sexta-feira, 30 de abril de 2010

Chico


Em três anos de existência (and counting) esse blog publicou uma nova crônica todas as sextas. Hoje é a primeira vez que isso não acontece. E o motivo está aí ao lado. É que a Brazuca, revista da qual sou editor em Paris, acabou de lançar uma edição inteira dedicada ao Chico Buarque, contando um pouco de tudo o que ele já fez.

Tem matérias sobre sua música, sua literatura, seu pai e até sobre as suas peladas (o jogo!, o jogo!) semanais. Mas o melhor é que conseguimos uma entrevista exclusiva, a primeira que ele dá em muito tempo.

E você pode ler tudo isso, em português e em francês, baixando o PDF da edição no site da Brazuca.

Pra não ficar aquela sensação chata de vazio por aqui, reproduzo abaixo o editorial que escrevi para a revista.

Boas leituras!


O mais desconcertante em Chico Buarque não são suas músicas. Já sei, é a literatura, alguém pode dizer. Também não, afirmo. Então é o posicionamento político na época da ditadura, outro arrisca. Ainda não está lá, ainda não. É o futebol, o futebol!, um fã empolgado sugere. E mais uma vez eu diria não, negando pela 3ª vez.

Mas o que é, então?


É a sua simplicidade atordoante.
Chico é uma espécie de Deus no Brasil, e a gente fala disso com ele na entrevista. E ele mostra que essa ideia é uma grande bobagem. E a gente acredita nele, porque ele acredita no que diz.

A sua criação artística é tão importante para a cultura brasileira que parece sempre ter estado lá, à nossa disposição. E
Chico conversa sobre a sua obra como se não a conhecessemos de cor, não com falsa modéstia, mas sincera humildade.

O mais desconcertante em
Chico Buarque é que ele parece não saber que é Chico Buarque. E é exatamente isso o que o faz sê-lo.

A mãe de Belle & Chico também suspira pelo compositor - www.bellechico.com.br

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pimenta


Sylvain saiu correndo pelo Faubourg St. Antoine, entrou na GAP e subiu pro 2º andar da loja, parando na seção feminina. Pegou as três primeiras calcinhas que viu e desembestou pro caixa. Os trinta e quatro euros pagos pareceram no início uma gorda soma, mas depois, pensando melhor, deu-se conta de que era barato até demais.

Oitenta e dois, rue Pigalle, disse pro taxista. Por onde? Pelo céu, se puder, precisava estar lá dez minutos atrás.

O chofer fez um retorno proibido e arrancou decidido em direção ao Périph, o boulevard périphérique, anel que dá a volta na cidade e a separa dos seus subúrbios. Costurando mais torto do que madame com parkinson, ultrapassou um ônibus pela direita, tirou fina de dois ciclistas distraídos e já ia freando pro sinal recém-amarelado, quando o passageiro gritou não pára, não pára. Ele não parou e por isso aqui escapou de atropelar um casal que fazia jogging.

O passageiro não tinha a menor ideia do passado do seu motorista, cujo currículo na profissão mais parecia ficha policial, mas não estava gostando nem um pouco do presente e já começava a temer pelo futuro próximo, do qual fazia parte. Não precisa correr tanto, também não é o fim do mundo se eu chegar atrasado, falou já mudando de ideia.

Mas o outro nem escutou, tão concentrado estava em seus cálculos para ver se dava pra passar entre os dois caminhões que ocupavam simultaneamente as faixas da direita e da esquerda da pista, deixando apenas uma parte da central livre. Dá, ele disse. Dá sim, repetiu, eu vou.

Sylvain não teve tempo de gritar não vai passar, pois o taxista já tinha enfiado o carro naquele espaço mínimo e acelerado fundo, e se beliscou bem umas cinco vezes para acreditar que ainda estava ali. Os caminhoneiros não entenderam como não deu uma merda daquelas, pois tinha tudo pra dar.

Tem um pouco de trânsito ali na frente, vou pegar um atalho por uma rua pequena à esquerda, avisou o condutor, que tomou a falta de uma resposta por um sinal de positivo. Entrou e ignorou a faixa de pedestre, dando um baita susto em um careca de bigode e seu poodle, que já latia muito e passou a fazê-lo em dobro depois desse trauma.

Roendo a quarta unha seguida, o passageiro não conseguia articular nem pensamento, quanto mais palavras pra tentar conter o ímpeto de fórmula um daquele sujeito com sotaque estranho do banco da frente.

O sujeito com sotaque estranho do banco da frente passou à toda por dois cruzamentos sem nem piscar, agora imagina se ele olhou pro lado, e continuou a disparada rumo ao oitenta e dois, Rue Pigalle. Chegou e o passageiro sobressaltou quando olhou o relógio de ponteiro de cabeça pra baixo e achou por um segundo que tinha chegado antes da partida.

Quanto deu a corrida? Vinte e dois euros. Tá aqui vinte e cinco, pode guardar o troco. Obrigado. Aliviado por estar completamente inteiro, quis descobrir o nome do sujeito que ele não sabia se classificava como o pior ou o melhor piloto de táxi que já cruzara.

Raimundô Batistá.

De onde?

Brasil, Bahia, Salvador, com a graça de Deus e do Senhor do Bonfim.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Pontos de vista

Eu já disse por aqui que o francês é uma língua bem mais formal do que o português. O francês, cidadão, adora falar o francês, língua, perfeitamente. É um modo de pensar que se traduz em um certo rebuscamento, principalmente na escrita, com o qual nós brasileiros não estamos acostumados. Alguns exemplos de como as coisas se passam nos dois países.


Reservando uma pousada nas férias

Versão francesa
Caro senhor, como eu já vos havia prevenido, minha família e eu estaríamos pensando em passar alguns dias em vossa agradável hospedaria, lindamente situada em pleno campo francês. Ainda nos lembramos dos momentos agradabilíssimos vividos no ano passado, e adoraríamos ter a ocasião de repetir a experiência que muito agradou minha esposa e nossos filhos, quando comemos da melhor comida e bebemos do melhor vinho, em um ambiente que nos fez nos sentirmos em casa. Gostaríamos, portanto, de saber se ainda há lugares disponíveis para o final de julho e se vós poderíeis reserva-no-los. Cordialmente.

Versão brasileira
Velho rabugento, coloca as cerva pra gelá que eu a macacada toda vamo invadir otra vez essa espelunca que cê chama de pôsada. Se tiver lotada, expulsa aqueles alemão que tão sempre aí. Beijunda.


Avisando de uma festa

Versão francesa (geralmente um bilhete colado no elevador)
Caros vizinhos, eu me permito vos informar que estou organizando uma pequena festa de aniversário hoje, no 4º andar, e talvez faça um pouco mais de barulho do que o habitual. Desculpo-me antecipadamente e agradeço vossa compreensão. Thomas.

Versão brasileira (é claro que não tem bilhete no elevador, mas se tivesse seria algo assim)
Cambada, hoje tem badauê na casa do Tomás do 4º, com o pacote de sempre: música alta, vômitos no elevador e sexo nas escadas. Claro que você não está convidado. Aliás, se morar no prédio, recomendo caçar outro canto pra dormir.


Reclamando da compra de um produto vencido

Versão francesa
Caro fabricante, gostaria de saber a quem me dirigir para protestar contra uma loja que vende vossos produtos sempre com data de validade vencida. Eu já preveni o gerente, mas ele parece não dar muita atenção às minhas reclamações. Imaginai que outro dia, sem perceber, comprei uma massa para quiche vencida há mais de um ano, e não consegui ser reembolsado ao tentar devolver o produto. Continuo fazendo as compras nessa loja porque é a única da região, mas admito que estou bastante desapontado com o comportamento pouco profissional de seus proprietários. No aguardo de uma solução, agradeço antecipadamente.

Versão brasileira
Maluco, comprei num mercado a merda da mistura de bolo de fubá da sua empresa e o produto era mais antigo que o último título do Botafogo*. Quero nem saber se a culpa é de vocês ou daquela birosca da esquina. Se ninguém devolver o meu dinheiro, vou chamar os brother e barbarizar geral, sacou ?

* Atualização de 18/04: como o Botafogo venceu hoje, é possível que a empresa finalmente faça uma nova remessa da mistura.
Chico está às voltas com Maurão, o valentão da rua - www.bellechico.com.br

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O albino


O La Liberté, o boteco mais bacana do leste de Paris, tem os seus frequentadores assíduos, como o negão de tranças que volta e meia toca Bob Marley no violão público do estabelecimento ou o tiozão de barba com sua eterna camisa do Iron Maiden. Mas o melhor deles é o albino de uns quarenta e tantos anos, que nunca sai de lá. Ele é mais inevitável que almoço de domingo com a sogra em self-service, que ela vai chamar de serve-serve, e a presença inefável do tio rejeitado, que terminará a refeição palitando os dentes com uma mão na frente na boca.

Nunca vi o albino bêbado. Ou talvez nunca o tenha visto sóbrio. Tendo por base o copo constantemente encaixado na mão como se fosse a de um playmobil, talvez nem ele saiba mais diferenciar um estado do outro. Mas essa dúvida dificilmente será tirada a limpo, porque na verdade ela não importa. O que importa é a sua própria existência (do Albino, não da dúvida).

Ele é parte da paisagem do La Liberté e talvez seu principal cliente, certamente mais assíduo que os próprios donos do bar. Vive na companhia da roqueira agora careca. Amiga de boteco, certamente, mas uma relação que parece dividir apenas cervejas.

O albino foi recém-eleito meu personagem preferido do local. Ir lá e não vê-lo é como uma ida à Disney sem apertar a mão do Pateta. Fica aquela sensação chata de ter faltado algo. Compõe o figurino do distinto uma inseparável jaqueta de couro preta por cima de uma camiseta branca, cabelo pouco e branco, rosto geralmente vermelho e um ligeiro ar de "se estou aqui é porque é cool e é cool porque estou aqui". Mas à la française, blasé, como se não fosse com ele.

Meu preferido anterior era o rapper português colecionador de fitas VHS, sempre com duas ou três recém-adquiridas nas mãos. Foi ele quem me ensinou que em Portugal "fiche" quer dizer "legal". Depois disso, conto os dias para voltar a Lisboa e gastar minhas gírias locais. Mas o portuga desapareceu de lá. Na última vez que o vi, entre um verso improvisado e outro, contou-me radiante que estava de mudança para Amsterdã, onde arranjara um bico, ou uma bicada, em um coffee shop. "O melhor lugar do mundo para se trabalhar", disse com brilho nos olhos vermelhos.

Mas o albino, afinal é sobre ele esse texto, eu nunca o vi chegar no La Liberté. Ou ele já está ou materializa-se de repente, ao seu lado, e você nem percebe. Depois desmaterializa-se, podendo voltar a dar o ar da graça a qualquer momento. Alguns dizem que com um pouco de sorte ele te escolhe pra trocar uma meia dúzia de palavras. Outros dizem que com muita sorte ele não te escolhe pra nada. Eu já conversei com ele uma vez. Foi bacana. Principalmente porque ele falava de um assunto e eu de outro, completamente diferentes.

Outro dia cruzei um boteco aqui do lado de casa, onde havia uma banda tocando, e ele estava no meio da pista, pulando ao lado da amiga careca roqueira. Continuei meu trajeto e passei em frente ao La Liberté. Olhei pra dentro com o rabo do olho, como quem olha de soslaio para uma exposição de arte contemporânea marginal, e vi uma figura familiar. Parei e focalizei melhor. Era o albino, pulando ao som de Amy Winehouse ao lado da roqueira careca. Esfreguei o olho e ele sumiu novamente. Pisquei e ele surgiu ao meu lado. Entrei, pedi dois chopes e dei um pra ele, que bebeu e desapareceu mais uma vez.

Leiam as histórias em quadrinhos de Belle & Chico, os irmãos franco-brasileiros.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O sorriso do senhor Charles


Um belo dia Charles Lutwidge Dodgson chega em casa e anuncia à sua mãe:

- Mamãe, tenho que falar com você.
- O que você andou inventando dessa vez, Charles?
- Decidi fazer algo diferente. Tô numas de tédio.
- Meu filho, você se lembra da última vez que tentou algo parecido?
- Sim, mamãe. Mas o que aconteceu não foi minha culpa. Eu tinha certeza de que dava pra ver do outro lado do espelho.
- Eu sei. Mas você não deveria ter obrigado o seu primo Jeremias a atravessá-lo. O pobre coitado quebrou a fuça na tentativa.
- A ciência, mamãe, precisa de voluntários. Pelo menos descobrimos que isso ainda não é possível.
- Então, diga logo o que você queria contar.
- Eu desisti da poesia.
. Ah, finalmente um pouco de bom senso. A poesia não leva ninguém a lugar algum. Veja seus amigos Edgar Allan Poe e Walter Whitman. Quem os conhece? O que eles fizeram de importante na vida?
- Mamãe...
- Agora você pode se dedicar exclusivamente à matemática. Estou orgulhosa.
- Mamãe, é exatamente disso que eu quero falar.
- Já sei. Você vai lançar um outro livro sobre as teorias de Euclides?
- Não, também deixei a matemática de lado.
- O quê? Ficou doido? Quer dizer, mais doido do que antes?
- Acabei de escrever um romance sobre uma menina chamada Alice.
- Ufa, não é tão dramático assim. Conta.
- Tem essa criança, Alice, que anda no bosque até surgir um coelho branco.
- Que lindo! É uma fábula, né? Como as de La Fontaine.
- Não exatamente. O coelho tem um relógio de bolso.
- Um relógio?
- Mas está sempre atrasado.
- É um coelho ou um brasileiro?
- Alice o segue até a entrada de um buraco, no qual ela cai. No fundo tem uma porta, muito pequena pra ela. Alice decide beber de um copo onde está escrito "beba-me". Aí ela encolhe de uma vez e fica com o tamanho perfeito pra passar pela porta, só que percebe ter esquecido a chave dessa porta em cima da mesa. Então come um bolo que está no chão, ao seu lado, no qual pode ler "coma-me" e nesse momento ela vira uma baita de uma gigante.
- Charles, o que você tomou no café da manhã? Ovos podres? Vamos agora mesmo ao médico. Você não está bem, dá pra ver.
- Calma, mamãe. Ainda tem mais. Alice entra em um novo mundo. Eu o chamei de país das maravilhas.
- País das maravilhas?
- Sim.
- Um lugar onde tudo é maravilhoso?
- Exatamente.
- E onde não há mais portas minúsculas?
- Não.
- E nem comidas que fazem crescer?
- Tá falando de leite com Neston?
- Leite com Neston?
- Deixa pra lá. Pra entender a piada você teria que ter nascido no Brasil, nos anos 1970.
- E nesse seu país das maravilhas, o que é que tem lá?
- Coisas simples. Um chapeleiro que toma chá o tempo todo e comemora os desaniversários, os irmãos Tweedle-Dee e Tweedle-Dum, que contradizem a Alice o tempo todo, o gato com sorriso enigmático, a Rainha de Copas e seu desejo de cortar a cabeça de todo mundo.
- Mas o que houve com você, meu Charles???
- Esqueci de te dizer, mamãe. Agora me chamam Lewis. Lewis Carroll.
- Lewis Carroll???
- Calma, mamãe. Vou te preparar um chá.
- Ahhhhhhhhhhhhhhhh!
- Mamãe, mamãe. Volta, ainda não acabei... Que coisa, parece maluca.

. Esse texto foi escrito para a revista cultural dos estudantes do Master 2 Journalisme Culturel na Universidade de Sorbonne Nouvelle (original em francês aqui). Decidi criar essa versão em português para o blog.

. Enquanto isso, começa o outono brasileiro. Veja o que Belle e Chico estão aprontando.