sexta-feira, 25 de junho de 2010

Bufando como um francês

Ontem, pela segunda vez, fui tratado como lixo por um francês. Uma francesa, na verdade, no auge dos seus 60 e poucos anos. Ia parar minha Vélib, a bicicleta pública de Paris, na estação e a vetusta senhora passou na minha frente, furando a fila na maior cara de pau. Estacionou, sem pedir licença nem nada, na última vaga disponível

Surpreso e soltando fogo pelas ventas, reclamei. Se ela não dissesse nada teria sido menos grave, mas veio com uma história de “Eu peguei seu lugar porque estava com pressa. Além disso, fizeram o mesmo comigo ontem”. Em momentos como esse, lamento que a guilhotina já tenha saído de circulação.

A primeira oportunidade foi uma situação semelhante, uns dois anos atrás, quando um cidadão grisalho roubou também minha vaga de bicicleta, com o agravante de estar chovendo, em pleno inverno. Só que nessa ocasião um de seus compatriotas acabou pagando em seguida pelo maltrato que ele me fez.

Bravo, entrei no cinema pra tentar esquecer essa história. O filme, o uruguaio O banheiro do papa, mostra um pobre vilarejo fronteiriço entre o Brasil e o Uruguai, que se prepara para a visita de João Paulo II. No fim da projeção, um grupo discutia avidamente sobre a história.

- Nossa, não sabia que o Brasil era tão pobre.
- Eles não têm nada, nem estradas.
- Uma miséria só!

Aí meu sangue subiu. Eu já estava bem puto com o que havia acabado de acontecer, não dava pra deixar passar. Se em Roma deve-se agir como os romanos, em Paris a saída é ser um parisiense, pensei. Virei pra trás e me meti na conversa deles.

- Os senhores queiram me desculpar, mas sou brasileiro e acabei escutando a conversa de vocês.

Surpresos, eles abriram os olhos do tamanho de uma bola de futebol. Continuei.

- Eu não sei se vocês estão atualizados com os últimos dados, mas já existem ruas no Brasil. Há até carros que passam por elas.

Eles tentaram retrucar.

- É, mas existem as favelas também, né? Com muita pobreza e violência.

E aí soltei minha carta Super Trunfo.

- Pobreza e violência tem em qualquer lugar, como na periferia de Paris, onde se queima até carro, embaixo do narigão de vocês.

Acho que eles não entenderam o dupo sentido da frase. Mas, confesso, eu fui embora me sentindo um pouco mais leve, dando ainda uma bufadinha antes de deixar o ambiente.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Os alienígenas


Ninguém viu, mas os alienígenas já foram ao Brasil. Sobrevoaram rapidamente o território e pousaram sua grande nave na praia de Copacabana, em um dia de julho. Era o começo de um inverno durante o qual nunca faz frio, coisa que eles, que haviam aprendido sobre a Terra por meio de uma sonda espacial americana perdida, não compreenderam bem.

As ruas de todas as cidades, das capitais às pequenas vilas do interior, estavam pintadas de verde e amarelo. E as casas, as lojas, os carros, as árvores, os muros, tudo, ostentavam uma bandeira com formas geométricas concêntricas.

Aquele lugar, que a sonda descrevia como "a happy place, with lots of happy people everywhere", estava completamente vazio. Ninguém nos escritórios, nenhum veículo passando, as ruas desertas. Parecia que todos haviam sido abduzidos. "Por quem?", os alienígenas se perguntavam, já que não era obra deles. Um silêncio mortal chegaria a incomodar, não tivesse sido quebrado por um grito coletivo tão ensurdecedor quanto inexplicável.


Esses alienígenas, ocupados com os seus afazeres alienígenas, precisaram partir rapidamente. Foram embora do planeta entendendo muito menos do que quando chegaram. Nesse dia, nessa hora, a seleção brasileira disputava mais uma partida de uma Copa do Mundo.

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Esse é o editorial da nova Brazuca, revista da qual sou o editor em Paris e que fala da cultura brasileira, em português e em francês.

Como a edição é inteiramente dedicada ao futebol (tem até entrevista exclusiva com o Raí: "Nunca aceitaria ser técnico da seleção. Isso é um trabalho de doido"), tentei explicar para os franceses como é o ambiente no Brasil durante uma Copa do Mundo, completamente diferente do que encontrei deste lado do planeta.

Se quiser conferir esse e outros textos, o PDF da revista está disponível para download bem aqui.

Inté!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O maracanaço dos Bleus


Nesse exato momento, uma hora antes do começo da copa do mundo, está passando na TV francesa um programa sobre os adversários dos Bleus na primeira fase da competição. Os únicos adversários, se depender da torcida brasileira.

Eles estão falando do Uruguai, que enfrentam essa noite. Robert Pires, um dos atacantes da equipe vencedora de 1998, diz que será um combate basicamente físico, pois nossos vizinhos estão um nível abaixo das seleções brasileira, argentina ou chilena. Alguém precisa enviar a lista do Dunga pro caboclo.

A preocupação dos franceses é com o jogo duro e o cai-cai do Uruguai. A “famosa catimba”, segundo o filósofo Galvão Bueno, que ontem ficou conhecido no mundo inteiro ao ser insultado no Twitter simultaneamente por milhões de brasileiros.

Os conterrâneos de Zidane lembram ainda que os uruguaios possuem um jogo rápido e perigoso, mesmo se não ganham uma copa há exatos 60 anos, quando nos impuseram o maracanaço, o maior trauma coletivo brasileiro. Percebo um sorriso no canto da boca dos comentaristas ao citarem o fato.

Pois bem, para a próxima discussão futebolística com um francês, antes de chutar a canela do sujeito, solte um despretensioso “e aquele França x Bulgária em 1993, no Stade de France, hein?”. Esse jogo, realizado em 17 de novembro de 1993, é o maracanaço francês. Eis a história.

Faltavam dois jogos para acabar as eliminatórias para a Copa de 1994. A França liderava sua chave e disputaria as partidas finais em casa. Um simples empate bastava para classificar os Bleus.

Contra Israel, lanterninha da chave, seria fácil. Afinal, desde a época de Cristo, quando os apóstolos bateram os hereges por 4 x 1, aquele povo não vencia uma partida. E dizem que só conseguiram tal proeza porque o próprio Cristo era o juiz (supremo). Acontece que deu uma ziquezira geral e a França levou dois gols e uma virada nos últimos minutos.

Não tinha problema, bastava não perder pra Bulgária para garantir o passaporte para os Estados Unidos e esquecer de vez o trauma de não ter participado do torneio anterior, em 1990, na Itália.

Nesse jogo decisivo, os franceses abrem o placar com um golaço de Cantona, mas sofrem o empate logo depois. No último minuto, isso mesmo, último minuto, os Bleus estão no ataque. Basta segurar a bola mais 30 segundos e o Tio Sam irá recebê-los pessoalmente no aeroporto, na companhia de Ronald McDonald.

Ainda segundo o pensador Galvão Bueno, “o jogo só termina quando acaba”. Nesse caso ainda não tinha acabado. Ou terminado, sei lá. E David Ginola, meio campista, inventa de cruzar uma bola em frente a área adversária. Os búlgaros recuperam a posse, armam um contra-ataque e viram o jogo. Assim que a partida recomeça, o juiz apita seu fim. E a França ficou sem ir à Disneylândia.

Uma teoria, francesa, diz que essa derrota possibilitou a renovação da equipe, que acabou sendo campeã na Copa de 1998, realizada na França. Uma outra teoria, brasileira, afirma que nesse dia os franceses inventaram o biquinho.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A topologia dos parques de criança


Diz aí se tem coisa que deixa o cidadão mais trololó do que um bebê chorando no ouvido sem parar. Ainda mais quando é o seu bebê. Não sei de você, mas te digo que pra mim é impossível me concentrar em qualquer coisa. Nesses casos, a solução é colocar a criança dentro de um carrinho e partir pra um parque por perto. Com a Louise funciona que é uma beleza.

Já teve a oportunidade de entrar em um lugar desses carregando um exemplar infantil a tiracolo? É qualquer coisa. Um universo até então completamente desconhecido se abre de uma só vez diante de você. Um parque de crianças não é nunca o que se mostra à primeira vista. Tem muito mais coisas entre o escorregador e a gangorra do que sonha nossa vã filosofia parental.

No meio do aparente caos do ambiente, tudo é organizado de maneira bem lógica. E você, confessa, nem desconfiava disso. Vou pegar como exemplo o Square Trousseau, que fica do ladinho da minha casa.

Perto da porta da entrada estão as crianças mais velhas, aquelas que já podem ficar um pouco afastadas do controle das mães. Ali é uma chuva de bolas de todos os lados. É necessário apressar o passo para que um dos sujeitos-mirins não confunda o carrinho do bebê com um alvo móvel. E mesmo assim não é certo que você terá êxito na empreitada. Dependendo das suas habilidades, aproveite para cabecear uma ou duas pelotas pelo caminho e mostrar pra esses francesinhos que futebol é coisa de brasileiro, oras.

Em seguida vem a ala das jovens mães, aquelas que desfilam com seus bebês em carrinhos. Normalmente estão acompanhadas de jovens amigas aparentemente solteiras. Você nota ser o único macho adulto do ambiente quando essas amigas olham pra você, pro bebê e pra você de novo, abrindo um pequeno sorriso, como se pensassem "esse aí fez uma bela criança, tem bom potencial. E se... Não, deixa pra lá. Mas e se...". Mas e se você soubesse disso nos meus tempos de solteiro? Talvez tivesse se tornado baby sitter oficial dos filhos dos amigos, né?

Passando essa zona de guerra, chega o domínio das avós, estrategicamente posicionadas mais longe da gritaria. Os anos de experiência com crianças as permitem observar tranquilamente tudo o que se passa, sem nunca perder o controle da situação e os coques no cabelo. Afinal, elas sabem que não adianta se estressar, porque daqui a alguns anos aqueles anjinhos provavelmente continuarão a frequentar o ambiente, mas um pouco mais adiante, perto do coreto, onde se reúnem os pré-adolescentes de 12, 13 anos. Mesmo assim, serão sempre os fifofonhos da vovó.

Estes sentam-se em cima das mesas de pingue-pongue, compartilham um cigarro surrado e escutam música. Cada um a sua, com seus fones individuais em volumes ignóbeis. Isso os obriga a falar alto, muito alto, todos ao mesmo tempo. Não sei como se entendem, e nem sei se a idéia é que se entendam. Mas a adolescência, pelo que me lembre, é isso aí mesmo. Além do mais, um pouco de lesão auditiva não mata ninguém, desde que a música valha a pena.

Chegando ao final do parque, sempre tem na penumbra um banco com um caboclo solitário. Não demora chega um segundo, empurrando um carrinho totalmente coberto que você se pergunta se está vazio. Com cara desolada, ele entrega-o ao companheiro e diz "tem uma gatinha de bobeira em frente à segunda gangorra, parece que não tem filho não". E você segue em frente com o seu bebê, assoviando aquela dos Beatles.