sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Autour de Paris XV - Torre Montparnasse


Como fazem todos os anos desde que se conhecem, eles passam o réveillon no último andar da torre Montparnasse, de onde têm uma visão privilegiada de Paris. Absortos, observam a neve que cai em grossos flocos. Até que a contagem regressiva coletiva os traz de volta ao mundo real. Eles se olham nos olhos, sem nada dizer.

- Dix!

Ele pensa: Não acredito. Outro ano inteiro passado com essa aí. Quando esse inferno vai terminar?
Ela pensa: O que eu estou fazendo ao lado ele? Isso é autopenitência.

- Neuf!

Ele pensa: O Greg está passeando de barco no Caribe. O Vincent faz uma festa de arromba na casa dele.
Ela pensa: Por que deixei de ir ao jantar na casa da Véronique?

- Huit!

Ele pensa: No restaurante ali embaixo eles estão servindo foie gras e champagne. E eu aqui com essa mercadoria de terceira qualidade na minha frente.
Ela pensa: Vi na tevê que eles esperam 500 mil pessoas no Champs-Élysées. Pelos menos umas 400 mil devem ser mais interessantes do que este cidadão.

- Sept!

Ele esboça um sorriso com o canto dos lábios.
Ela levanta a sobrancelha em complacência.

- Six!

Ele pensa: Batom no dente. Ela sempre tem batom no dente. É medonho.
Ela pensa: O hálito dele hoje está ainda pior. O bafo do faraó.

- Cinq!

Ele pensa: E esse vestido vermelho? Que coisa mais brega. Tá um tonel e fica usando roupa colada.
Ela pensa: Todo ano ele coloca esse terno xadrez e essa camisa de listras. Nunca vi alguém com tão mau gosto.

- Quatre!

Ele pensa: A meia dela está rasgada. Tem banha escapando pelo furo.
Ela pensa: O corcunda de Notre-Dame jogou fora esse sapato que ele está usando hoje.

- Trois!

Ele respira fundo.
Ela suspira.

- Deux!

Ele pensa: Se ela caísse daqui de cima, quase sem querer, pareceria suicídio.
Ela pensa: Intoxicação com ostras estragadas só mata 48 horas depois. Dá tempo de eu me mandar pra outro canto do mundo.

- Un!

Ele pensa: Tomara que ela desapareça quando 2011 começar.
Ela pensa: Tomara que ele desapareça quando 2011 começar.

- Bonne année!!!

Ele a pega nos braços, como em um passo de tango.
Ela vira a cabeça pra trás.
Ele a beija como nunca e aperta sua bunda.
Ela dá uma reboladinha.

Ele diz: Vamos embora dessa festa chata.
Ela diz: Só se for pra nossa cama.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Autour de Paris XIV - As catacumbas


Na noite de Natal, dois casais de turistas brasileiros estão perdidos nas catacumbas de Paris. Como companhia eles têm os 6 milhões de esqueletos ali guardados.

Santina (mulher do Klaus), iluminando o próprio rosto com a única lanterna que eles possuem - Quero saber o que vamos fazer agora. Quem vai ter a próxima idéia genial?

Klaus – É, quem vai ter?

Noel (marido na Natália, que vai aparecer mais pra frente) - Calma, Santina. Você tá mais ansiosa que madame em dia de liquidação.

Santina – Se você não tivesse inventado aquela história a gente não tinha se perdido.

Klaus – É, não tinha.

Noel – Tudo isso só porque chamei vocês em um canto pra encenar Macbeth com uma caveira na mão?

Santina – Hamlet, Noel.

Klaus – É, Hamlet.

Santina – Fez a gente se separar do grupo e ainda por cima recitou o texto errado.

Noel – Ué, não era “let it be, let it be, whisper words of wisdom, let it be”?

Santina – Claro que não. É “to be or not to be, that’s the question”. “Ser ou não ser, eis a questão”.

Klaus – É, a questão.

Noel – Mas agora não adianta ficarmos discutindo o texto das peças de Beethoven. Temos que pensar no que fazer. É noite de Natal, nossas famílias estão longe e ninguém vai sentir nossa falta até amanhã de manhã. Eu vejo duas soluções: a primeira é dormirmos aqui mesmo, no chão, com um de nós alternando na vigília.

Santina – Nem morta, Noel. Qual a segunda?

Noel – A segunda é disputarmos um concurso de sombras com as mãos. Eu faço um cavaleiro montado em um dragão cuspindo fogo e saltando corda que é imbatível.

Santina – Noel, não estou para brincadeiras.

Klaus – É, não estou.

Noel – Tem idéia melhor?

Santina – Acho que devemos continuar andando. Vamos acabar encontrando o grupo.

Noel – A essa hora eles já foram embora. E além do mais estamos andando em círculos. Tem um esqueleto ali atrás que até me reconhece. Já me fez sinal de positivo duas vezes.

A lanterna dá a primeira piscada.

Santina – Jesus Cristo!

Klaus – É, isto.

Noel – Precisamos pensar em algo. Estamos a 20 metros embaixo da terra. Os telefones não funcionam. A lanterna vai pifar em breve. Se gritarmos ninguém vai escutar. E o pior é que eu vou perder o Natal do Faustão, que vai passar ao vivo na internet.

Santina, fazendo boca de choro – Não posso morrer agora! Eu tenho três filhos, cinco cachorros e um panettone me esperando.

Noel – Se tivesse um panettone me esperando eu preferia ficar por aqui mesmo.

A lanterna dá a segunda piscada, dessa vez mais longa. Natália, que é engenheira eletrônica formada pelo ITA e tem conhecimentos avançados em informática, pega todos os celulares e vai pra um canto improvisar uma bricolagem. Volta dois minutos depois.

Natália – Consegui fazer uma pilha super forte somando as baterias dos nossos celulares. Desmontei os aparelhos e com a ajuda de um grampo de cabelo coloquei-os em conexão. Assim as antenas também somaram potência e deu pra captar um sinal de rede vindo do lado de fora. Bem fraco, mas suficiente para eu conseguir enviar um e-mail curto para nossas famílias no Brasil, avisando-os da gravidade da situação e pedindo que tomem providência urgente. Fiz tudo isso antes que as baterias explodissem.

Noel – E o que você disse?

Natália – Estamos com probleminha. Favor gravar Natal Faustão. Beijos.

Santina – Ai, meu Deus, tenha piedade de nós.

Klaus – É nós!

E a lanterna pifa de vez.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Autour de Paris XIII - Biblioteca François Mitterand


Ele chega à enorme Biblioteca François Mitterand carregando dezenas de livros de poesia. Foi inventar esse mestrado de análise poética crítica e comparada pra quê?, é o que pensa diariamente ao ingressar no recinto.

Dessa vez, sua mesa de praxe está ocupada. Ele procura, mas só encontra vaga na seção de culinária. Suspira, instala-se lá mesmo e vai buscar outras obras para o seu estudo da semana, o destrinchamento de Les fleurs du mal, de Baudelaire.

Quando volta é que repara na linda japinha sentada na cadeira em frente à sua. Apesar de entretida em leituras sobre os segredos dos grandes chefs de cozinha, ela também o nota. Ele baixa os olhos de timidez. Ela levanta a cabeça. Ele fica amarelo. Ela faz um psiu. Ele se acha o cara mais sem sal do mundo. Ela dá um sorriso doce. Ele submerge na sua poesia. Ela retorna à culinária.

Ele é de poucas palavras próprias, mas é mestre em encontrar outros que falem bem por ele. E na hora em que a japinha levanta-se para buscar um livro, ele deixa Les fleurs du mal em cima da mesa dela, aberto no poema À une passante. E vai embora antes que ela retorne e ele não tenha coragem de encará-la.

Ailleurs, bien loin d'ici ! trop tard ! jamais peut-être !
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais !


(Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado — e o sabias demais!)


No dia seguinte, ele volta à biblioteca e vai diretamente à seção de culinária. Não escolhe a mesa do dia anterior, mas uma outra, nem tão perto e nem tão longe, de onde pode observar sem ser visto. Mas a japinha não está lá. E nem em canto nenhum, ele percebe, depois de vasculhar todas as salas.

Durante toda a semana ele retorna outra vez e outra e outra e não mais a vê. Procura em todas as seções, em todas as mesas, entre todas as prateleiras, pergunta a todos os bibliotecários e não descobre pista alguma.

Foi a poesia que a afugentou, pensa. Não, foi Baudelaire, reflete. Não, foi ele próprio, conclui. Ela deve ter odiado receber um elogio tão século XIX, na forma e no conteúdo. A poesia não serve de nada, amaldiçoa. Palavras bonitas não têm mais vez. E talvez nunca tenham tido. Não é à toa que os poetas românticos brasileiros morreram jovens, torturados pelo mal do século.

Ele sai, cabisbaixo. Do lado de fora, está tão compenetrado na própria imersão que quase não escuta o psiu sussurrado vindo do banco de concreto pelo qual acabou de passar. Levanta os olhos e a vê, a japinha. Fica completamente desconcertado e deixa escorregar todos os seus livros. O do Neruda cai aberto na página de Tu risa, um dos poemas que ele mais gosta. Ela o ajuda a recolher e lê em espanhol os primeiros versos.

Quítame el pan, si quieres,
quítame el aire, pero

no me quites tu risa

(Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não

me tires o teu riso.)

Ela sorri ainda mais docemente. Ele fecha o livro. Ela dá um bombom pra ele. Eles caminham juntos.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Autour de Paris XII - Square Léo Ferré


Em Paris é assim: virou a esquina, trombou com uma equipe de cinema. Às vezes uma rua inteira fica isolada para uma filmagem. E enquanto os técnicos preparam o set, o diretor e o elenco aguardam tranquilões na van. De vez em quando vou bisbilhotar.

- Quem tá na van?
- Lesse Hallström.
- A cachorra?
- Não, o diretor sueco.

Não tenho o menor talento pra representar. Acredito que estaria facilmente entre os 4 ou 5 piores atores da história, talvez na frente apenas do cigano Igor (abraço pra ele) e do Maurício Mattar. Mas ainda assim às vezes me pego imaginando se com um papel adequado e bem dirigido eu não descobriria um talento escondido e viraria um desses fenômenos que já chegam arrepiando, faturando Cannes, Oscar, Berlim e o escambau.

Daí que outro dia tinha um pessoal filmando em frente à creche da Louise, no square Léo Ferré. Passei por eles na ida e na volta e parei um pouco pra observar. Fiquei uns bons 10 minutos, puxei uma conversa fiada com um dos produtores sobre a enorme quantidade de produções cinematográficas simultâneas em Paris e sobre o que era aquele filme.

- Basicamente é o encontro de uma francesa com um estrangeiro.

No dia seguinte, eles estavam outra vez lá, na mesma hora. Eu butuquei de novo.

- É pra pegar a mesma luz, me contou o produtor. Filmaremos aqui a semana inteira.

Toda manhã eu passava com a Louise e na volta fazia um aceno pro carinha, que já me reconhecia.

- Bonjour!
- Precisando de um sotaque brasileiro, tamos aí. Se já tem um estrangeiro, por que não dois?

Na sexta-feira era o último dia das filmagens. Preparei Louise no seu carrinho, coloquei meu sobretudo novo, estilo Sgt. Peppers, e deixei-a na creche. Na saída, levantei as abas do casaco, fazendo um gênero meio Gainsbourg dos trópicos, coloquei as mãos no bolso e atravessei tranquilamente o set de filmagem. Se fumasse, era a hora perfeita de acender um cigarro. Aquele produtor tinha nas mãos a chance entrar pra história como o revelador do meu dom de ator. O figurino já estava pronto. Bastava uma ou duas frases bem colocadas, com um sotaque sob medida, e eu chamaria imediatamente a atenção do universo cinematográfico.

Ele grita.

- Ô, brasileiro.
- Opa, eu?
- É, você.
- Diga aí.
- Dá pra acelerar o passo, s'il vous plaît? Estávamos filmando e como você entrou no meio vamos precisar refazer a cena.
- Ah, claro, respondi, tropeçando.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Autour de Paris XI - Le Cirque d'Hiver


O Cirque d’Hiver, circo de inverno, é uma bela construção do século XVIII, perto da place de la République. Um desses lugares pelos quais vivia passando e nunca parado para conferir. Hoje resolvi conhecer, exatamente no dia em que Paris acordou sob a neve, exibindo um inverno que chegou antes do previsto.

Na esperança de me aquecer, decido enfrentar andando um percurso de pouco mais de 20 minutos. A tática não deu muito certo, é claro, e chego ao Cirque semi-congelado. Dou uma olhada rápida, afinal foi pra isso que vim, e me enfio no l’Autobus, o primeiro café que encontro. Solto um bonjour para o único cliente presente e interrompo a faxina do funcionário para pedir um chocolat chaud.

- Dos grandes, faz favor!

Assim como minha boca, minhas papilas gustativas estão adormecidas e eu não consigo dizer se o chocolate está muito ou nada doce. Na dúvida, sapeco uma pedra de açúcar. Está quente, então está bom.

Pela janela, observo o bar ao lado, Le Centenaire, onde um sujeito encapotado lê um livro e desobedece à regra básica da estação: ao entrar em um ambiente aquecido, tire toda a vestimenta pesada, para não sentir frio quando sair.

O outro cliente do Autobus puxa um papo qualquer com o atendente sobre nevascas no centro do país, veste seu sobretudo e ameaça ir embora. Abre a porta, recebe uma rajada glacial, volta para o seu lugar e passa longos minutos contemplando o infinito. Toma novamente coragem, levanta-se outra vez e parte.

Um estrangeiro – digo isso pelo seu sotaque – entra e pede um gim com Coca. São 3 da tarde e o servente diz que infelizmente não pode servir álcool a essa hora. O cidadão insiste, com uma fala lenta, argumentando que trabalhou 36 horas seguidas e precisa de algo forte para aquecê-lo.

- Désolé, mas não posso fazer nada, diz, enquanto no meu canto penso em como as estações determinam o ritmo de vida nos países temperados, você querendo ou não.

O inverno, o frio, a neve e o nariz escorrendo; as camisetas em malhas quentes, os casacos de lã, os sobretudos e a pele ainda assim arrepiada; as luvas, as echarpes, os gorros e as extremidades destemperadas; as meias finas cobertas por meias grossas, os calçados especiais e os pés escondidos e encolhidos, tudo isso faz parte de uma realidade que ainda não consegui entender e talvez nunca consiga.

Mas ao menos parei de brigar com ela.

Agora podemos ter uma relação de respeito, o inverno e eu.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.