sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Autour de Paris I - Jardin des Tuileries


Essa semana o Chéri à Paris inaugura uma nova série de crônicas, chamadas Autour de Paris (Em volta de Paris). Cada história se passará em um dos vinte arrondissements, bairros em português, da cidade.

A série começa no primeiro arrondissement, no lindo jardin des Tuileries, que fica pertinho do museu do Louvre.

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Margaridas

Ela chegou completamente cabisbaixa, fitando o chão com aquele olhar de peixe morto que cairia bem em qualquer integrante de banda emo, e dirigiu-se a uma das fontes do jardin des Tuileries, aquela mais próxima ao Louvre. Escolheu um lugar afastado das crianças que brincavam de barquinho, puxou uma das cadeiras disponíveis, sentou-se, virou a cabeça pra trás, fechou os olhos e respirou bem fundo uma, duas, três vezes.

Se a aparência exterior dela era de calma, ou pelo menos de falta de agitação, dentro da cachola tudo acontecia em grandessíssima velocidade. Mil pensamentos simultâneos se atropelavam e nada parecia fazer sentido.

Partiu sem deixar bilhete, o maldito. Parecia só mais uma de suas escapadas, daquelas que ele fazia sempre, sair pra comprar cigarros ou pra tomar uma cerveja com os amigos. Mesmo que demorasse um ou dois dias ele acabava voltando, mas agora já faz quatro meses que não tenho notícias. A culpa só pode ser do meu chefe, aquele déspota que não entende nada de nada mas adora mostrar quem é que manda. “Anota aí no caderno o que é pra fazer”, ele diz. Muito contrariada eu anoto o que aquela voz de taquara rachada dita. Quem ele pensa que é? Ele acha que estou no jardim de infância pra ficar tomando nota do dever de casa? Lembrei, faz um tempão que não encaro um sorvete de sobremesa, muito tempo. O último foi no verão de 2009, mais de um ano. Tava sol, todo mundo na rua, Paris plages lotada. Montei numa vélib e fui sozinha da minha casa até a Île de St. Louis, na sorveteria Berthillon. Não, acho que estava acompanhada, a Marie foi comigo. Pegamos o ônibus juntas e ficamos contando piada em voz alta, sem nem ligar se estávamos incomodando os outros passageiros. Foi nesse dia aquele horrível acidente, quando o motorista perdeu o controle e passou por cima de um motoqueiro. Ou será que foi de um cachorro? Não sei bem. Mas acho que o acidente foi depois, senão a gente não teria ido tomar sorvete. O problema é que o síndico do meu prédio é um tapado. Que mal tem se eu junto alguns amigos lá em casa de vez em quando? Aí ele vem. convoca uma daquelas reuniões chatérrimas e coloca todos os moradores contra mim. A vizinha do 4º andar faz festas dionisíacas e ele nunca diz nada. O pessoal comenta que ele é a fim dela e não tem coragem de contrariá-la. Talvez espere ser convidado um dia, o que eu aposto nunca vai acontecer. Seria mais fácil eu ganhar na loteria e comprar um mundo novinho só pra mim. Ainda sonho com os gritos do motoqueiro. Ainda sonho que estou esganando meu chefe. Ainda sonho com a sorveteria Berthillon. Ainda sonho com aquele cachorro que não conseguiu completar a travessia da rua. Ainda sonho com a cara de buldogue do síndico. Ainda sonho com a volta daquele desgraçado, ainda...

- Oi.
- Hã? Disse ela, abrindo os olhos.
- Trouxe pra você.
- Uma flor?
- Margarida.
- Mas... Mas por quê? De onde ela vem? E de onde você vem?
- Porque tava passando e te vi aqui e achei que você gostaria de ganhar uma margarida, então fui ali colher uma sem que o fiscal do jardim me visse.

Ele entregou a flor, sorriu e saiu andando. Ela o chamou.

- Ei, volta.
- Eu?
- Você gosta de sorvete de framboesa?
- Prefiro pistache.
- Sei onde tem um ótimo.

Ele ajeitou a margarida atrás da orelha dela e os dois partiram em direção à Île de St. Louis.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Admirável mundo (infantil) novo

Quando se vira pai, um novo mundo de possibilidades se abre, você faz coisas que nunca nem sonhou que existiam. Tipo frequentar o café da manhã que a creche da sua filha organizou para promover a interação entre os progenitores dos pimpolhos e pimpolhas ali alocados. Situações assim me deixam sempre meio sem saber o que fazer. Se os pais estão ali por causa de suas proles, o normal é que falem sobre elas, né? E você não tem escolha a não ser aguentar tudo com aquele sorriso de candidato em campanha e, se possível, tentar participar um pouco.

Esse tipo de evento é normalmente dividido em três fases, que não por acaso nomeei com trechos de letras da época brega do Robertão.

1a fase – Vou servir um café pra nós dois (ou o mais lindo do mundo)

A primeira fase começa quando você está ao lado da mesa, se servindo de café e croissant. E aí topa com uma mãe que, claro, acha sua criação a coisa mais linda de toda a história.

- Olá, eu já te vi aqui. Você é a mãe do...
- Cornelius.

E você pensa meu deus, quem é que chama Cornelius? Deviam prender os pais por desacato, por maltrato de menores, por qualquer coisa, mas deviam prender. Um pouco de tortura também não faria mal. Nada grave, só colocar uns palitos embaixo das unhas, coisa pouca.

- Cornelius, que nome mais, mais, como eu digo?
- Mais lindo, né? E não é só o nome, ele também é maravilhoso. É airoso de manhã, esplêndido à tarde e ainda mais deslumbrante à noite.
- É mesmo incrível juntar tantos adjetivos.
- Em uma só criança?
- Não, em uma só frase.
- Vou ali pegá-lo pra você poder ver que não estou mentindo.
- Carece não, minha senhora...

Mas aí ela já foi e nem te deu ouvidos. A sua única chance de escapar é agora, o melhor é agir rápido. Num impulso, você se afasta da mesa e vai fazer gracinha para um bebê que está no chão e se diverte com seu chocalho. Nesse exato instante os pais se aproximam e, sem perceber, você adentra na segunda fase do evento.

2a fase – Por que me arrasto aos seus pés? (ou ele é o máximo)

- Que gracinha (você acha melhor não perguntar o nome).
- Appolonia.
- Saúde.
- Não, eu disse que o nome dela é Appolonia.

Você devia ter perguntado, você pensa, devia ter perguntado. O choque seria menor e você não teria cuspido na janela da diretora o pedaço de croissant que tinha na boca.

- Ela (você se recusa a repetir o nome) parece se divertir com esse chocalho.
- Tá treinando.
- Treinando?
- Em casa ela toca chocalho e assovia a nona de Beethoven.
- A nona de Beethoven?
- De trás pra frente. Quer ver?

Você já está ali, e pensa que não faz mal nenhum assistir à performance de Appolonia, cordenada pelos pais e futuros empresários.

- Appolonia, assovia. Appolonia, chacoalha o chocalho. Appolonia, lembre-se da introdução. Appolonia, apoquente-se.

Mas tudo o que a Appolonia faz é soltar um tremendo pum.

- Dá pra ver que nessa orquestra pelo menos a tuba tá em cima.

Você já está louco pra ir embora, mas pega mal ser o último a chegar e o primeiro a sair. Então decide refugiar-se no banheiro até que te esqueçam ou inventem o teletransporte que te levará dali direto para sua casa, o que vier primeiro. Só que ao adentrar nas dependências do toalete você dá de cara com aquele casal que você sempre achou meio estranho, trocando a fralda do filho. Sem ter outra opção, você decide ficar ali e puxar papo. Erro craso, pois é nesse instante que a terceira fase do evento inicia.

3a fase – Você, que vem de dentro (ou o mal é o que sai da boca do homem)

Sem saber como começar a conversa, você dá um sorriso e aponta pra fralda suja.

- Cocô, né?
- Não é cocô. São excrementos resultados de uma alimentação à base de produtos orgânicos, preparada com água do Himalaia e em panelas de argila feitas pela minha mãe na própria fazenda. Os legumes que ele come recebem 16 horas de sol por dia e são adubados com materiais orgânicos nobres, vindos diretamente da América do Sul. Às 2as, 4as e 6as ele come apenas alimentos que começam com consoantes. Às 3as, 5as e sábados, alimentos que começam com vogais. Aos domingos, faz jejum com a gente. O que você acha?
- Acho que tá meio amarelão.

E você volta pra casa doido pra ligar a tevê.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Teses musicais 6 - Hamilton das Cévennes


Esse é o último texto da série “teses musicais”, pois finalmente terminei de escrever o mémoire do mestrado (ueba!). É uma crônica feita há 3 semanas, no estilo “redija durante uma música”, quando ainda estava na linda região das Cévennes, no sudoeste francês.

Aperta o play aí.



Lugar paradisíaco esse da foto ao lado. Faz bem uma pausa na tese, para respirar, dar um mergulho e esfriar a cabeça. Quando eu digo esfriar, não é força da expressão. A água estava a 15ºC!

01 byte 10 cordas é o nome da música e de um disco de Hamilton de Holanda. Escute-a com atenção. Quantos instrumentistas tocam? Por incrível que pareça, um só. Esse álbum é o primeiro no mundo gravado com o bandolim de 10 cordas, que Hamilton mandou fabricar para poder fazer acompanhamento e solo ao mesmo tempo. Consagrado no Brasil, ele é amado na França, onde a imprensa o apelidou de “príncipe do bandolim”. A revista Bravo! não quis ficar atrás e o promoveu “de príncipe a rei”. Nos Estados Unidos, a comparação é com Jimi Hendrix. Segundo os críticos, o músico brasiliense (tá, nasceu no Rio, mas cresceu em Brasília, minha cidade) promove a maior revolução no instrumento desde Jacob.

O céu aqui está de um azul incrível, e faz um belo contraste com a vegetação impressionantemente verde das Cévennes. No inverno, imagino, tudo deve ficar na mais alva brancura. Será que esse riacho congela? Dá (quase) vontade de vir ver. Ao meu lado, Louise cochila na sua tenda. Ela cresceu – a Louise, não a tenda. Eu sou capaz de ficar o dia inteiro olhando pra ela, pra não perder um só instante das rápidas mudanças pelas quais ela passa.

Os jornalistas franceses tem uma certa dificuldade em definir a música de Hamilton de Holanda. Pra eles é choro, apesar de o bandolinista ter ultrapassado as fronteiras desse gênero há muito tempo. E o pepino pra imprensa aumenta na hora de explicar o instrumento que ele usa, "uma versão brasileira do velho mandolim europeu, ao qual ele acrescentou um par de cordas". Parte da culpa disso é da grande produtividade do músico, que lançou quinze discos em treze anos de carreira, sempre olhando pro futuro. Ele mesmo diz que precisa “fazer evoluir as formas tradicionais em direção à modernidade, pois quem anda pra trás é caranguejo”.

Quanto a mim, esticado numa cadeira de praia mas longe do mar, observando o riacho, suas pedras e a pequena barragem, fico pensando que essa música poderia durar um pouco mais, pois assim que ela terminar eu vou dar o mergulho diário nessa água gélida e retornar à minha tese. Daqui a alguns dias volto pra Paris. É bom ir pra casa, mas nesse momento gostaria de ficar um pouco mais por aqui. Gostaria que o verão durasse pra sempre.



Aproveito pra colocar aqui a música Bandolim, que o meu irmão, Pedro Cariello, compôs em homenagem ao Hamilton de Holanda, seu amigo de escola. Foi gravada pelo grupo Batucada de Bamba, do qual ele fazia parte, e tem participação do próprio Hamilton.




Leia os outros textos das teses musicais:

. Baden Powell
. Villa-Lobos
. Hamilton de Holanda
. Rolling Stones
. Orfeu Negro

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Teses musicais 5 - Orfeu Negro


Antes de mais nada, aperte o play aí.



Agora vamos lá. Você sabia que o sucesso mundial da bossa nova nos anos 60 deve muito a um filme francês? Pois é, pois é. Lançado em 1959, Orfeu Negro, recriação para o cinema da peça Orfeu da Conceição de Vinícius de Morais, tinha na trilha sonora só músicas desse novo estilo musical (e bossa nova é um estilo?) estalando de novo. Composições do próprio Vinícius, de Tom Jobim e de Luís Bonfá. Merecidamente, a produção do cineasta Marcel Camus papou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Quatro anos depois do lançamento de Orfeu, Baden Powell chegou a Paris de mala, cuia e violão debaixo do braço. Foi apresentado aos músicos franceses e bares parisienses por seu parceiro de música e de copo, o mesmo Vinícius, então diplomata na embaixada brasileira.

Apesar de sua notória timidez, Baden chegou fazendo barulho e logo começou a aparecer. Foi então que conheceu um sujeito chamado Pierre Barouh, cantor, ator e garotão boa pinta, que tinha caído de amores pela música brasileira. Em 1965, Barouh deu um jeito de incluir uma versão francesa de Samba da benção, chamada Samba saravah, no novo filme de Claude Lelouch, Un homme, une femme. E aí a bossa nova explodiu de vez.

“Talvez mais amado na França do que no Brasil”, segundo a revista Mondomix, Baden Powell tornou-se para sempre a representação de um instante mágico vivido por um país mágico. O país da bossa nova, da praia de Copacabana, do futebol que encanta o mundo. Tudo isso eternizado pelas seis cordas de um violão.

De Brigitte Bardot a Françoise Hardy, de Charles Aznavour a Serge Gainsbourg, praticamente todos os grandes cantores franceses da época gravaram ao menos uma música composta no estilo, ou influenciada por ele. Essa que você está ouvindo agora (você apertou o play lá em cima, não apertou?) é uma das minhas preferidas, do meu compositor francês favorito. Trata-se de Ces petits riens, de Serge Gainsbourg, pequena pérola desse grande artista. A letra, poética como tudo o que ele escreveu, começa com “Mieux vaut n'penser à rien que n'pas penser du tout / Rien c'est déjà, rien c'est déjà beaucoup” (“Melhor do que não pensar é pensar em nada / Nada já é, nada já é muito”). Há muito pra pensar aí, ou talvez não haja nada.

Uma parte do sucesso da bossa nova se explica pelas imagens difundidas por Orfeu Negro, de um Brasil de sonhos e esplendoroso, que ainda contava com a trilha sonora ideal. Quando Orfeu toca seu violão para o sol se levantar, quem sobe junto com o astro rei é a música brasileira, que ali conquistou definitivamente o seu espaço no mundo.

Leia os outros textos das teses musicais:
. Baden Powell
. Villa-Lobos
. Hamilton de Holanda
. Rolling Stones