sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Autour de Paris XIX - Rue de Belleville


O bairro de Belleville fica em cima de uma colina. E uma das ruas que o corta, a rue de Belleville, é íngreme pra chuchu. Uma das idéias mais cretinas que um caboclo com mais de dois neurônios pode ter é inventar de subi-la de bicicleta.

É claro que eu não sabia disso quando precisei ir buscar urgentemente um documento na place des Fêtes, um dos pontos mais altos do bairro. “Metrô é para os fracos”, falei comigo mesmo. “Eu vou é de Vélib. Já visitei Ouro Preto e não é uma ladeirinha parisiense à toa que vai me intimidar”.

Da parte de baixo da rua, olhei pro desafio que me aguardava, coloquei Achilles Last Stand do Led Zeppelin no iPod, trilha de pedaladas de outrora, e comecei a empreitada. Nos dez primeiros metros senti que seria moleza, estava com fôlego de criança. “É só isso? Todo mundo fala tanto dessa subida que esperava uma pedreira. Esses parisienses não estão com nada. Olha lá, tô até sentindo que tem um outro ciclista que chegou pra segurar no meu banco e aproveitar pra subir de carona comigo. Deve ter ficado espantado com o meu gás. Tô indo bem mais devagar agora, mas ainda dou conta por mim e por ele”.

Virei pra dar um alô pro outro ciclista, dizer que ele não se incomodasse, que podia ficar ali e tal. E é claro que não havia ninguém. Aí eu me dei conta: ou eu tinha engordado 80 quilos (maldita macarronada da véspera!) ou a parada era mesmo complicada.

Troquei a marcha da bicicleta por uma mais leve, baixei a cabeça e aumentei o ritmo. Uma centena de pedaladas mais tarde, já me imaginava no meio do trajeto e só me toquei que permanecia quase no mesmo lugar quando escutei um pirralho falando.

- Olha lá, mãe, que legal. Aquele moço tá fazendo ergométrica no meio da rua.
- Fala baixo, menino, é só um doido tentando subir a ladeira.

Deu vontade de descer pra lhe dar uns dois ou três cascudos, mas precisava me concentrar e guardar energia para o resto da empreitada. Respirei fundo e estabeleci a tática: forçar o máximo durante 5 minutos, ir de leve nos 5 minutos seguintes, alternando a cadência até chegar à place des Fêtes. Ao fim da primeira sequência achei que fosse ter um ataque cardíaco. E só não tive porque uma dona me trouxe de volta à realidade.

- Moço, sua echarpe tá arrastando no chão.

Não tinha echarpe nenhuma. Era a minha língua.

A essa altura eu já não sabia mais porque estava fazendo aquilo, só sabia que era tarde pra desistir. Como um soldado em guerra, meu objetivo estava traçado e eu simplesmente não podia abandoná-lo. Mesmo com a visão turva, dava ainda pra ver os ciclistas que vinham na direção oposta, descendo a mil por hora, felizes da vida, rindo à toa, se divertindo, enfim.

“Pois bem, eu falei que ia chegar lá em cima com bicicleta. E é exatamente isso que vou fazer”. Sem titubear, desci da Vélib e fui empurrando-a rua acima até alcançar meu destino, para o olhar espantado dos passantes.

Na place des Fêtes, morto mas com a sensação de dever – ou promessa? – cumprido, empolguei-me e decidi fazer um pedaço, um pedacinho só, da ladeira no sentido inverso, o da descida. Foi tão bom que esqueci de freiar e só parei quando cheguei lá embaixo, exatamente no ponto de onde tinha partido.

Nunca voltei pra buscar a merda do documento.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Autour de Paris XVIII - La place du Tertre


O velho pintor da place du Tertre reclamava do reumatismo, das dores nas costas, da tosse recorrente e principalmente do seu antigo talento agora desaparecido. Enquanto os estandes dos colegas de profissão, ao lado do seu, viviam cheios, o dele não via um cliente há tempos. Nenhum casal de namorados atrás de uma lembrança de Paris. Nenhuma senhora pedindo para transformar a foto do netinho em pintura. Nada.

Lembrando-se de sua juventude, quando fora até apontado como uma promessa das artes plásticas, ele guarda pela derradeira vez na bolsa os pincéis, as telas e o cavalete, e se perguntava em que parte do caminho havia perdido a mão.

- Hoje é meu último dia. Amanhã não volto mais, pode passar meu ponto para outro, comenta com o pintor ao lado, que parece não dar muita bola.

Nisso aparece uma menina, pulante tal qual perereca, que senta na cadeira à sua frente. Ele resmunga.

- Tá fechado. Pra sempre.

Ela não diz nada, apenas sorri.

- Você não escuta, mocinha? Não pinto mais. Agora vai se levantando que eu preciso guardar essa cadeira também. Escolhe outro, mais jovem, com mais jeito pra coisa. Aqui na praça tá cheio. Eu acabei.

A menina continua a ignorar as palavras e o mau humor do velho. E o fica encarando, esperando.

- Ai, meu Deus, e agora mais essa. Tá bom, fica quietinha que eu vou fazer uns rabiscos aqui. E depois você vai embora com o seu quadro, ok?

Ele pega todo o material que já havia guardado, remonta o cavalete e procura um carvão. Pra livrar-se logo da aporrinhação, traça em poucas linhas o rosto da criança. Alguns riscos depois considera acabada a tarefa. Mas aí olha novamente para a menina e percebe que o vento trouxe uma flor, que pousou suavemente em cima dos cabelos dela.

- Espera aí, faltou um detalhe.

Abre novamente a bolsa, busca umas tintas e prepara uma palheta para pintar o novo elemento.

- Está melhor, fala sozinho.

O velho encara novamente o quadro e a criança. E nota que atrás dela há um passarinho, quieto, observando a cena. Mistura mais algumas cores e desenha também o pequeno animal. A menina, imóvel e em silêncio, continua a sorrir.

- Já estou quase terminando, diz, reparando que agora um raio de sol de fim de tarde bate sobre o rosto dela e revela um tom de laranja que há muito tempo ele não via.

O pintor busca no meio das suas coisas as tintas especiais que havia guardado para uma ocasião que nunca aparecera e colore ligeiramente o desenho. Aproveita que já montou todo o seu aparato e aproveita para incluir alguns detalhes, até finalmente dar a obra por encerrada.

- Pronto. Venha ver. Até que não ficou mau, né? Acho que resta ainda algum talento nesse velho aqui.

A menina levanta da cadeira e pára ao lado do homem, alegre e rejuvenescido. Depois tira umas moedas do bolso e dá pra ele como pagamento. Ele recusa.

- Pode levar. É presente.

Ela olha para o quadro, dá um beijo na tela, outro na bochecha do pintor, e diz.

- Não. Esse é o meu presente pra você.

A criança devolve a obra ao artista e vai embora, saltitante.

Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Autour de Paris XVII - Rue Catulle Mendés


Blanca mora no último apartamento do último edifício da última rua do 17º e menos badalado arrondissement de Paris.

De segunda a sábado ela se levanta cedo para ir trabalhar e só volta pra casa depois de cumprir uma jornada que varia de 10 a 12 horas diárias. Acorda sozinha, pega o metrô sozinha, caminha pelas ruas sozinha, trabalha sozinha e é sozinha que dorme à noite.

Blanca não tem tempo de parar para comer, por isso sempre carrega sanduíches, frutas e biscoitos na bolsa. Leva também uma garrafinha de água e de vez em quando um chocolate. Ela se alimenta nas poucas pausas que faz, enquanto anda de um lugar para outro.

Aos domingos ela fica na cama a manhã inteira, recuperando-se da semana puxada. Acorda no início da tarde, prepara um almoço rápido e volta a dormir. Desperta mais uma vez, come de novo e retorna ao leito. Às vezes alguém a convida para um encontro dominical. Às vezes ela vai. Às vezes não tem forças.

Blanca deixou sua casa há sete anos. E há dois não vê os filhos.

Todos os dias ela liga para os parentes e passa horas colada ao telefone. Durante muito tempo essa foi a única forma de contato, mas agora ela tem internet e aprendeu a usar a webcam.

Blanca veio a Paris ralar dia e noite pra juntar dinheiro e mandar pra família. Com o que enviou, seus filhos puderam pagar a faculdade e ainda algum conforto.

Às 4a feiras ela faz duas horas de faxina aqui em casa. O apartamento é pequeno e na verdade a gente nem precisava de alguém para limpá-lo. Decidimos chamá-la porque uma amiga disse que ela tinha que acumular horas de trabalho para conseguir o visto provisório e poder ficar legalmente na França.

Blanca tem uma dura rotina, tão dura quanto a das faxineiras e domésticas brasileiras, mas com a diferença de estar em um país que não é o seu, comunicando-se em uma língua que não é a sua.

Apesar de tudo, ela está sempre sorrindo e bem disposta, principalmente quando fala da Colômbia.

Blanca me disse essa semana que em fevereiro não vem trabalhar. Radiante, contou que seu visto de permanência finalmente será liberado e ela vai visitar seu país e sua família. Com o documento em mãos, pode ir a Bogotá e depois voltar tranquilamente para Paris, sem correr o risco de ficar detida uma semana na imigração do aeroporto, sofrendo ameaças, dormindo no chão e dividindo um banheiro com 50 outras pessoas, como aconteceu da última vez.

Eu fiquei feliz por ela.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Autour de Paris XVI - A casa da Carol e do Alberto


A casa da Carol e do Alberto é a segunda embaixada brasileira em Paris. E eu não digo isso só porque sou amigo da Carol há quase 20 anos.

Em que outro lugar da cidade a gente chega pra almoçar e tem picanha fatiada e feijão preto na mesa? Ainda não inventaram remédio melhor do que uma boa comida brasileira pros momentos em que bate aquela melancolia que deixa a gente pensando demais no nosso país e nas pessoas que estão lá.

E tem as festas dos gêmeos João e Pedro, com brigadeiro e bolo bem doce e coberto de montes de chocolate, que eu adoro. Coisas que os franceses desconhecem, mas todos os que petiscam acabam gostando. Assim como aprovam a coxinha de galinha, o pastel e o mini-quibe, que dividem numa boa a mesa com as quiches de todos os tipos, tudo maravilhosamente preparado pela Dinha.

O João e o Pedro matam todos os adultos de inveja por falarem duas línguas sem sotaque, aos quatro anos de idade. Sem dar bola pra isso, adoram brincar de aviãozinho comigo, seguido de uma seção de cosquinhas e de um pique-pega que eles acabam ganhando, pois não se cansam nunca. E de uns tempos pra cá os dois resolveram ser músicos. O João começa a martelar o piano enquanto o Pedro já tira as primeiras notas no violino. Teve uma vez que cantamos o hino brasileiro juntos. Em seguida, puxei a Marseillaise. Eu abandonei depois de “marchons, marchons”, mas eles continuaram até o fim, fazendo biquinho e tudo.

Como em toda embaixada que se preze, na casa da Carol e do Alberto tem gente de todo canto. Uma noite dessas a tagarelice era em três idiomas, com o inglês juntando-se aos já habituais francês e português, muitas vezes misturados na mesma frase. E não é raro pintar alguém falando outra língua, como espanhol ou italiano.

Lá é o melhor lugar pra dizermos que sentimos falta de Brasília, mas não do transporte público e dos homens públicos de lá. Pra confessarmos que, pensando bem, adoramos a seca do mês de agosto que aterroriza os candangos. “É só colocar uma bacia de água ao lado da cama”, simplificamos. Pra, mais uma vez, reclamar do inverno e das múltiplas camadas de roupa que somos obrigados a usar. “Mas da neve eu gosto”, contemporizamos.

Pra comentar de vinhos como se fôssemos franceses de nascença - "esse é mais encorpado, com retrogosto de cereja" - e criticar o hábito local de tomar cerveja quase quente. Pra confessar que às vezes dá uma vontade danada de comer tapioca na manteiga e depois se perguntar como vamos fazer pra viver sem todos esses queijos franceses quando voltarmos para o Brasil.

E sempre tem a seção musical de fim de noite. A boa música rola por lá o tempo inteiro, mas é só quando estamos em petit comité que dá pra discutir as letras de Chico e Vinícius, as fases de Gil e Caetano, as guitarras de Sérgio Dias e Herbert Viana. Dá até pra nos emocionarmos ao som de Tempo Perdido, que parece fazer mais sentido a cada vez que a escutamos. Muito mais do que fazia em 1994, quando conheci a Carol. Afinal, somos jovens, mas já nem tanto assim.

Se a Carol e o Alberto colocarem uma bandeira brasileira pendurada na janela, é capaz de serem proclamados diplomatas honorários, com o João e o Pedro dividindo o cargo de embaixador.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.