sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sobre reis, imperadores e monarcas

É curiosa essa história de monarcas no Brasil. De rei, teve o D. João VI, que picou a mula de Portugal se borrando de medo do Napoleão. Mas foi um rei emprestado, logo devolvido. A se lamentar o fato de o cantor Roberto Leal ainda não ser nascido, pois tinha uma vaga sobrando no navio.

Com a nova debandada de D. João, dessa vez de volta à terrinha, seu filho D. Pedro I herdou a coroa. Não a mãe, que tinha retornado também, mas a de ouro. Logo depois tornou-se imperador, um cargo de mais honra do que o de rei, o que não era muito difícil nesse caso.

Em um ato de bravura, ou talvez enjoado de comer bacalhau, D. Pedro I disse "se é pra felicidade do povo, eu fico". De uma só vez, rompeu com a corte portuguesa e criou o populismo à brasileira. Mais tarde quebrou a promessa e foi-se também, inventando então a prática do "eu não falei o que eu disse" e a demagogia à brasileira.

Com o trono vago, foi a vez de júnior receber de bandeja a mamata. D. Pedro II, o pivete, foi deixado pelo pai aos 5 anos e assumiu o cargo aos 16. Apesar de toda precocidade, é curioso perceber que ele, sempre barbado e velho, consegue a façanha de ser mais idoso do que o próprio pai, always de bigode e serelepe (e que ainda traçou a marquesa de Santos).

Depois da queda da monarquia, o Brasil entrou numas de tédio. Essa coisa de vir um presidente depois do outro era muito démodé naquela época. Então a solução foi criar novos monarcas para toda e qualquer especialidade. A primeira tentativa foi quando elegeram o Silvão, do cais do porto, como o rei dos estivadores, em 1891. Fato não comentado além das redondezas.

Mas aí veio mais, muito mais. Veio o rei do futebol, o rei do rock, o rei do gado, o rei do queijo, o rei do cangaço, a rainha da primavera, a rainha da torcida, a rainha da bateria, o príncipe das tecelagens, a princesa das meias e o escambau.

Pois na França, menos pacientes, eles decidiram passar a lâmina nos monarcas em geral. E tem bem uns duzentos anos que não se fala mais nisso.
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Barrimotos


I.
- Tá mexendo! Põe a mão.
- Aqui?
- Não, do outro lado.
- Aqui?
- Agora é no outro.
- Aqui?
- Voltou pro de antes.
- Aqui?
- Parece que ele parou...
- Quietou de vez?
- Quietou.
- Bom, vou pra sala. Chama quando recomeçar.
- Volta, volta. Põe a mão.
- Aqui?
- Ih, parou de novo.

II.
- Olha a barriga.
- Tá mexendo.
- Sobe e desce, treme tudo.
- Verdadeiro barrimoto.
- Talvez tenha uma festa lá dentro.
- Legal. Vou contribuir com a trilha sonora.
- Comment?
- Cantar um pouquinho perto da sua barriga.
- Tem certeza?
- Aaaaatirei o pau no gaaaato-to.
- Ele parou de mexer.
- Deve ser um protesto contra os maus tratos aos animais.
- Ou contra os maus cantores...

III.
- Põe a mão.
- Onde?
- Aí mesmo.
- Não vai machucá-lo?
- Vai nada, põe.
- Eita...
- Sentiu?
- Senti. Baita chute.
- Forte, né?
- Chutaço. Quando for grande, vai jogar no Flamengo.
- E se for menina?
- Pode jogar no time feminino, ué.
- Mas pode também fazer outra coisa.
- Com um chute assim, seria um desperdício.
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Ps: o termo barrimotos, terremotos na barriga, foi criado pelos meus pais, provavelmente quando eu sacudia no ventre da minha mãe.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Estranho pra cachorro


Uma amiga brasileira me pediu pra comprar pro cachorro dela um remédio que só existe na França. Eu tentei.

- Olá, queria esse remédio aqui.
- É pra cachorro.
- Eu sei.
- E ele tá onde?
- Não pôde vir, mas me deixou seu cartão de crédito.
- Como eu vou saber se ele está doente?
- Você pode ligar pra ele. Se der um latido longo, está gripado. Dois roucos pode indicar uma crise asmática. Mas se não der nenhum talvez já tenha morrido.
- Que horror!
- É verdade. Mas a senhora pode evitar toda essa tragédia me vendendo o remédio.
- Talvez seja só um problema alimentar. O que ele come?
- Quando os donos não estão em casa, de sofá a samambaias.
- E quando estão?
- Aí fica na ração mesmo, sempre dando preferência para as lights, já que entrou numas de manter a linha.
- E os hábitos dele? Sai muito?
- Só pelas redondezas. O coitado foi reprovado na prova de direção.
- Falando assim ele parece normal.
- É normal, senhora. Normalíssimo. Só precisa desse medicamento.
- Sinto muito, pra isso é necessário que o exemplar canino se apresente no recinto.
- Pas possible, madame. Ele está no Brasil.
- Ah bon? Brésil?
- Isso, Brasil, samba, Pelé.
- Julio Iglesias?
- Esse aí a gente expulsou pra Espanha bem novinho.
- Tem que trazê-lo aqui.
- O Julio Iglesias?
- O cachorro.
- No fundo é a mesma coisa.
- O quê?
- Deixa pra lá. Como a gente pode resolver isso?
- Não tem como.
- Se eu dar uma latidinha serve?
- Não.
- E se colocar a língua de fora?
- Também não.
- Com três ou quatro pulgas saltando em cima de mim, você vende?
- Hum, se bem que...
- Não, minha senhora, não adianta olhar pra aquele poste ali fora.
- Volta aqui, te dou um osso!

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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Historinhas de inverno


Dois amigos passaram uns dias aqui em casa. E colecionaram diversas histórias andando pelas ruas frias de Paris. Escolhi três pra contar aqui.

1. Café

O Café Kleber é um desses lugares conhecidos como "pega-turistas". Instalado no Trocadero e com uma vista privilegiada da torre Eiffel, cobra no cardápio o preço da paisagem. Extasiados pelo primeiro dia na cidade, os dois instalaram-se confortavelmente nas cadeiras do lugar e pediram um singelo omelete, seguido de três ou quatro chopes.

O garçom revelava uma simpatia de aeromoço, atendendo com presteza e sorrisos os desejos da dupla. Depois de refestelarem-se, decidiram pedir a conta, que veio com mais sal do que o mexido de ovos: 30 euros e 80 centavos, algo como 75 reais.

Pegaram uma nota de 20 e uma de 10 e foram catando as moedinhas que tinham no bolso para inteirar o valor. O garçom, provavelmente acostumado a graciosas gorjetas de turistas endinheirados, não curtiu a demonstração prática de como nós brasileiros costumamos pagar a conta, deixando a soma exata. E revelou sua face Mr Hide.

- Dessas moedas eu não preciso. Tenho várias iguais aqui no meu bolso. - E sacou uma de 20 centavos, colocando-a em cima da mesa, numa nítida provocação.

Meus amigos não se fizeram de rogados.

- Não precisa?
- Não.

Pegaram então as moedinhas, inclusive a deixada pelo atendente, e foram embora, cantando.


2. Mendigo

Na França quase todo mundo tem uma carte bleue, o cartão de banco. Isso significa obviamente que quase todo mundo tem conta em banco, até os SDF, os "sans domicile fixe". São os sem domicílio fixo, um nome politicamente correto para esconder uma verdade cada dia mais presente na França: na prática, tratam-se de mendigos.

Pois meus amigos estavam em uma fila de caixa automático, que por aqui não têm cabines e ficam na rua mesmo, e havia um sujeito vestido como se fosse sair dali para o altar, numa beca federal. Sentado ao pé da máquina, um SDF protegia-se como podia do frio. Ninguém dava bola pra ele. Parecia simplesmente parte da paisagem, como tantos outros em Paris.

Eis que o cidadão bem adornado introduz sua carte bleue. O caixa a cospe de volta. Ele observa, limpa a tarja magnética e tenta uma segunda vez. E ela é devolvida novamente. Já irritado, faz outra faxina no cartão, passando-o na roupa, no cabelo, dando um brilho com um lenço de papel. Indiferente à operação limpeza, a máquina insiste em rejeitar o pedaço de plástico. O SDF levanta lentamente o rosto e dirige-se ao cidadão.

- Para funcionar, você precisa entrar no menu principal.

E volta para baixo do edredom, com toda a sua sabedoria. O outro partiu cuspindo marimbondos.


3. Amigos

Dessa vez eu tava junto. Depois de uma volta pelo cemitério do Père Lachaise, com direito a visitar os túmulos de Jim Morrison, Oscar Wilde, Chopin, Allan Kardec e Edith Piaf, sob uma neve fina e um frio de -5ºC que colaboravam para o clima fúnebre do passeio, estávamos a ponto de virar picolé. Decidimos então sair dali e entrar no primeiro café. Logo encontramos um com nome simpático: "Rendez-vous des amis", o encontro dos amigos. Era lá.

Entramos e fomos recebidos por uma horda de semi bêbados sentados no balcão, que nos desejaram "bonne année" quase em coro. A simpatia dos frequentadores contrastava com a atitude da moça que cuidava do serviço, "amarga qui nem jiló". Pedi três cafés e três copos d'água e fomos nos instalar em uma mesa mais afastada, no salão praticamente vazio. Ela trouxe só os cafés, que entrariam fácil na lista dos 10 piores da história de Paris. Resolvemos deixar a água pra lá.

Pouco depois chegou um grupo de italianas com as quais cruzamos durante nosso périplo pelas sepulturas, também necessitando um pouco de calor. Sentaram não muito longe da gente. Antes de perguntar o que desejavam, a balconista apressou-se a dizer que ali não poderiam ficar, pois um grupo havia reservado aquelas mesas. As moças não entenderam uma palavra e pediram explicação em inglês. A sujeita não quis nem saber e aumentou o tom de voz, quase as punindo por terem escolhido seu bar. As italianas foram embora rapidamente, em fila indiana, como lemmings.

Fomos também logo depois, deixando, claro, o valor exato da conta. Os agora já bêbados nos saudaram novamente, com mais um "bonne année", enquanto a moça parecia aliviada de não ter mais que nos servir.

Ao sair, olhamos outra uma vez o letreiro do bar e traçamos alguns planos para um eventual ataque terrorista no local. A ação começaria com a troca de palavras no nome do recinto. De café encontro dos amigos, passaria para café dos amigos da dona. Ou café dos poucos amigos, mais apropriado.

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sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Ao que vai chegar

Todo fim de ano vem aquela mesma questão à cabeça de todos: que resolução tomar para o novo período que se inicia?

Tem aquele que sempre promete perder 15 quilos (ano passado eram 12, ano que vem serão 18), mas não sai do lado do buffet durante a festa de reveillon. Ou o que jura parar de beber, em um anúncio feito de pé em cima de uma cadeira, depois da meia-noite e com um copo cheio de whisky na mão, exatos 17 segundos antes de despencar de lá. E ainda o procrastinador (uau, tô me sentindo demais por ter inserido essa palavra aqui) e seu novo adiamento da decisão de não mais adiar as decisões.

As nossas vidas precisam de ciclos, pra podermos ter novos inícios, novas metas e de certa forma nos desculpabilizar por eventuais asneiras feitas anteriormente. "Não, Maria, não era eu naquela festa de ano novo na televisão com duas mulatas penduradas no pescoço. Quer dizer, era eu, era, mas não sou mais. Aquilo foi no ano passado. À meia-noite eu virei um novo homem. Sim, Maria, mudei completamente, você precisa acreditar em mim. O quê? Não, Marília, eu não te chamei de Maria não. Aliás, não conheço nenhuma Maria. Você tá precisando limpar os ouvidos, Marí...lia."

Eu prefiro não tomar resoluções de ano novo. Gosto de ser um flâneur (segunda palavra difícil do texto. ABL, aí vou eu). O flâneur é aquele cara que caminha pelas cidades vivendo experiências. Ou pela vida. Vai provando um pouco daqui, um pouco dali. Entra num bar e fala em uma língua diferente, vira a esquina e chega em uma nova cidade, pega o ônibus e descobre um novo mundo. Até chegar a hora na qual não sabe mais se é ele quem escolhe os caminhos ou se são os caminhos que o escolheram.

Eu digo tudo isso porque os meus caminhos, iniciados com uma curva que fiz lá atrás, seguida de desvios, atalhos e outras trilhas, trouxeram-me a um ponto mágico da minha existência. Dentro de alguns meses uma nova pessoa vai surgir na minha estrada. No começo, vou tomá-la pela mão e mostrar para ela como andar por ali. Mas depois, e isso é tão inevitável quanto belo, é ela mesma quem vai decidir por onde andar. E vai virar suas próprias esquinas, atravessar suas próprias ruas e construir seus próprios caminhos. Até chegar o dia em que ela vai mostrar tudo isso para uma outra pessoa.

Tá legal, mudei de ideia e tomei uma resolução para 2010: quero ser para o meu filho, ou a minha filha, o melhor pai que eu puder ser.

Para ler escutando: O filho que eu quero ter (com Paulinho da Viola).
Clique no link acima com o botão direito do mouse e, depois, em "abrir em nova aba".

Belle & Chico, os irmãos franco-brasileiros, também falam sobre resoluções de ano novo. Leia em www.bellechico.com.br