sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Na companhia de Shakespeare


Eu me amarro na livraria Shakespeare & Co. Sempre que sirvo de guia turístico para meus amigos procuro dar uma passadinha por lá.

Pra começar, tudo é em inglês. Os livros, o atendimento, os debates e as leituras abertas semanais e até o pedido de esmola para o café dos escritores, um cartaz pendurado em frente a uma espécie de buraco no chão, onde os visitantes depositam moedas de várias procedências. E mesmo que a língua oficial ali não seja o francês, os parisienses adoram o lugar, o que não deixa de ser surpreendente.

A outra surpresa é o quarto do escritor, no segundo andar da loja. Uma espécie de pocilga com uma cama entre estantes de livros que abrigou autores como Allen Ginsberg e William Burroughs, quando eles estavam numa pior. E ainda outros gênios incompreendidos, a maioria muito mais incompreendidos do que gênios.

Perto do quarto resiste bravamente uma máquina de escrever old fashion e papel à vontade para quem quiser deixar uma mensagem em qualquer língua. Uma vez vi um japinha adolescente tentando mudar a configuração do teclado e uma loira admirada porque “a impressão é automática, coisa moderna demais”.

Em frente à escada há um cantinho com um mural cheio de fotos e recados escritos à mão. Tem uma história que me contaram de um casal que se conheceu em frente a essa parede. Um dia eles se separaram e, cheio de tristeza, ele deixou ali um recado pra ela: “Darling, I miss you. Liga pra mim”. Ela respondeu dois dias depois: “Nem morta. Bye!

De volta ao térreo, perto do cantinho da esmola, tem um piano também free service. Qualquer um pode chegar ali e massacrar as teclas (e, na maioria dos casos, os ouvidos dos clientes). Da próxima vez não posso esquecer de sugerir aos donos uma placa com uma mensagem do tipo “é proibida a execução de qualquer música com menos de três dedos, principalmente aquela que todo mundo toca batendo a mão fechada nas teclas pretas”.

Mas talvez o grande tchuns da livraria seja mesmo a localização dela, no meio do caminho entre a catedral de Notre-Dame e o boêmio Quartier Latin. De um lado, o fervor do catolicismo. De outro, a ferveção dos botecos e seus famosos happy hours (apí auêr, em pronúncia francesa). Entre a cruz e a empada, não faltam motivos de inspiração para escritores e visitantes que procuram a companhia de Shakespeare.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Genuíno Franco, crítico rangonômico


Genuíno Franco foi durante muito tempo o editor do A Verdade, uma respeitada e temida publicação sobre as bandas independentes brasileiras, na qual descia o sarrafo em todo mundo. Após sofrer ameaças de metaleiros, headbangers, indies, alternativos, punks e hippies em bad trip, Genuíno foi obrigado a deixar o Brasil e se refugiar na França, onde encontrou o ambiente ideal para fazer o que mais gosta: reclamar.

Como eu sou o único amigo que lhe restou, e principalmente porque ele tá me devendo uma grana e prometeu pagar se eu o ajudasse, decidi abrir espaço no Chéri à Paris para que ele volte a exercer sua verve crítica. Dessa vez no ramo gastronômico (ou rangonômico, como ele prefere).

Com vocês, Genuíno Franco.

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Pinguim, curingas e outras roubadas

Depois de abandonar por ora a carreira de crítico de bandas ruins (o que significa todas as bandas, menos a minha), decidi aproveitar que tô aqui na França de bobeira mesmo e embarquei numas de crítico de rango, porque dizer que é crítico gastronômico é coisa de emo ou de fã do Los Hermanos.

Pra minha primeira empreitada, topei encarar o menu dégustation do Les Magnolias, restaurante comandado pelo chef Jean Chauvel. De cara, já não gostei do nome do distinto. Chauvel? Chauvel onde? Molhou muito? Ah, tenha paciência. Deu saudades do Jão, dono do Pratão do Jão da rodova de Brasília.

Chegando ao recinto me senti num filme do Batman. Na entrada, um sujeito vestindo de pinguim abria e fechava a porta para os otários clientes. No salão, outros tantos com eternos sorrisos de curinga acenavam com a cabeça, mesmo que não houvesse ninguém para quem acenar.

Quando o assunto é rango, existe uma regra básica pra mim: não abro mão de comer no balcão. E enquanto me embrenhava no lugar para descobrir onde ele ficava, dois curingas vinham atrás de mim. O primeiro dizia “monsieur, monsieur, c’est par ici” e o segundo tentava tirar meu casaco. Dei logo uma tapa na mão que é pra acabar com aquela intimidade ali mesmo e perguntei pelo balcão da espelunca. O cara não entendeu nada e ficou me apontando uma mesa, dizendo que “a havia preparado para mim”. Pra mim, sei. Sem escolha, instalei-me.

- Desce a degustação.
- Ah, vai querer ir na surpresa, né?

Aí me emputeci e bati logo na mesa, assustando o pinguim da entrada, que largou a porta na fuça de mais um otário cliente que chegava, vestido como se fosse pianista do Municipal. Que papo é esse de surpresa? Eu vim aqui rangar, se quisesse surpresa fazia amigo oculto com o povo da firma. Um sujeito que parecia ser o curinga boss veio me explicar que o menu dégustation era assim mesmo, dependia do que o chef tinha preparado, dos produtos da estação, das condições climáticas e de outras frescuras das quais nunca tinha ouvido falar no Pratão do Jão.

Um curinga tamanho petit chegou com uma espécie de tigela enorme e dois trequinhos no meio e a colocou no centro da mesa, explicando que era um "toast de radis melba especialmente pensado pelo chef para abrir o apetite". Olhei bem pra aquilo e tudo o que conseguia ver era uma torrada seca com uma fatia de rabanete tão fina que dava pra olhar através dela. Engoli de uma vez e fiquei olhando pro curinguinha, esperando ele mandar outra rodada porque aquilo não enchia nem o buraco da cárie. Só que antes que ele pudesse esboçar qualquer reação surgiu um outro curinga, dessa vez em normal size, carregando um prato retangular no qual repousava uma colher de prata toda torta com uns fiapos de peixe. Aquela colher devia ter sido tocada pelo Uri Geller, nunca vi coisa tão deformada. Enquanto encarava o objeto, um terceiro curinga chegou sem que eu visse e colocou na mesa um copinho com um líquido meio verde, meio laranja.

- Deixa a sardinha aí, mas pode levar de volta a vitamina de abacate. A da minha mãe é imbatível, se quiser eu passo a receita.

Sem perder a pose e o sorriso eterno, os três curingas me explicaram em uníssono que aquele conjunto se tratava de uma “colher com haddock e aipo rémoulade, acompanhado de um velouté de cenouras feito como tajine”. Eu juro que a minha paciência já estava por um fio. Que horas eles iam parar de me sacanear e trazer o rango de verdade?

Mas já que precisava cumprir minha função de crítico, decidi que ia encarar a parada até o fim. O que não faço pelo amor à profissão? Então fiquei ali sentado enquanto os curingas se sucediam, trazendo porções tão pequenas que pareciam amostras grátis do que eles insistiam em chamar “especialidades do chef”, por mim apelidadas “escabrosidades do blefe”. Como um sanduba de presunto e manteiga liquefeito, metido em um recipiente que parecia a lâmpada do Aladim. “É para beber, monsieur.”. Ou um dente de alho preto como o anu, “marinado um mês na água do mar”. Um papo muito do estranho, aquele.

E quando eu achava que a coisa não podia piorar, veio a gota d’água. Anunciando que era a última das sobremesas, o curinga mirim depositou sobre a mesa um palito com algodão doce. Pirei de vez. Fiquei procurando a câmera porque aquilo só podia ser pegadinha. “É mentolado, monsieur”. Mentolado é o raio que o parta! Pedi a conta porque pra mim já tinha dado. Quando vi o valor impresso no papel, chamei o curinga boss e disse que apreciava a proposta, mas não estava interessado em comprar o restaurante. Com a imutável expressão facial, ele me explicou que aquele era o valor do “menu dégustation” do chef Jean Chauvel. Eu falei que pra mim ainda não tava chauvendo dinheiro. Ele não entendeu nada. Eu paguei com dor no coração. O pinguim me abriu a porta. Eu cheguei em casa e fiz um pão com ovo maneiro, em homenagem ao Pratão do Jão.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Tem carta pra você


Eu sou um bom cidadão. Do tipo que paga impostos em dia, cede o lugar pra velhinhas no metrô, ajuda amigos a fazer mudança e de vez em quando até come brócolis, esse legume compreensivelmente discriminado.

Mas tem uma pequena transgressão da qual não abro mão: eu adoro redistribuir os folhetos de publicidade que chegam à minha caixa de correio. Coloco tudo nas dos vizinhos. Chega quase a ser uma obsessão, pois espero ansiosamente pela passagem do carteiro e dos panfleteiros profissionais para ver as novidades que eles me trazem. Não há um só dia em que eu não receba menus dos restaurantes das redondezas, catálogos de lojas de roupas ou cupons de descontos variados.

Longe de ser uma atividade aleatória, a redistribuição dessas publicidades é quase uma arte. E para bem desenvolver o metier, é preciso se preparar. É fundamental conhecer os vizinhos pelos sobrenomes, pois é assim que as caixas de correio são identificadas na França. Também é importante saber um pouco sobre os gostos deles, coisa simples de resolver em conversas amenas de elevador, do tipo “- Hoje está frio, né? – É, bem frio, e a senhora gosta de sushi?”. E por último, é necessário decidir qual a estratégia de distribuição.

A minha preferida é a que chamo de spam-fleto, uma técnica que exige paciência e consiste em juntar durante uma ou duas semanas todos os papéis indesejados que recebo. Depois, pego o bolo e deposito de uma só vez na caixa da vítima escolhida. O tralalau de folhetos cai fazendo um barulho seco e sensacional. Com a prática, descobri que papéis mais baratos fazem um esporro maior. Já os envernizados deslizam mais facilmente, o que facilita a inclusão (termo politicamente correto para atochamento) de mais material. A escolha depende do efeito que se quer causar.

Gosto também do procedimento PPF, que pode tanto significar “passando a publicidade pra frente” quanto “passando o problema pra frente”. Tenho tendência a preferir a segunda opção de nome. O grande segredo do PPF é saber do que o vizinho não gosta e bombardeá-lo exatamente com isso. Se o habitante do 3º é vegetariano, então todos os panfletos de açougue vão pra ele. Se a moradora do 5º não suporta cachorros, será ela que receberá os anúncios de pet shop. E assim por diante.

Atualmente, venho me dedicando a desenvolver um novo método, o Panique dans la boîte aux lettres!. A idéia é juntar dezenas de panfletos iguais e depositar um na caixa de correio escolhida toda vez que passar na frente dela, não importa a hora, na razão mínima de 3 por dia. Ainda não consegui realizá-lo, mas já imagino que a combinação de Panique dans la boîte aux lettres! com PPF pode dar bons resultados.

Dia desses, no elevador, cruzei com um casal que mora no 2º andar. Eles reclamavam que há alguns meses vêm recebendo muito mais folders, folhetos, catálogos, cupons e santinhos do que o normal. Assim que desceram, anotei no meu caderninho: “Os Dupont não gostam de receber publicidade. Fazer algo a respeito”.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Autour de Paris XX - Com Jim Morrison no Père Lachaise


Devo ter alguma coisa mórbida em mim, ali meio escondida, porque sempre que aparece algum amigo por Paris eu acabo levando o cara pra ver o túmulo do Jim Morrison. No labirinto que é o cemitério do Père Lachaise, já sei chegar no cara de olhos fechados.

Da última vez rolou uma parada meio estranha. Enquanto meu amigo da vez se acotovelava com outros fãs do Doors para tirar uma foto da última morada do cantor, eu me afastei um pouco para evitar a aglomeração. Fui andando meio sem rumo e sentei-me em uma sepultura qualquer. Quando olhei pro lado percebi que alguém dividia aquele banco improvisado comigo. O cara me era familiar e foi ele quem puxou papo.

- Te falar... Tô de saco cheio disso.
- Hã?
- Essa peregrinação, não aguento mais. Isso aqui virou uma Meca dos malucrazys, dos roqueiros, dos ripongas, dos motoqueiros, dos sujinhos e dos saudosos de Woodstock, mesmo que estes não tenham ido a Woodstock.
- Desculpe, não estou entendendo...
- Veja você que até fã do Raul vem aqui, um ou dois por dia.
- Do Raul Seixas?
- Já, claro. Mas quem é você?
- Porra, Daniel. Tá me reconhecendo não?
- Bicho, você é a cara do Jim Morrison, mas nunca te vi mais gordo.
- Sei que estou fora de forma, conservei o físico que tinha quando me fui, era uma época de excessos. Mas ainda sou eu, caramba, o Rei Lagarto.
- Jim?
- O próprio.
- Mas você não morreu?
- Tem uns que dizem que sim, tem outros que teorizam que apenas mudei de estado físico. Tem até uns doidões que dizem ter me visto pelas ruas, em companhia de Elvis. O meu companheiro de morada Allan Kardec, que tem uma super tumba com linda vista pro poente logo ali, pode te explicar tudo isso melhor.
- Deixa o Kardec pra próxima. O que você quer comigo?
- Nada, só bater papo mesmo. Sei que você conhece bem nossos discos, sabe nossa história em linhas gerais, tem uns interesses em comum com os que tinha, curte música. Se eu ainda estivesse vivo, te convidaria pra três ou quatro whiskies.
- Quatro doses pra mim é muito.
- Não, tô falando de quatro litros, como nos meus bons tempos. Mas de qualquer maneira eu parei com essa vida há quase 40 anos. Sacou o duplo sentido de “parei com essa vida”?
- Saquei. Mas você já foi melhor, Jim.
- Talvez a sua imaginação é que já tenha sido melhor. Porque posso muito bem ser apenas fruto dela.
- Isso jamais vou saber.
- Verdade. Mas como eu estava dizendo quando você apareceu aqui, tô cansado dessa reunião diária de malucos no meu cafofo. É como naquela música que o Chico fez pra mim, onde ele diz “Jim está de saco cheio”.
- Ô, seu egocêntrico. Ele diz “Deus está de saco cheio”.
- Caramba, jurava que era Jim. Meu português nunca foi bom. De qualquer maneira, teve um tempo que achei mesmo que eu era Deus, então a música ainda serve pra mim.
- Continua o que você estava dizendo.
- Claro, claro. Vou dar um exemplo, pra você entender melhor. Veja o Oscar Wilde, o túmulo dele é uma beleza, cheio de marcas de batom. Tem escultura e o escambau. Toda mulher que passa ali deixa um beijo na sua sepultura, e olha que ele era gay. Eu, o xamã do rock, vivia cercado de gatas selvagens e agora só atraio bicho-grilo e descabelado. Nego vem aqui, faz um verdadeiro despacho de cigarro e bebida na minha tumba, grita “let it roll, baby, roll” em coro e acha isso maneiro. Porra, nem eu aguento mais essa música.
- Acho que entendo o que você quer dizer. Prefere que eu pare de trazer meus amigos pra cá?
- Não precisa tanto, mas da próxima vez traz umas amigas também.
- Vou tentar.
- E vou te dar mais um exemplo. O meu colega de profissão, Chopin. As pessoas vão até o belo jazigo dele, param em frente ao busto, assoviam duas ou três melodias...
- Jim, duvido que a maioria das pessoas conheça duas melodias de Chopin.
- É verdade que normalmente assoviam Mozart ou Beethoven, mas o que vale é a intenção. É esse tipo de reverência que me agradaria, uma coisa mais serena como Chopin, mais feminina como Oscar Wilde e mais respeitosa como Kardec.
- Anotado. Vou passar sua mensagem adiante.
- Valeu, Daniel. Tu é brother.
- Jim, posso fazer só um pedido? Um resquício de adolescência me atacou agora.
- Manda ver. Se eu puder atender...
- Dá pra cantar um pedacinho de Roadhouse Blues? Só o “let it roll, baby, roll”?

Nesse exato instante, Jim Morrison desapareceu para sempre em uma grossa cortina de fumaça.
Esse texto faz parte da série "Autour de Paris", de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui.