vontade de escutar Rolling Stones. Sympathy for the devil, pra ser mais exato. Não entendia porque essa música estava há alguns dias na minha cabeça, mas foi só eu colocá-la pra tocar que me veio o clique: Sympathy for the devil é a mais brasileira música dos Stones (clique no player abaixo para escutá-la).



A percussão do começo é um ponto de macumba, e poderia numa boa estar no disco Os afrosambas, de Baden e Vinícius, um dos meus dez preferidos de todos os tempos. É bom lembrar que Sympathy for the devil foi escrita, não por acaso, depois de uma viagem do grupo ao Brasil, em 1968. O livro Sexo, drogas e Rolling Stones, dos jornalistas José Emílio Rondeau e Nélio Rodrigues, conta que Mick Jagger foi à Bahia e lá “ouviu o batuque e viu a dança da cerimônia da lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim, o que resultou na base percussiva que sustenta o clássico”.

Já os backings, repetidos a música quase inteira, não são africanos. Estão mais para ritos indígenas. Ritos como os que Villa-Lobos afirmou ter presenciado quando teria sido capturado por uma tribo selvagem. Segundo seu relato, os índios, canibais, o prepararam durante três dias para um banquete, no qual ele seria o prato principal. Escapou por milagre.

Essa história, completamente inventada por Villa-Lobos, foi contada em um sensacional artigo da jornalista francesa Lucie Delarue. Escrito em 1927, Musique cannibale (Música canibal) contribuiu para aumentar a fama parisiense do compositor brasileiro, então radicado na cidade luz, e para atestar ao público e crítica franceses sua ligação com a cultura primitiva brasileira.

Isso me traz de volta à minha tese, que estuda como a imprensa francesa tratou três grandes compositores brasileiros que moraram em Paris. Além dos citados Baden Powell e Villa-Lobos, falo também de Hamilton de Holanda, aqui chamado “o príncipe do bandolim”. Tenho passado as últimas semanas analisando a minha própria cultura por meio de lentes estrangeiras. Nesse processo, extremamente revelador, aprendo tanto sobre os franceses, que nos analisam, como sobre nós mesmos, os analisados.

Como disse Oswald de Andrade, “a antropofagia nos une”.

Agora dá licença, que vou colocar a música pra tocar de novo.


Leia os outros textos das teses musicais:
. Baden Powell
. Villa-Lobos
. Hamilton de Holanda

sábado, 21 de agosto de 2010

Teses musicais 3 - Hamilton de Holanda


A tese avança a passos galopantes, enquanto o verão caminha para o seu fim. Ainda tem um mês de calor, é verdade, mas a rentrée, a volta das férias, é daqui a duas semanas. Depois, vida normal. Enquanto isso, faço das minhas pausas escritos para compartilhar aqui, como esse.

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Las Abejas, de Hamilton de Holanda e Marco Pereira (clique no player abaixo para escutá-la)



O texto das teses musicais dessa semana deveria ter sido o que escrevi enquanto escutava a música acima, em frente ao rio mais frio em que já me banhei – ouvi dizerem que a água estava a 15ºC. Mas ontem à noite, quando já estava na cama, os vizinhos da casa ao lado, a única das redondezas além da que alugamos, onde nem celular pega, começaram a tocar e cantar música brasileira na varanda deles.

“C’est quand même curieux”, é realmente curioso que, enquanto faça um longo estudo sobre como os franceses, principalmente a imprensa, percebem a música brasileira, aconteça um episódio assim.

- Ôlha, ele diz “a lágrima clara sobre a pele escura”. C’est de la poésie. – Explica o cantor, francês mas falante de português com sotaque, a um francófono puro.

Tirando pela bandeira do Brasil que pendurou na janela, ele parece saber que a poesia da música brasileira não está apenas nas letras de Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso ou Noel Rosa. Ela está na sua origem, na mistura das culturas africana, indígena e portuguesa. No savoir-faire de reciclar as influências e transformá-las em algo com a nossa cara, como aconteceu com o choro, filho da polka.

Nos anos 20 e 30, Villa-Lobos mostrou um novo mundo sonoro aos conterrâneos de Napoleão. Mais tarde, nos anos 60 e 70, Baden Powell ajudou a consolidar de vez a música brasileira na terra de Debussy. E recentemente, no começo do milênio, Hamilton de Holanda catapultou sua carreira internacional a partir de uma temporada em Paris.

Os três fizeram de suas temporadas na França momentos cruciais em suas obras. Os três são os personagens da minha tese, que, escrita longe do meu país, me tem feito aprender tanto sobre como nós somos e como somos percebidos. O que, com um pouco de ufanismo confesso, me faz sentir um grande orgulho.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Teses musicais 2 - Villa-Lobos


Continuando o projeto Teses Musicais, inaugurado semana passada, dessa vez o texto pensado durante a audição de uma música foi feito na região das Cévénnes, na França, onde deveria estar aproveitando do verão e não enfiado em mundos de livros e artigos a ler e uma tese a escrever.

Então, ramolá.

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Choro nº 1, de Villa-Lobos (clique no player abaixo para escutá-la)



Aperto o play no iPod. Essa música faz parte dos choros de Villa-Lobos. É o primeiro, e o meu preferido. Nas leituras para minha tese, descobri que o compositor decidiu chamar choros uma série de músicas que havia composto simplesmente pelo fato de o nome soar bem aos ouvidos franceses, pois ele morava em Paris na época. Do ponto de vista musical, algumas dessas obras nem choro de verdade são. Já do ponto de vista publicitário, ele foi perfeito.

Ao longe, uma criança chora. Da mesa da varanda, de onde não levanto há 3 dias, vejo a velha da casa da frente passar pela porta, atravessando a cortina de cordas. Ela olha pra mim e retorna para onde saiu.

O sino da igreja soa oito badaladas e insiste em concorrer com a música. De madrugada, ele insiste em concorrer com o meu sono, pois continua a bater de hora em hora. Na noite passada, ganhou.

O sol bate no pico da montanha que tomba por detrás de uma casa. Essa região é muito bonita, com morros por todos os lados. Ispagnac, a cidade onde estou, fica em um vale verde de impressionar. Saco a câmera para registrar o momento e faço a foto ao lado.

Nessa pausa da vida, o violão também concede um segundo de silêncio. No mesmo instante, ambos retomam seu ritmo irregular, que faz a beleza da existência e desse choro.

Villa-Lobos é o primeiro músico brasileiro conhecido no mundo inteiro. Assim que ele chegou a Paris pela primeira vez, a imprensa francesa não sabia como tratar sua música. Para descrevê-la, passou a usar comparações com a natureza do Brasil, da qual só havia ouvido falar, como "forte", "gradiosa" e "primitiva". Espero, o próprio compositor se aproveitou desse deslumbre como fonte de promoção e se descrevia como "selvagem, mas um bom selvagem".

Intrigada com sei lá o quê, a vizinha dá as caras novamente, e logo decide voltar e ligar a televisão.

E eu? Eu retorno à minha tese.

sábado, 7 de agosto de 2010

Teses musicais 1 - Baden Powell


Teses de mestrado e procrastinação brasileira são duas coisas que não combinam. Eu sou a prova (semi) viva disso. Quando a tese deve ser escrita em outra língua, o treco piora muito. E quando é pra daqui a 30 dias e só a introdução está pronta, o modo "pânico" é imediatamente ativado.

Tudo isso pra dizer que até a minha vida voltar ao normal, esse blog vai passar por uma fase diferente. As crônicas semanais de sexta-feira continuam pontuais, como essa publicada no sábado. Mas serão vapt-vupt, escritas enquanto escuto uma, e apenas uma, música de Villa-Lobos, Baden Powell ou Hamilton de Holanda, os compositores de quem falo na minha tese.

Voilà la première, escrita no trajeto Paris-Marseille em TGV.

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Tributo ao amigo Pedro Santos, de Baden Powell
(clique no player abaixo para escutá-la).





Solto a música, parte do ao vivo Baden Powell à Paris. Adoro viajar de TGV no verão, por volta das nove da noite. Ainda tem muita luz, e ela vai baixando devagar, pegando tons dourados. É a luz mais bonita do dia.

Pela janela, vejo as linhas elétricas que acompanham a linha do trem. De um poste a outro, os fios baixam e levantam, conforme a máquina avança. Desde criança gosto de observar esse movimento, me lembra as ondas do mar.

Passamos por um campo vazio, parece que a colheita foi feita há pouco tempo. Não há mais plantação, apenas o solo marcado, algumas árvores ao longe e um trator parado perto de uma casa.

Um pouco mais e atravessamos uma vila, parecida com tantas outras que existem na França. Pequena e toda arrumada, com casas, igreja, praça e poucas ruas. Sempre que passo por uma cidade dessas a imagino como cenário de um filme. A primeira sequência seria um sujeito de boina andando na rua com a baguete embaixo do braço. A última seria ele viajando a Paris para assistir a um jogo, no qual o Brasil derrotaria a França por 6 x 0, com dois gols contra do Henri.

Na pista paralela, outro TGV passa em direção contrária e dá pra sentir pelo balanço do nosso trem. Se somarmos a velocidade dos dois, dá mais de 600 quilômetros por hora. Fim do parágrafo "físico frustrado".

No iPod, Baden Powell começa seu solo infernal. Pra mim, trata-se do maior violonista de todos os tempos. Sabe aliar a técnica de um Paco de Lucia ou um Segóvia com um sentimento, feeling na linguagem de guitarrista, que só ele tem.

Rumo ao sul, a paisagem vai mudando rapidamente. Outros campos se sucedem, alguns têm rolos e rolos de feno empilhados, reserva de comida para os animais no inverno. A paisagem, só nesse instante, lembra os filmes de western.

Mais à frente, vejo as primeiras vacas do trajeto. Uma coisa bacana na França é a importância dada aos pequenos produtores rurais de queijos, salames, vinhos, frutas. Os franceses os apreciam e sabem valorizá-los.

O céu está azul e há poucas nuvens. Uma delas tem a forma de um zepelin e depois se transforma em baguete recheada. Passamos por um grande e verde vale, arborizado e muito bonito.

Nesse instante, Baden acaba sua grande prestação à música. No mesmo instante, o sujeito da poltrona ao lado retorna e tapa a minha visão da janela. Volto pra minha tese.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Les fourmis


Coisa mais difícil do mundo é vez bicho em Paris. Cachorro não conta. Cachorro, pro parisiense, ocupa uma faixa intermediária entre bicho e humano. Para alguns, aliás, é mais humano do que o próprio vizinho, aquele ser inclassificável que coloca música alta e nunca separa o lixo corretamente. Isso, cachorro é gente, vizinho nem tanto.

Pombo também não é bicho pros habitantes da capital francesa. Mas esse, ao contrário dos dogs, é classificado um nível abaixo dos animais. Em algum lugar entre as angiospermas e as briófitas (pausa para dizer o quanto eu detestava biologia vegetal. Fim da pausa. Obrigado). Enfim, pombo é uma das poucas coisas pior do que vizinho.

E inseto? Inseto praticamente não existe. Na verdade existe quando o vizinho enche (mais uma vez) o saco do sujeito, que grita “vou pisar nesse inseto asqueroso”. Ou quando, durante o verão, entram enlouquecidos pela janela moscas mutantes tamanho big e mosquitos verdes deformados. Mas é raro.

Já a formiga pro parisiense é algo tão abstrato quanto as teorias de Sartre. E é possível que compreender Sartre seja até mais fácil do que entender a existência desse inseto. Digo isso porque você não vê formiga por aqui. Durante o inverno talvez estejam com frio demais para darem as caras. E durante o verão, quando Paris fica deserta, é possível que saiam para pegar uma praia em Marseille.

Mas eis que apareceu formiga na minha cozinha. E uma cacetada de uma vez. Vendo do alto, de tão organizadas parecia que saíam em passeata, afinal estamos em Paris. Chegando mais perto percebi que o ponto branco em cima delas não era uma faixa de protesto, mas um grão de arroz que carregavam.

- Vixe, tem formigas na nossa cozinha. E estão levando comida pra rainha.
- Guilhotina! Guilhotina!

Não sei se por reflexo ou por ter escutado em algum lugar que funcionava, joguei detergente em cima das danadas. No dia seguinte elas continuavam lá, só um pouco mais limpas. Aí tentei banhá-las com vinagre, o que, descobri mais tarde, só teria algum efeito prático se virassem salada depois.

Agora elas já tomaram conta da área em torno da pia e, pela movimentação, parece que estão tramando um levante para tomar o fogão e a geladeira. Pra me livrar dessas formigas francesas vou acabar tendo que recorrer a uma velha técnica brasileira: farta distribuição de havaianadas. É aquela história de atacar o inimigo por onde ele não espera.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O mito do longo prazo


De passagem por Brasília, fui convidado a ir à UnB, a universidade onde estudei, conversar com os alunos do curso de laboratório de publicidade e propaganda. Em homenagem a eles publico aqui essa crônica, escrita para a revista nunca publicada de uma agência de propaganda.

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Todo publicitário sonha com um mundo ideal, no qual o diretor de criação diria docemente:

- Tá aqui o briefing. Mas não tem pressa, a campanha é só pra daqui a um mês. Nesse tempo, toma um cafezinho. E se precisar de cafuné, é só chamar.

Quem é da área sabe que é mais fácil o Suriname ser campeão da Copa do Mundo do que isso acontecer. E se acontecesse, nós não saberíamos o que fazer, pois simplesmente não conseguimos trabalhar com tanto prazo.

Apesar de termos que estar sempre antenados com o que rola de mais moderno, acredito que uma parte dos cérebros dos publicitários ainda é meio "old-fashioned", e opera como as velhas máquinas a vapor: quanto mais pressão, melhor. Daria para descrever o seu funcionamento com uma equação como C=P2/∆t, onde C é o cérebro, P é a pressão e ∆t é o deadline.

Imagino o desfecho da situação irreal proposta ali em cima.

- Ô, Juca. Chegou um briefing grande aí, ó.
- Eu vi, mas tem uma coisa que eu não saquei bem.
- O público-alvo?
- Não. Isso é moleza. São as senhoras de 60 anos que já se desquitaram 4 vezes e agora resolveram se dedicar aos esportes radicais.
- É a escolha da mídia?
- Também não, Pedrosa. É verdade que achei estranha a idéia daquela peça promocional, o batom que você aperta e ejeta uma corda de rapel. Mas o resto tá ok.
- Então só pode ser o slogan, que já veio pronto do cliente.
- Nada, eu até gostei. "Radical é a sua avó" é bem apropriado.
- E o que é que você não entendeu, então?
- O deadline.
- O deadline?
- Tem um número errado ali. Tá dizendo que o trabalho é pro 15 do 9, quinze de setembro.
- Isso.
- Mas estamos em julho, mês 7. Hoje é só 23 do 7.
- Isso.
- Temos quase dois meses pra fazer a campanha?
- Isso.
- Não tá certo, Pedrosa. Quem é que consegue criar assim, com todo esse prazo?
- Eu é que não.
- Não dá mesmo.
- E o que a gente faz?
- Vamos deixar o job no fundo da gaveta, pra só tirar de lá 5 dias antes do dia final.
- Genial.
- Agora dá licença que vou ali pedir explicações pro chefe.
- Sobre o trabalho?
- Não. Sobre a história desse deadline. Ele tá pensando que a gente é o quê?

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Certidão

Na fila do cartório, ele achou que a havia visto. Mas não, não podia ser. Diziam que ela tinha se mudado pra outra cidade, outro país até. Ele escutara boatos de que ela teria entrado em um convento ou virado aeromoça, o que pra ele dava no mesmo.

Mas era incrível, o nariz era muito parecido com o dela, aquela curvinha arrebitada. Ele se lembrava bem do nariz, ponto proibido de tocar, terminantemente interditado, pois ela sentia muitas cócegas.

- Vinte e nove, vinte e nove, quem é o vinte e nove?

A funcionária do setor de autenticação olhava com ar desolado para aquele amontoado de gente, provavelmente sabendo que chegaria mais uma vez tarde em casa. E ele, geralmente solidário com a miséria alheia, ao menos em pensamento, não estava preocupado com a novela que a atendente perderia naquela noite. O pensamento dele, assim como todos os seus sentidos, tinham um único alvo: a moça da fila, localizada umas sete ou oito posições à frente.

Ela soltou os cabelos presos. O movimento era idêntico ao que ele conhecera quinze anos antes, mas o comprimento das madeixas havia mudado. Antes chegavam no meio das costas, agora mal passavam a linha do ombro.

Puxa vida, já faz quinze anos que a gente se conheceu, ele pensou, e tudo durou exatamente três anos, dois meses, quatro dias e duas horas cravadas. Ele sabia os números, datas, lugares, canções e sabores de cor. Só não sabia, nunca soube, porque tudo havia acabado.

Ela se virou para buscar um papel no fundo da bolsa e ele teve certeza de que era realmente ela. Estava tão linda quanto em sua lembrança congelada. Os mesmos olhos um pouco puxados e um pouco estrábicos, a mesma boca carnuda escondendo uma arcada tão perfeitamente alinhada que poderia figurar em um comercial de pasta de dentes ou de margarina, as mesmas sobrancelhas cuidadosamente alinhadas, as mesmas três argolas em uma orelha e duas na outra. Tudo exatamente como antes.

- Trinta e dois, o trinta e dois tá aí?

Era ela o trinta e dois. Tirou um envelope e entregou pra moça copiar e autenticar. A atendente fez tudo de forma eficiente e automática, como os funcionários dos cartórios geralmente fazem. Não sorriu, mas também não fez cara feia. Entregou o pacote de volta, uma notinha para o pagamento e retribuiu o agradecimento.

- Trinta e três, cadê o trinta e três, hein? Trinta e três.

Ele não poderia deixá-la escapar sem antes falar algo, qualquer coisa. Quando pensava em como iria abordá-la, ela tropeçou, como sempre fazia, e esparramou os papéis pelo chão. Ele mais do que depressa abaixou-se para recolhê-los. Ela também. Ele pegou antes o documento que ela havia autenticado.

- Certidão de casamento? Você casou?

A frase saiu em voz alta, e no mesmo instante seus olhares se cruzaram. Ela, que ainda não o tinha visto, olhou para ele com um misto de surpresa e horror. Ele, que não sabia de nova vida de sua eterna amada, permaneceu petrificado. O que os dois pensaram nesse átimo só eles sabem, mas ela juntou desordenadamente a papelada e apressou-se em alcançar a porta de saída.

Pela parede de vidro ele a viu enxugar uma lágrima. E ela nem percebeu que a certidão ficara com ele.