sexta-feira, 30 de julho de 2010

Les fourmis


Coisa mais difícil do mundo é vez bicho em Paris. Cachorro não conta. Cachorro, pro parisiense, ocupa uma faixa intermediária entre bicho e humano. Para alguns, aliás, é mais humano do que o próprio vizinho, aquele ser inclassificável que coloca música alta e nunca separa o lixo corretamente. Isso, cachorro é gente, vizinho nem tanto.

Pombo também não é bicho pros habitantes da capital francesa. Mas esse, ao contrário dos dogs, é classificado um nível abaixo dos animais. Em algum lugar entre as angiospermas e as briófitas (pausa para dizer o quanto eu detestava biologia vegetal. Fim da pausa. Obrigado). Enfim, pombo é uma das poucas coisas pior do que vizinho.

E inseto? Inseto praticamente não existe. Na verdade existe quando o vizinho enche (mais uma vez) o saco do sujeito, que grita “vou pisar nesse inseto asqueroso”. Ou quando, durante o verão, entram enlouquecidos pela janela moscas mutantes tamanho big e mosquitos verdes deformados. Mas é raro.

Já a formiga pro parisiense é algo tão abstrato quanto as teorias de Sartre. E é possível que compreender Sartre seja até mais fácil do que entender a existência desse inseto. Digo isso porque você não vê formiga por aqui. Durante o inverno talvez estejam com frio demais para darem as caras. E durante o verão, quando Paris fica deserta, é possível que saiam para pegar uma praia em Marseille.

Mas eis que apareceu formiga na minha cozinha. E uma cacetada de uma vez. Vendo do alto, de tão organizadas parecia que saíam em passeata, afinal estamos em Paris. Chegando mais perto percebi que o ponto branco em cima delas não era uma faixa de protesto, mas um grão de arroz que carregavam.

- Vixe, tem formigas na nossa cozinha. E estão levando comida pra rainha.
- Guilhotina! Guilhotina!

Não sei se por reflexo ou por ter escutado em algum lugar que funcionava, joguei detergente em cima das danadas. No dia seguinte elas continuavam lá, só um pouco mais limpas. Aí tentei banhá-las com vinagre, o que, descobri mais tarde, só teria algum efeito prático se virassem salada depois.

Agora elas já tomaram conta da área em torno da pia e, pela movimentação, parece que estão tramando um levante para tomar o fogão e a geladeira. Pra me livrar dessas formigas francesas vou acabar tendo que recorrer a uma velha técnica brasileira: farta distribuição de havaianadas. É aquela história de atacar o inimigo por onde ele não espera.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O mito do longo prazo


De passagem por Brasília, fui convidado a ir à UnB, a universidade onde estudei, conversar com os alunos do curso de laboratório de publicidade e propaganda. Em homenagem a eles publico aqui essa crônica, escrita para a revista nunca publicada de uma agência de propaganda.

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Todo publicitário sonha com um mundo ideal, no qual o diretor de criação diria docemente:

- Tá aqui o briefing. Mas não tem pressa, a campanha é só pra daqui a um mês. Nesse tempo, toma um cafezinho. E se precisar de cafuné, é só chamar.

Quem é da área sabe que é mais fácil o Suriname ser campeão da Copa do Mundo do que isso acontecer. E se acontecesse, nós não saberíamos o que fazer, pois simplesmente não conseguimos trabalhar com tanto prazo.

Apesar de termos que estar sempre antenados com o que rola de mais moderno, acredito que uma parte dos cérebros dos publicitários ainda é meio "old-fashioned", e opera como as velhas máquinas a vapor: quanto mais pressão, melhor. Daria para descrever o seu funcionamento com uma equação como C=P2/∆t, onde C é o cérebro, P é a pressão e ∆t é o deadline.

Imagino o desfecho da situação irreal proposta ali em cima.

- Ô, Juca. Chegou um briefing grande aí, ó.
- Eu vi, mas tem uma coisa que eu não saquei bem.
- O público-alvo?
- Não. Isso é moleza. São as senhoras de 60 anos que já se desquitaram 4 vezes e agora resolveram se dedicar aos esportes radicais.
- É a escolha da mídia?
- Também não, Pedrosa. É verdade que achei estranha a idéia daquela peça promocional, o batom que você aperta e ejeta uma corda de rapel. Mas o resto tá ok.
- Então só pode ser o slogan, que já veio pronto do cliente.
- Nada, eu até gostei. "Radical é a sua avó" é bem apropriado.
- E o que é que você não entendeu, então?
- O deadline.
- O deadline?
- Tem um número errado ali. Tá dizendo que o trabalho é pro 15 do 9, quinze de setembro.
- Isso.
- Mas estamos em julho, mês 7. Hoje é só 23 do 7.
- Isso.
- Temos quase dois meses pra fazer a campanha?
- Isso.
- Não tá certo, Pedrosa. Quem é que consegue criar assim, com todo esse prazo?
- Eu é que não.
- Não dá mesmo.
- E o que a gente faz?
- Vamos deixar o job no fundo da gaveta, pra só tirar de lá 5 dias antes do dia final.
- Genial.
- Agora dá licença que vou ali pedir explicações pro chefe.
- Sobre o trabalho?
- Não. Sobre a história desse deadline. Ele tá pensando que a gente é o quê?

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Certidão

Na fila do cartório, ele achou que a havia visto. Mas não, não podia ser. Diziam que ela tinha se mudado pra outra cidade, outro país até. Ele escutara boatos de que ela teria entrado em um convento ou virado aeromoça, o que pra ele dava no mesmo.

Mas era incrível, o nariz era muito parecido com o dela, aquela curvinha arrebitada. Ele se lembrava bem do nariz, ponto proibido de tocar, terminantemente interditado, pois ela sentia muitas cócegas.

- Vinte e nove, vinte e nove, quem é o vinte e nove?

A funcionária do setor de autenticação olhava com ar desolado para aquele amontoado de gente, provavelmente sabendo que chegaria mais uma vez tarde em casa. E ele, geralmente solidário com a miséria alheia, ao menos em pensamento, não estava preocupado com a novela que a atendente perderia naquela noite. O pensamento dele, assim como todos os seus sentidos, tinham um único alvo: a moça da fila, localizada umas sete ou oito posições à frente.

Ela soltou os cabelos presos. O movimento era idêntico ao que ele conhecera quinze anos antes, mas o comprimento das madeixas havia mudado. Antes chegavam no meio das costas, agora mal passavam a linha do ombro.

Puxa vida, já faz quinze anos que a gente se conheceu, ele pensou, e tudo durou exatamente três anos, dois meses, quatro dias e duas horas cravadas. Ele sabia os números, datas, lugares, canções e sabores de cor. Só não sabia, nunca soube, porque tudo havia acabado.

Ela se virou para buscar um papel no fundo da bolsa e ele teve certeza de que era realmente ela. Estava tão linda quanto em sua lembrança congelada. Os mesmos olhos um pouco puxados e um pouco estrábicos, a mesma boca carnuda escondendo uma arcada tão perfeitamente alinhada que poderia figurar em um comercial de pasta de dentes ou de margarina, as mesmas sobrancelhas cuidadosamente alinhadas, as mesmas três argolas em uma orelha e duas na outra. Tudo exatamente como antes.

- Trinta e dois, o trinta e dois tá aí?

Era ela o trinta e dois. Tirou um envelope e entregou pra moça copiar e autenticar. A atendente fez tudo de forma eficiente e automática, como os funcionários dos cartórios geralmente fazem. Não sorriu, mas também não fez cara feia. Entregou o pacote de volta, uma notinha para o pagamento e retribuiu o agradecimento.

- Trinta e três, cadê o trinta e três, hein? Trinta e três.

Ele não poderia deixá-la escapar sem antes falar algo, qualquer coisa. Quando pensava em como iria abordá-la, ela tropeçou, como sempre fazia, e esparramou os papéis pelo chão. Ele mais do que depressa abaixou-se para recolhê-los. Ela também. Ele pegou antes o documento que ela havia autenticado.

- Certidão de casamento? Você casou?

A frase saiu em voz alta, e no mesmo instante seus olhares se cruzaram. Ela, que ainda não o tinha visto, olhou para ele com um misto de surpresa e horror. Ele, que não sabia de nova vida de sua eterna amada, permaneceu petrificado. O que os dois pensaram nesse átimo só eles sabem, mas ela juntou desordenadamente a papelada e apressou-se em alcançar a porta de saída.

Pela parede de vidro ele a viu enxugar uma lágrima. E ela nem percebeu que a certidão ficara com ele.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Clésio


- E para o trabalho final vocês fazem o que quiserem. Mas não desperdicem essa chance com algo que não valha a pena. Escrevam o texto que vocês sempre sonharam escrever. Não há nenhuma restrição de tema, formato ou tamanho.

A liberdade muitas vezes pode ser sufocante. O que eu, com ainda 20 anos na época, teria até então sonhado escrever? Nesse segundo semestre da faculdade de publicidade, ainda nem havia escolhido ser redator, não sabia se tinha algum talento para escrita, jamais havia pensado seriamente a respeito.

- O que você sempre desejou redigir?

Fazer o aluno pensar é algo que somente os grandes professores, os verdadeiros mestres, conseguem. O Clodo fez mais de uma geração de publicitários pensar graças ao seu curso de Criatividade em Publicidade. O Zé Ferreira fez uma faculdade pensar ao ceder a um grupo de jovens empolgados, eu incluso, duas aulas para uma apresentação sobre a importância dos Beatles na história da comunicação. O Wagner Rizzo me fez pensar ao me dar a única bomba em 4 anos de universidade: “deixa de preguiça, rapaz, você é capaz de fazer muito melhor do que isso”.

- Aqui não existem restrições de nenhum tipo.

Com duas décadas completadas, achava-me senhor do universo. Fazia o curso que sempre quis, tinha os melhores amigos do mundo, tocava em uma banda barulhenta e divertida e, por cima, a minha namorada era a mais bonita de todas. Mas não tinha idéia do texto que entregaria no final do semestre.

E foi refletindo sobre isso que me dei conta de que adoraria escrever crônicas, meu estilo literário preferido desde que descobri, ainda com 8 anos, um livrinho com histórias de Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Luis Fernando Verissimo, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e outros gênios das letras.

Muito mais do que eu poderia imaginar naquele momento, essa tomada de consciência guiou minha vida profissional. Como universitário, usei e abusei do estilo em um fanzine que fundei e afundei 10 anos depois. Como publicitário, busquei a concisão de forma quase obsessiva nos meus textos e slogans. Como jornalista, privilegiei uma linguagem clara e leve. E, como cronista, criei esse blog, reproduzido em sites e revistas como o Le Monde Diplomatique e a Brazuca.

- Faça valer a pena. Não desperdice essa chance.

Pois é, caro Clésio Ferreira, meu ex-professor de Oficina de Texto na Universidade de Brasília, poeta e compositor de mão cheia, pessoa brilhante que vai deixar saudades nos que tiveram a sorte de conhecê-lo, espero não tê-la desperdiçado. E muito obrigado por ter cruzado o meu caminho.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Massagistas

I.

Filha chegando, tese a escrever, viagem ao Brasil se aproximando, todo esse estresse reunido me rendeu uma cavalar dor nas costas, daquelas de entrevar qualquer um. Tava andando tão torto que chegaram a me confundir duas vezes com um dos zumbis do clip Thriller.

- Olha lá, mãe, uma homenagem ao Michael Jackson.
- Fala baixo, menino, não vê que o rapaz é empenado de nascença?

Sem escolha, fui ver um clínico geral, que é sempre o primeiro médico a se visitar na França.

- Rapaz, tu tá mais envergado que a torre de Pisa. Vou te prescrever 10 sessões de fisioterapia.
- Não seria mais eficiente passar por cima de mim um daqueles tratores de alisar asfalto?

Liguei pro fisioterapeuta.

- Pois não?
- Dóóói.
- Onde?
- Em mim.
- Em que parte, especificamente?
- Naquele trecho entre o topo da cabeça e a planta do pé.
- Vixe. Venha amanhã de manhã.
- Tá...a...ai.

No dia seguinte, quando fui pegar um ônibus para ir ao médico, o motorista tentou ser benevolente.

- Senhor, a entrada dos deficientes é pela porta de trás.

Já no consultório, o fisioterapeuta adotou o estilo pragmático.

- Você tem uma escoliose monstruosa.
- Precisa de palmilhas especiais.
- Tem que alongar todo dia.
- Suas costas estão em frangalhos.
- Tem que nadar.
- 36, você só tem 36 anos e já está assim?
- Fica de cueca e deita nessa cama, barriga pra baixo.
- Tem que sacodir esse esqueleto.

E aí ele começou uma sessão de tortura chinesa, apertando meus ombros, carateando a nuca, estapeando a bacia. Ia pedir pra ele arrancar minhas costas e devolvê-las mais tarde, retificadas, mas o sujeito me deu um fatality que me fez perder o rumo.

Na saída, perguntei seu nome.

- Sado.

Aí entendi tudo.


II.

Pior foi um amigo meu, de férias em Paris, que teve um torcicolo repentino e precisou urgentemente ver um fisioterapeuta (kinésitherapeute, em francês). Um conhecido, tentando ajudar, ligou pro que normalmente o atendia: “Já marquei sua consulta. É só você ir lá”.

O meu amigo foi. E voltou pro hotel revoltado.

- Pô, o cara me passou o endereço de um puteiro. Um esquema de sacanagem das brabas, maior rendez-vous. Olha isso.

E me mostrou a foto que ele tirou do letreiro do médico, essa aí embaixo.

Continuou com o pescoço doendo, mas a mulher dele morreu de orgulho do seu ato de resistência.