sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Ricochete

Em uma madrugada de verão, o velho poeta sai de casa caminhando sem destino. Moleskine no bolso, pro caso de pintar uma inspiração, não tarda se encontrar ao largo do canal Saint-Martin.

Ele observa as pontes de pedestres e hesita um pouco antes de subir em uma delas. Ao chegar no ponto mais alto, para e contempla as águas passarem embaixo, sem pressa. Fecha um pouco os olhos, tentando focalizar a visão, à procura de peixes. Mas tudo o que vê são copos plásticos boiando, sinal de que alguém deve ter se divertido não muito longe dali, não muito tempo antes.  

Desce da ponte e continua sua peregrinação, dessa vez na outra margem, mais boêmia. Observa os jovens falando alto, taças de vinho na mão, flertando, e se lembra que um dia já fez o mesmo.

Senta-se em um banco e os observa, saca o moleskine e rabisca palavras soltas, como “paixão”, “vontade”, “beleza”, “alegria”, “descoberta” e “leveza”. Tenta fazer algo com elas, mas não sabe o quê. Daquelas palavras ele sabe muito bem a definição do dicionário, mas já há algum tempo não consegue enxergá-las no próprio ser.

Tenta um soneto, que não sai, pois não o sente. Passa para um haikai, mas ser sintético nunca foi uma de suas qualidades. Ensaia um acróstico, e se lembra que detesta acrósticos, por julgar ser uma forma fácil de escrita. “Uma poesia menor, mesmo que a palavra escolhida seja grande”, sempre dizia, com sua peculiar ironia.

Ainda sentado, desmonta sua caneta tinteiro, arrebenta a carga e a despeja inteira nas páginas quase virgens do pequeno caderno. Não o faz de forma displicente, muito pelo contrário, toma cuidado de inutilizar para sempre aquelas folhas. Joga tudo no canal, a caneta inclusive, compra uma cerveja numa épicerie e continua, como um zumbi, a perambular.

Pouco depois, chega ao bassin de la Villette, lotado, e procura um canto mais escondido para se refugiar com suas angústias e seus fantasmas. Pega uma pedra qualquer e joga nas águas paradas. Ela ricocheteia, descreve um breve arco, ricocheteia novamente e afunda de vez. Surpreso, procura uma outra pedra, mais achatada, e lança novamente. Esta repete a trajetória da anterior, porém quica quatro vezes antes de submergir para sempre.

Entregue à atividade, só percebe que o tempo passou quando os primeiros raios de sol anunciam a chegada de um novo dia.

Lentamente, retoma o rumo de casa. No meio do caminho, para na mesma épicerie e negocia com o proprietário que este lhe venda sua caneta esferográfica, que de tão gasta lhe é dada como presente.

Ao chegar ao lar, antes de dormir, o velho poeta pega um pedaço de papel e desafoga:

"Sonhos ruins findos:
Com pedrinhas e água
fiz arcos lindos"

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

À table!

O General De Gaulle disse uma vez que era impossível governar um país que tem mais tipos de queijo do que dias do ano. Ainda no contexto gastronômico, eu afirmo que o mais complicado na França nem é a enorme variedade desses derivados lácteos, mas sim a estapafúrdia quantidade de regras de comportamento à mesa que eles têm.

No Brasil elas se resumem mais ou menos a “evite colocar seu pé na comida do outro” e “se for lamber o prato, faça-o embaixo da mesa”. Mas no país do fromage a lista é longa e tem origem antiga, resultado de séculos e séculos de muita preocupação com a etiqueta e, principalmente, de muita falta do que fazer.

Eis uma pequena amostra delas, com datas indicadas onde necessário.

Capítulo 1 – Da maneira de se portar
. Regra 1 (ano 1023) – Ao sentar-se à mesa, nunca sente-se realmente à mesa, mas sim na cadeira reservada para você.
. Regra 45 – É terminantemente interditado olhar no prato do vizinho. Fazendo isso, você dá a ele o direito de bufar na sua direção e dizer “merde”.
. Regra 97 (ano 1990) – É proibido cantar à mesa. Principalmente aquela lambada do grupo Kaoma.

Capítulo 5 – Da refeição em si
. Regra 4 (ano 1211) – Se você já acabou o seu javali, não fique de olho no do seu colega. Ele pode ficar chateado e te cortar a cabeça com uma espada.
. Regra 23 (ano 1322) – É polido e prudente não começar a refeição antes da dona da casa. Polido porque, afinal, é ela quem o está convidando. E prudente porque em pleno século XIV é grande a chance de a gororoba estar estragada. E aí é a velha quem vai passar mal.
. Regra 64 (ano 1655) – Nós todos sabemos que essas enormes perucas brancas que usamos são absolutamente ridículas, mas isso não significa que você possa retirá-la durante um jantar.

Capítulo 9 – Das batalhas à mesa
. Regra única – Não brigue à mesa.
. Regra única, adendo 1 (ano 1642) – Se brigar e a coisa ficar feia, evite marcar duelos para logo após o almoço. Seria uma grande indelicadeza com a dona da casa.
. Regra única, adendo 4 (de 1789) – Mesmo para um revolucionário, não é de bom tom brigar à mesa. Mas caso a confusão role, nunca utilize seu guardanapo de tecido para estrangular o vizinho. Prefira a guilhotina.
. Regra única, adendo 4.1 (de 1789) – Quando o uso da guilhotina se fizer necessário, é polido esperar a futura vítima acabar a sobremesa e o café.

Capítulo 13 – Da eventualidade de servirem escargots
. Regra 1 – Coma. Se não gostar você pode fazer biquinho, afinal estamos na França.
. Regra 17 – Se seus escargots forem servidos vivos, não promova uma corrida com eles. A dona de casa pode ficar ofendida.
. Regra 31 – Não se preocupe, não é gafe deixar as antenas do bicho no prato.

Capítulo 21 – Da hora de partir
. Regra 8 (ano 1243) – É indelicadeza com o dono da casa ir embora antes de ficar completamente bêbado.
. Regra 27 (ano 1789) – É indelicadeza com o dono da casa ir embora antes de ficar completamente bêbado e cantar a Marselhesa.
. Regra 43 (ano 2011) – É indelicadeza com o dono da casa ir embora antes que ele tenha a chance de bufar três vezes, demonstrando claramente que você já deveria ter zarpado há muito tempo.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A história de Mamicô

A Mamicô é uma contraparente do tio de um primo de 15º grau. E tão fraca quanto nossos laços familiais é a sua memória. Porém, se suas lembranças já falham, o bom humor e a vontade de conversar parecem não terem sofrido a corrosão causada pelo tempo.

Na última semana, fomos visitá-la na sua enorme casa na Normandia. Com seu eterno sorriso, ela contava diariamente um pouco dos seus quase 90 anos de história. Ou de estória.

1º dia

“Sabe, o Bernard comprou essa casa há muitos anos, antes mesmo do nosso casamento. Era um antigo monastério. Os monges que habitavam aqui oravam, meditavam e nas horas vagas produziam um excelente vinho. Depois que chegamos, começamos a fazer grandes festas, que duravam três, quatro dias, toda a cidade era convidada. Você pode contar, são exatamente 16 quartos, dá pra receber muita gente. Nós adorávamos passear pelo bosque. No verão, colhíamos cerejas, amoras e framboesas frescas e ele sempre aparecia com uma rosa para mim. No inverno, dávamos uma voltinha rápida, só para pegar um pouco de ar, pois o frio é rude. Às vezes passávamos na única discoteca da região e dançávamos até o dia clarear. O Bernard já se foi, que Deus o tenha, mas a casa continua aberta a todos os nossos netos e bisnetos, como ele sempre quis. Você, com esse seu sotaque, deve ser o filho da Brigitte, né? Sim, sim, agora estou lembrando. Qual é mesmo o seu nome?”

2º dia

“O Bernard comprou essa casa há muitos anos, parece que de um monge, que precisava de dinheiro para a bebida. Lembro que fazíamos festas memoráveis e depois íamos todos orar e meditar no bosque. Nosso casamento foi aqui. Convidamos toda a cidade, mas ninguém conhecia o endereço e ainda por cima era inverno, então só vieram nossos netos e bisnetos. Mesmo assim foi uma lindeza só. O Bernard colheu rosas e encheu de pétalas todos os 25 quartos. Você estava, né? Você e aquela sua namorada, a Brigitte, que usava um lindo vestido cor de cereja, perfeito para o calor que fazia no dia. Eu a adoro, a Brigitte. Não sei se te falei e talvez você nem acredite, mas essa casa já foi uma discoteca.”

3º dia

“Quando o Bernard chegou aqui, tudo isso era um enorme bosque, cheio de monges pendurados nas árvores. Ele tentou montar uma discoteca, mas as pessoas bebiam demais. Então ele colocou nossos netos e bisnetos para produzirem vinho para toda a cidade. Eu me lembro de uma manhã de inverno, quando você chegou com a sua filha Brigitte. Ela tinha uma rosa no cabelo e comia framboesas como uma louca. Instalamos vocês na suíte número 33. Lembro claramente, porque 33 é a idade de Cristo. No dia seguinte o Bernard meditou e me pediu em casamento.”

4º dia

“Bernard, isso é hora de chegar? Aposto que estava bebendo vinho com a Brigitte naquela discoteca, enquanto eu fico aqui, meditando. Não gosto dessa moça, ela é muito assanhada. Agora raspa essa barba e vamos. Os monges estão esperando. Estamos atrasados para o nosso casamento no bosque. Pega um casaco, hoje tá fazendo frio.”

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Não estamos a seu serviço

O garçom parisiense, eu acho que ainda não falei suficientemente dele, o garçom parisiense acha que você teve a pior ideia do mundo quando escolheu ir ao restaurante no qual ele trabalha. Ora, se há tantos outros por perto, por que você tinha que aparecer logo ali? Agora ele vai ser obrigado a te atender, ou a fazer algo parecido com com isso.

Você chega ao restaurante, escolhe uma mesa, senta e espera que o sujeito venha te falar. E espera. Espera e olha para ele, na expectativa de ser notado, mas ele te ignora de uma maneira que nem o pai da sua ex-namorada conseguiu fazer depois de você ter enchido a cara e dado vexame na festa de aniversário da sobrinha de 2 anos, com toda a família reunida.

E quando você já começa a perder as esperanças, ele chega de supetão.

- Alors, o que deseja?

Nessa hora você, inocentemente, comete o erro fatal, a gafe imperdoável, o absurdo dos absurdos: pede o menu. O garçom te olha com cara de quem está morrendo de vontade de te jogar na frente do primeiro ônibus biarticulado e aponta para a parede com o queixo.

- O menu está ali, em letras gigantes.

Inexperiente, você cai no segundo equívoco, o de pedir explicação sobre a comida. Ora, quem nesse mundo não sabe o que tem em um prato chamado “Comme un céviche de daurade royale aux herbes, mesclun aux feuilles de moutarde et pignons de pin“? Se não sabe, por que foi inventar de ir àquele estabelecimento, hein? Contendo o impulso de te mandar catar azeitonas na Grécia com o pé esquerdo, ele dá uma bufada ao mesmo tempo que devolve a pergunta.

- Qual parte exatamente o senhor não compreendeu?

Em um ato de extrema e rara benevolência, o distinto decide te conceder mais 11 segundos do seu precioso tempo e narra um resumo explicativo dos pratos do dia, em uma velocidade de causar inveja em locutor de futebol no rádio. Consternado e já quase pedindo desculpas, você opta pelo único que entendeu, o “steak frites”, que deduz corretamente ser o glorioso bife com batatas fritas. O único que não dá margem a erros. Ou quase.

- Cozimento da carne, monsieur?

O cozimento da carne? Você ainda não pensou a respeito, merde! No desespero, faz uma cara de piedade, na esperança de que ele decida por você, mas o olhar do cidadão é tão congelante que você sente frio até na alma. Em pânico, diz a primeira coisa que vem à cabeça.

- Bem passada, por fa...

Mas não consegue terminar a frase.

- Carne bem passada fica dura e sem gosto. Não presta. Ou você pede outro cozimento ou escolhe outro prato. O peixe com pimentões e tomates é bom.

Apavorado, você aceita a sugestão, sem nem ter escutado direito, com o único pensamento de se ver logo livre do sujeito. Pouco depois, ele traz a sua comida e só aí você se lembra que detesta pimentão. Por um segundo, você chega a cogitar a possibilidade de dizer que não era bem isso o que gostaria de ter pedido, de saber se seria possível ele ser compreensível e trocar pimentões por batatas, mas o garçom parisiense lê o seu pensamento e te manda um olhar glacial e uma bufada do outro lado do restaurante. Nesse exato momento você se convence de que você e o pimentão nasceram um para o outro.