sábado, 30 de julho de 2011

O mundo paralelo de Christiania

Estávamos na porta de Christiania, a célebre cidadela hippie de Copenhaguen, onde artistas, vagabundos, poetas, marginais, traficantes, hippies e todo tipo de alternativo convivem harmonicamente há 40 anos como se o sonho sessentista de paz & amor & drogas nunca tivesse deixado de existir.

Antes de passarmos a barreira, lembrei-me do aviso de um amigo: “Velho, Cristiania é um mundo paralelo. Ali você acessa uma outra dimensão, uma realidade muito diferente da nossa. Não é pra iniciantes, fica ligado”.

Entramos um pouco apreensivos e prendemos o ar. Mas logo percebemos que meu amigo havia exagerado. Tudo parecia completamente normal. O céu era esverdeado, como em qualquer lugar do mundo. E a chuva de purpurinas em forma de coração não era forte o bastante para incomodar. É verdade que estranhei um pouco um sujeito vestido de Charles Chaplin que andava plantando bananeira, mas o cachorro rosa ao meu lado me tranquilizou, garantindo que o cidadão só caminhava daquele jeito porque se sentia um pouco indisposto.

Na rua principal, comerciantes de alimentos e plantas ali mesmo produzidos dividiam espaço com enormes placas informando que era proibido tirar fotos e tocar balalaika. Fiquei tão absorvido lendo o informe que quase fui atropelado por um elefante distraído. Não posso reclamar, e culpa era minha, eu estava fora da faixa e não respeitei a preferência do bicho.

Um pouco mais à frente, um pequeno palco recebia uma banda cover de Black Sabbath. A música estava boa, mas porquê um dos músicos estava tocando com uma cadeira de balanço no lugar da guitarra? Comentei o fato com um carinha ao meu lado e ele não sabia a razão. O engraçado é que ele era a cara do Ozzy Osbourne. Não só ele, aliás, mas todas as outras pessoas da platéia. Teve um momento em que todo mundo se virou pra mim, fez o símbolo do heavy metal e gritou um sonoro “yeah!”. Eu berrei um “yeah!” de volta. Daí foi um pulo pra cantarmos Paranoid em coro.

Continuamos nossa peregrinação pelo lugar, sempre tomando cuidado para desviar das poças de areia movediça e dos malditos aviões que insistiam em passar dando rasantes nas nossas cabeças, e chegamos a uma lagoa. Era linda, com suas margens gramadas, sua pequena ponte ligando a uma ilhota e suas águas amarelinhas, de onde saltavam dezenas de peixes e torradeiras. Paramos uns minutos pra relaxar e aproveitar a paisagem.

Cansados da peregrinação, decidimos que o momento da cerveja era chegado. Entramos em um bar curioso, pois havia gelatina no lugar do chão e a única maneira de se locomover era saltando. Entre um pulo e outro, conseguir entrar em fase com um ciclope e perguntei como fazia pra descolar uma bebida. “Nada de mais simples”, ele disse. “Basta entrar naquela fila ali e recitar um ou dois trechos de Goëthe, em alemão”. Escolhi meus preferidos, soltei a voz e solicitei três Carlsberg.

Cervejas acabadas, resolvemos ir embora. Embarcamos na nave estacionada em frente ao bar e eu disse ao comandante Jimi Hendrix o endereço do nosso hotel. Consternado, ele explicou que só poderia nos levar até a fronteira da cidadela, não tinha autorização de passar daquele limite.

É claro que aceitamos a carona de bom grado. Jimi nos deixou na entrada, apertou nossas mãos, tocou fogo na nave e se mandou. Cruzamos a porta de Christiania e soltamos o ar. Ali tivemos certeza de que meu amigo havia inflacionado seu recito, pois aquele lugar nos pareceu muito normal. Pergunta pra Janis Joplin, pro Jim Morrison, pro Andy Wharol, pro Raul Seixas ou pro Timothy Leary, que estavam o tempo todo com a gente.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Os biôs

A última moda em Paris é ser bio. Ou biô, como eles dizem. Ser bio é ser adepto dos alimentos orgânicos, produzidos sem agrotóxicos. É adotar um modo de vida mais são, de mais respeito à natureza e ao produtor. É colocar um pouco mais de saúde no prato.

Tem parisiense que faz qualquer coisa por uma porção de legumes e frutas bio. Conheço um que duas vezes por semana pega o carro, atravessa Paris inteira e engole fumaça de engarrafamento só para vir ao Marché d’Aligre comprar sua cota de bem estar em forma de abobrinhas.

Há aqueles que se amontoam em frente às barracas bio da feira e se acotovelam, se empurram e quase se estapeiam na disputa pelo alho poró mais bonito. E quando descobrem um bom exemplar de funcho perdido entre as endívias, aí é o verdadeiro êxtase, a contemplação do divino, o arrebatamento do espírito e do corpo.

Mas não é qualquer bio que serve, a coisa não é tão simples assim. Pra ser bom, o bio tem que ser caro. Bio em promoção está estragado, não presta, com esse preço aí alguma coisa está errada. E não faz mal se para morder um superfaturado damasco bio é necessário vender os dentes da boca. Afinal, o parisiense sabe bem que bio de pobre não tem tantas vitaminas quanto seus semelhantes inflacionados.

O parisiense verdadeiramente bio só consome produtos bio. Ele acorda de manhã, passa um creme bio no rosto, pra ficar com aquela pele de pêssego bio. Depois, prepara um café bio guatemalteco, morde uma maçã bio, que vez ou outra esconde uma minhoca, também bio (ou seria minhoca bia?) e come uma ou duas tartines de pão bio com manteiga idem.

E então sai pra rua e acende um Malrboro, feliz de sua condição de sujeito saudável.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

J'aime rien

Há algo muito importante que você precisa aprender sobre os parisienses: eles te detestam. Eles não te conhecem e te odeiam. Nunca te viram e já não suportam a sua presença. Mas, acredite, esse ódio, apesar de real, não é pessoal (esse é um privilégio concedido a poucos, como ao atual casal presidencial e às pessoas que estão a menos de 200 quilômetros deles).

Vou tentar explicar alguns elementos dessa falta de apreço do parisiense por tudo o que se move e não é o seu cachorro.

Bufada
Categoria: manifestação não-verbal de ódio

A bufada é a mais clássica demonstração de irritação do parisiense. Mas é mais do que isso: é também o último refúgio da eterna insatisfação francesa, da vontade que eles têm de vez em quando – tipo umas 12 vezes por dia – de mandar tudo pros ares e fazer uma revolução. É o que sobrou depois que se tornou meio indelicado pendurar o sujeito em uma forca ou guilhotiná-lo em praça pública. Malditos tempos monótonos, onde não se pode nem mais descer tranquilamente a lâmina no pescoço alheio.

Putain!
Categoria: manifestação verbal de ódio

Putain significa puta merda. Em Paris você vai escutá-lo ao menos 337 vezes por dia. Se um parisiense está aborrecido, ele diz “putain”. Se um parisiense dá uma topada com o joelho, ele diz “putain”. Se um parisiense pisa num cocô de cachorro de um outro parisiense, ele diz “putain”. Se está frio, ele diz “putain”. Se faz calor, ele diz “putain”. Se você ousa abordar um parisiense, tirando-o de suas complicadas elocubrações mentais, para lhe perguntar alguma coisa que não esteja à altura de sua genialidade, ele pode até não dizer “putain”, mas certamente vai pensar. E depois vai bufar.

Vizinhos   
Categoria: objeto (relativo) de desprezo

O verdadeiro parisiense nunca se dirige aos seus vizinhos quando pegam o mesmo elevador. Mas se por acaso se encontram em um bar do outro lado da cidade, são capazes de conversar por horas a fio, falando mal dos outros vizinhos. No dia seguinte, no elevador, o amigo da véspera volta à condição de semi desconhecido. Condição que dura até o próximo encontro fortuito em um bar bem distante, porque esse da esquina é mal frequentado, tá cheio de vizinhos.

Turistas
Categoria: objeto de ódio extremo

Só tem uma coisa que o parisiense odeia mais do que você, o vizinho ou qualquer outro parisiense: o turista. Se você for um destes, a sua única opção é freqüentar lugares nos quais dificilmente os locais põem os pés, como a torre Eiffel ou o Louvre (evite os McDonald’s ou a Eurodisney, sempre entupidos de nativos).

Bom, pra não ser injusto, preciso admtir que o parisiense adora Paris, com seus restaurantes, sua vida cultural, seus cafés com mesas na varanda, seus parques e tudo mais o que há.

Não é exagero dizer que o parisiense ama sua cidade.

Ele só detesta todo mundo que mora nela.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Des bisous

Francês adora se dar beijinho no rosto. “Faire la bise”, eles dizem. E ao contrário do que pregava Tim Maia, aqui também vale homem com homem e mulher com mulher.

Quero deixar claro que não tenho nada contra cumprimentar meus amigos macho alfa dessa maneira. Mas o melhor é que a coisa seja resolvida rapidamente: “salut”, bisou, bisou, “ça va?”. Pronto, feito, não se fala mais nisso, passemos a outra coisa.

Só que nem sempre é tão simples. Sendo estrangeiro, você nunca está ao abrigo de situações embaraçosas, como quando vê de longe um amigo francês e reflete: “lá vem o sujeito, vou precisar beijá-lo quando ele chegar”. Ele, sabendo que você não é local, acaba pensando: “olha lá meu amigo brasileiro, vou fazer como ele e seus simpáticos conterrâneos, dar um abraço ao invés de um beijo”.

Aí ele pára diante de você, que quer se mostrar integrado e já faz o biquinho em direção ao rosto do cidadão. Ao mesmo tempo, ele coloca os braços em torno de você e também se aproxima. Batata, sem querer vocês estão quase se dando um verdadeiro french kiss. Uma situação, vamos definir assim, um pouco desconfortável, que pode tornar-se ainda pior se ambos ostentarem pêlos crescidos na cara. Já aconteceu comigo e é uma sensação que não consta da minha lista de preferidas. Se fosse classificá-la, ela viria depois do item intoxicação alimentar causada por salmonela.

Mas então você decide esquecer do incidente e passa bons momentos ao lado do seu amigo. E pra provar que o selinho não afetou em nada a sua virilidade, vocês conversam de assuntos de interesse masculino, como o campeonato africano de futebol, as diferenças entre a Playboy francesa e a brasileira ou último disco do AC/DC.

Até que chega a hora de ir embora. Meio bêbado, você se levanta e vai andando em direção à sua casa, no que é interpelado pelo seu amigo.

 - Peraí, vai embora sem dizer adeus?

Consternado, você o segura com força pelos ombros e lhe tasca uma rápida beiçada nas duas faces, antes que ele invente novamente essa história muito estranha de te abraçar.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Macacos me mordam!

Vejam vocês que essa foi uma semana agitada na França. Anteontem, foram libertados os dois jornalistas da France Télévision que pagaram uma big etapa de 18 meses de cativeiro no Afeganistão. Ontem, Sarkozy levou uma semi bifa de um cidadão mutcho putcho da vida, na saída de uma reunião. Hoje, a justiça (ha ha!) americana decidiu liberar o Dominique Strauss-Khan, sob condição que ele “se comporte como um bom menino e, por favor, pare de se meter onde não é chamado”.

Todas essas notícias são bombásticas, mas não foi nenhuma delas a que mais me chamou a atenção no período. O posto de top of mind da semana vai para a seguinte manchete: “Digit, uma gorila que vive com um casal”. Não o senhor e a senhora não estão ficando malucos. É exatamente isso: dois franceses decidiram adotar um macaco. Peraí, que eu explico melhor.

Pierre e Elianne Thivillon são administradores de um zoológico na cidade de Saint-Martin-La-Plaine. Acontece que eles já não são mais jovens e por uma dessas razões da vida acabaram não tendo filhos. E aí, um belo dia desses, sem nada melhor pra fazer, decidiram levar o símio para casa. Pronto, simples assim.

Engana-se, porém, quem ache que Digit abandonou o trabalho. Não! Ela continua passando os dias no zoológico, entretendo os visitantes e fazendo as macaquices que esperam dela. E só à noite é que ruma para o novo lar doce lar, pra assistir a uma televisãozinha, bater um rango, dar um relax, que ninguém é de ferro. Mais tarde, quando chega a leseira, vai para os braços de Morfeu. Na cama do casal que a adotou, claro.

Essa história é tão surreal que a tomada dessa decisão só pode ter sido no mesmo tom:

- Benhê.
- Hã…
- Ô, benhê.
- Diga, mozinho.
- Tava aqui, conversando com os meus botões.
- Fala.
- Tive uma idéia, mas não sei se você vai achar boa.
- Pode falar, mozinho.
- Sabiuquié?
- Sei não.
- Fiquei pensando, já que a gente não tem filhos…
- Já sei, você está a fim de fazer uma grande viagem.
- Né isso não.
- Quer mais um cachorrinho?
- Quero não.
- E o que é, então?
- É que… Tava pensando em trazer a Digit pra morar com a gente.
- Aquele macaco?
- Fala assim não, ela pode ficar chateada. Digit é um gorila, e gorila também é gente.
- Peraí, Elianne. Você está querendo me dizer que quer trazer pra casa um macaco…
- É gorila!
- Que seja. Um gorila, que passa o dia inteiro no zoológico, macaqueando pra lá e pra cá, se esfregando em outros símios, comendo aquele lixo que os turistas jogam pra ele, um animal com tanta força que é capaz de esmagar nossas cabeças com apenas uma mão, que vai acabar fazendo caguito no meio da nossa sala e sujar tudo por aqui, sem contar que se um dia ela pira pode destruir a casa inteira em menos de um minuto. É esse bicho que você quer trazer pra morar com a gente?
- É.
- Bon, d’accord. Agora eu digo uma coisa: o controle remoto da TV continua comigo, e isso não se discute.