sexta-feira, 28 de maio de 2010

Uma kombi de encher os olhos


Essa aconteceu com um amigo meu que morou em Paris muitos anos atrás, e agora acabou de voltar pra cidade-luz. A história se passou nos anos 80, durante a primeira temporada dele na capital francesa.

Seu pai, riponga na década anterior, era o feliz proprietário de uma Kombi verde por fora e, se bem me lembro do relato, laranja por dentro. Qualquer coisa de impensável nos caretas dias de hoje, mas perfeitamente normal pra psicodélica geração Woodstock.

Após milhares de quilômetros rodados e muita fumaça (de carburador!, de carburador!) queimada, o sujeito decidiu separar-se do veículo, que havia se tornado um trambolho no complicado trânsito parisiense. Com dor no coração, colocou um anúncio nos classificados do jornal. Tratou de ser minucioso e sentimental na descrição. Afinal, não era apenas um carro, era uma relíquia, um verdadeiro relato ambulante de uma passada época de sonhos.

Atraídos pela imperdível oportunidade, os interessados não tardaram a ligar. Alguns barganhavam, outros queriam marcar visita para conhecer aquela suposta maravilha, e havia ainda os que pediam detalhes específicos sobre a mecânica, o consumo e tudo o que todo mundo quer saber na hora de comprar um carro de segunda mão, mesmo que muitas vezes nem saiba o que está perguntando.

Ali pelo fim do dia o telefone soa mais uma vez. A voz confiante do outro lado não deixou dúvidas de que o negócio estava fechado.

- Passo aí amanhã pra buscá-lo.
- Não quer nem ver antes?
- Não. Ele é meu.

A euforia pela venda praticamente decidida, somada à tristeza pela iminente despedida de um objeto que certamente deixaria saudades, não durou muito tempo. Alguns minutos depois, o aparelho toca novamente.

- Escuta aqui. Quem você pensa que é, hein?

O vendedor e pai do meu amigo não entendeu tchongas.

- Hã?

A voz brava continuou.

- Bancando o espertinho pra cima do meu filho, né? Querendo vender um carro para um rapaz cego. Não tem vergonha não? O que ele faria com uma kombi, se não pode dirigir?
- Desculpa. Mas, veja bem, como podia saber que ele era cego?
- Pois ele é.
- Sinto muito pelo transtorno e por ele também, que sem a compra vai ficar a ver navios.
- O quê? Tá de gozação com a minha cara?
- Não, eu disse que ele não vai ficar a ver navios. Ou melhor, vai ficar a não ver navios. Quer dizer, vai navegar a ficar vendo...

O cidadão desligou na cara, bufando. Menos de um minuto depois, a campainha do telefone é ouvida de novo.

- Olha só, aqui é o cego. E sou eu quem decido o que quero comprar ou não. Dinheiro eu tenho. Você quer vender o carro ou não quer?
- Quero, claro.
- Então vou passar com um amigo amanhã de manhã pra pegar.
- Tá bom. E sei que não é meu problema, mas abre o olho com o seu pai, viu?
- Hã?
- Ops, nada.

Na manhã seguinte, o comprador e o seu colega batem à porta da casa. De fato, o sujeito não enxergava absolutamente nada, mas estava determinado a fechar o negócio. Tateou a lataria da kombi, sentiu o VW da frente, acariciou os faróis, chutou os pneus, alisou os vidros, apalpou os bancos de couro, sentou na posição do motorista, virou o volante para os dois lados, pisou nos pedais, encaixou uma ou duas marchas, girou a chave, apertou a buzina, ligou o rádio e desceu do carro mais do que satisfeito.

- É perfeito!

Guardando no bolso o cheque pelo pagamento, o pai do meu amigo dirigiu-se ao acompanhante do cego.

- É você quem vai dirigir, né?

O cara não falou nada.

- Ei, perguntei se é você quem vai dirigir o carro.

Continuou sem resposta, até o cego intervir.

- Você está perdendo seu tempo, ele é surdo e mudo.

E os dois montaram na kombi verde felizes da vida, levando adiante o destino psicodélico daquele veículo.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pais modernos


- Tá contando as contrações?
- Tô.
- Na mão?
- Claro que não. No aplicativo que baixei pro iPhone.
- Qual o tempo? Qual o tempo?
- Quatro minutos e vinte e quatro segundos, exatos.
- De intervalo entre as contrações?
- Não, quatro minutos e vinte e quatro segundos é a duração da música que estou ouvindo. Ramble On, do Led Zeppelin, cacetada na moleira!
- Desliga esse treco agoooora!
- Pô, bem no meio do solo do Page...
- Seu bebê tá chegando, tô sentindo. Vai chamar a enfermeira.
- Envio um SMS?
- SMS? Ela tá na sala ao lado.
- Vou deixar o telefone aqui, se ele tocar você...
- Se essa joça tocar agora eu sou capaz de ter um filho.
- Mas não é pra isso que você está no hospital?
- Aaaaaaargh.
- Fui.
- (Longos suspiros).
- Voltei.
- Demorou, hein?
- Aproveitei que a enfermeira estava na internet e enviei uns tweets e umas fotos pro Facebook. Aliás, já preparei a câmera pra hora do nascimento.
- Não vai tirar foto do parto não.
- Ih, caretice. Se depender de você essa criança vai ser tecnofóbica.
- Vixe, aconteceu algo.
- Não me diga que a bateria da filmadora acabou!
- O bebê tá saindo, tá saindo, saiu...
- Unhéééé.

Mais tarde

- Tá na hora de sairmos da sala de parto pra irmos pro quarto. Você cuida de pegar tudo?
- Já peguei. Conferindo: iPhone, caixinhas de som, filmadora, máquina fotográfica, laptop. Ok!
- E o bebê, seu lunático? Esqueceu do bebê?
- Ah, mas você também quer que eu pense em tudo.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Muguet


Esse texto foi escrito no dia 01/05, algumas horas antes do nascimento da Louise, quando ainda não sabíamos se teríamos um filho ou uma filha. Semana que vem prometo alguma bobagem sobre baguetes ou o interminável inverno francês. Mas nesse momento gostaria de compartilhar com vocês esse recito, redigido na sala de espera da maternidade.

Sacumé, né, father feelings...


Querido filhotinho (ou querida filhotinha). Hoje, voltando de um jantar com amigos, a sua mãe me deu um buquê de muguet, os lírios do vale, como é costume em toda a França no dia 1º de maio. Era por volta de 1 da madrugada, e foi o primeiro presente que ela me daria hoje. Nesse momento, a gente não desconfiava ainda que o outro, o mais bonito que alguém pode receber, um filho, você, anunciaria a chegada logo pela manhã.

É sábado e faz sol. Há pouco o marché d'Aligre estava apinhado de gente, como costuma ficar nos fins de semana. Alguns foram comprar frutas e legumes, outros passear, e há ainda os que deram as caras apenas para tomar um thé à la menthe em um dos muitos bares das redondezas. Cada um com seus afazeres, suas preocupações, suas vidas.

Saímos de casa sem pressa. Ao fecharmos a porta pelo lado de fora, nos demos conta de que ali éramos só dois, mas quando tornaremos a abri-la, daqui alguns dias, já seremos três.

Lentamente, fui puxando pela rua a mala com as suas roupinhas dentro, avançando em meio ao mar de comerciantes e transeuntes, desviando das pessoas mas aceitando de bom grado os aromas do café, da framboesa, do pão quente, do melão, dos queijos, do kiwi.

De repente, como se o mundo parasse por um segundo, a multidão abriu sutilmente espaço para sua mãe e eu passarmos e alcançarmos o táxi que nos levaria à maternidade. Nesse momento, um raio de sol bateu no meu rosto e me dei conta de que era a pessoa mais sortuda do mundo. E certamente a mais feliz.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Louise


Quero que você cresça logo pra você dar seus primeiros passos e poder andar de mãos dadas comigo na rua, você se esticando toda e eu me abaixando, até você ficar cansada e abrir os bracinhos pra mim, pedindo colo sem precisar dizer uma só palavra.

Quero que você cresça logo pra gente passear no parque, fazer piquenique, montar na gangorra, girar no roda-roda até ficar tonto e sair tropeçando, bater um pique-pega, construir castelo de areia, destruir castelo de areia, subir no escorregador pela parte de descer, esquecer o baldinho e a pazinha num canto, voltar mais tarde pra procurá-los e aproveitar pra brincar um pouquinho mais, e à noite eu te contar mais uma história pra você dormir e depois deixar a luz do corredor acesa, pois você tem medo dos monstros.

Quero que você cresça logo pra te levar com a sua mãe pro cinema e ler pra você as legendas em voz alta, atrapalhando todo mundo ao lado, inclusive a sua mãe, enquanto a gente ataca um balde de pipoca com muita manteiga, deixando mais da metade cair no chão, e depois sair da sessão com a barriga doendo de tanto rir daquele filme bobo, procurar uma barraquinha de cachorro-quente e devorá-lo andando na rua, a gente nem se importando que o molho escorra e meleque as nossas camisas.

Quero que você cresça logo pra te ensinar a tabuada do 7, a conjugação do verbo cavalgar no pretérito mais que perfeito, a história dos Beatles, a localização do planeta Júpiter e a importância de comer alface.

Quero que você cresça logo pra gente ir à praia fazer mais uma etapa do campeonato mundial de jacarés, seguida do famoso concurso de quem come mais picolés de côco e, ao voltar pra casa, realizar a tão esperada finalíssima do torneio de video game, com todas as suas amigas pulando freneticamente e gritando mais alto do que uma turbina de avião.

Quero que você cresça logo pra eu me fingir de malvado para todos aqueles garotos da rua que querem te namorar porque você é uma linda mocinha, assim como se fingiam de malvado os pais das meninas por quem fui apaixonado, mas que depois se revelavam pessoas bacanas e até me convidavam pra ficar pro lanche.

Quero que você cresça logo pra ficar emocionado, num misto de alegria e nostalgia, quando você for embora de casa para morar em um apartamento do tamanho de uma caixa de ovos e achar isso o máximo, super orgulhosa da sua total independência, até o dia em que a pia do banheiro começa a vazar às 3 da manhã e você se lembra de ligar pro velho pai e pedir aquela forcinha na bricolagem de emergência do cano furado.

Quero que você cresça logo para um dia você descobrir que não existe felicidade maior do que ter seus próprios filhos e vê-los crescer, mudar e evoluir, e nesse dia é bem provável que eu seja um avô dos mais deslumbrados.

Pensando bem, quero mesmo é que você cresça bem devagar, pra eu poder aproveitar muito desses e de tantos outros tantos momentos ao seu lado, minha filha Louise.