sexta-feira, 30 de março de 2012

Souvenirs


Caros amigos, esse é o último texto do Chéri à Paris, projeto que comecei assim que cheguei à França, 5 anos atrás. Não tem mais sentido escrever as desventuras de um brasileiro na terra do fromage agora que voltei ao país do queijo prato. 

Aproveito pra divulgar o endereço do meu novo projeto:

www.historiasdequadrinhos.com.br

Muito obrigado a todos que me acompanharam. À bientôt!

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- Din dão, berrou a campainha, com seu sotaque brasileiríssimo.

Fui abrir meio cabreiro, achando tratar-se do vizinho que, dias antes, saíra peladão no corredor para buscar seus jornais, bem na hora em que eu ia para o trabalho. Vai que era ele de novo, querendo, sei lá, um pouco de açúcar, metido em seus (não) trajes habituais.

Espiei cautelosamente pelo olho mágico e não vi ninguém. Voltei pro sofá. A campainha gritou de novo. Olhei e outra vez não visualizei quem teria apertado o botão. Fiquei esperando atrás da porta e a abri de supetão assim que a sineta soou pela terceira vez. Do outro lado, uma mocinha tímida, com um lenço no pescoço e cara de anjo.

- Bom dia, falei.
- Bonjour, respondeu em francês.
- Qui es-tu?
- Sou as suas lembranças parisienses.
- Minhas lembranças?
- Oui.
- E o que você está fazendo aqui?
- Foi você quem me chamou.
- Eu?
- Sim, você. Aliás, chamou a mim e àquele ali.
- Quem? Não estou vendo ninguém.
- Olha de novo, com atenção.
- Eita!, exclamei, surpreso com o súbito aparecimento de um velho ranzinza – E você, quem é?
- Tu ne me reconnais pas? Sou também as suas lembranças, putain!

Não estava entendendo mais nada. Convidei-os para entrar.

- Querem água, café?
- Não, obrigada, sorriu a menina.
- A água tá gelada? Porque eu só gosto de água gelada. E esse café? É arábico? De onde vem? Qual a máquina que você usa? É conservado na geladeira? Porque senão ele perde o gosto.

Depois de revirar a casa até encontrar mel para adoçar o café do velho, que não tomava nada com açúcar, exigi algumas explicações.

- Alors, que faites-vous là?
- Você não escutou a menina? Foi você quem chamou a gente!, gritou o idoso. Se quer que a gente vá embora, é só dizer.
- Calma, só quero entender o que vocês estão fazendo aqui.
- Você nunca notou, mas te acompanhamos desde que você deixou Paris, disse a mocinha num quase sussurro. Você nos trouxe para Brasília.
- Eu?
- É, assim são as lembranças, elas nos acompanham mesmo sem a gente querer. Eu, por exemplo, trago as recordações inocentes das suas primeiras experiências em Paris. A primeira baguete, o primeiro pedaço de comté, a primeira volta no marché d’Aligre, a primeira festa que você tocou como DJ, o primeiro encontro com a Edith, a primeira pelada com o Chico Buarque, o primeiro jantar que você preparou no restaurante associativo da rua, a primeira vez que você esteve em casa com a Louise...
- Só bons momentos.

Fiquei olhando para o nada por um longo instante, até ser interrompido.

- Bons momentos coisa nenhuma, retrucou o velho. Você acha que foram bons porque o tempo apagou as más impressões. Mas estou aqui para te lembrar que a vida não é uma propaganda de margarina.
- De manteiga, você quer dizer, estamos falando da França.
- Isso, a vida não é uma propaganda de manteiga ou de sabão em pó. Você deve se lembrar bem de quando chegou a Paris e as pessoas conversavam ao seu redor. Você não pescava nada.
- Lembro sim. Era duro. Eu ficava perdido...
- Não disse? Quer pior lembrança do que essa?
- Mas também foi ótimo perceber que a língua francesa aos poucos ia fazendo mais sentido para mim. E quando tive minha primeira conversa em francês? Cara, foi sensacional!
- Zut! E do primeiro inverno, lembra? Aquele frio de rachar. Você detesta o frio. Seu dedão congela, seu nariz escorre, sua orelha dói. Isso foi horrível, não foi?
- O frio é dose mesmo. Mas foi no primeiro inverno que eu descobri a neve. Fiquei hipnotizado como uma criança diante de um novo brinquedo. Uma lembrança inesquecível.
- Mais c’est pas possible. O mau humor francês, desse você se recorda bem, né? Tem coisa pior do que o nosso mau humor? Quantas vezes você não teve vontade de estrangular alguém?
- Estrangular nada, guilhotinar! De vez em quando eu queria fatiar um, começando por essa protuberância que vocês carregam no meio do rosto e chamam de nariz.
- Viu só? Nem tudo era flores.
- Mas depois de me irritar algumas vezes eu descobri que o mau humor de vocês não é pra ser levado tão a sério. Faz parte do folclore local, vocês adoram alimentá-lo. E ele ainda me rendeu várias crônicas.
- Mas que droga! Raios de brasileiro otimista! Viveu 5 anos na França e não aprendeu nada? Nem reclamar você reclama mais. Fica achando tudo lindo, fofo, colorido, doce, como se fosse sempre páscoa. Que coisa mais sem graça. Quer saber? Desisto. Fui. Je suis parti!

O velho abriu a porta da casa e desapareceu antes de chegar ao elevador.

- Eita, velho reclamão, disse a menina. Aposto que já foi perturbar outro com sua ranzinzice. Deixa eu ir lá cuidar dele

Abracei-a e ela me deu um beijo no rosto, despedindo-se. Devolvi o beijo e fechei a porta atrás dela. Ao virar-me, vi seu lenço no chão. No mesmo instante, a campainha tocou novamente. Só podia ser ela. Abri.

Era o vizinho, pelado, pedindo açúcar.

sexta-feira, 23 de março de 2012

O olhar dos outros


O texto a seguir eu escrevi para um concurso francês de roteiros de curta-metragem do qual participei há cerca de 3 anos. O nome do concurso era Le regard des autres, o olhar dos outros, e o tema era homofobia. O vencedor teria o filme rodado e exibido em cinemas e na televisão locais.

Na condição de estrangeiro, decidi tratar do assunto mostrando que a discriminação sofrida pelos  homossexuais (ou bi, ou trans etc) é, no fundo, muito parecida com a que existe contra os imigrantes. E se baseia na intolerância que temos com o que não se parece conosco.

Se eu ganhasse, iria insistir para ter o Paulo César Pereio no papel do estrangeiro. Canalha por canalha, sou muito mais ele do que o Gérard Depardieu.


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Dois amigos estão sentados em um café. Um é francês (FR), e o outro, estrangeiro (ES), com sotaque. O garçom chega. Um amigo pergunta pro outro.

FR - Quer o quê?
ES - Um café.
FR - Dois cafés. - Diz pro garçom, que sai.
ES - E aí, tudo bem?
FR - Tudo.
ES - Tá lá ainda?
FR - Lá onde?
ES - Naquele buraco que você trabalha.
FR - Porra, precisa lembrar disso agora?
ES - Cara, tem séculos que te falo pra você largar aquela merda.
FR - Eu sei, eu sei. Mas você acha que é fácil arrumar um emprego decente?
ES - E aquilo lá é decente?
FR - Pelo menos dá pra pagar a cerveja.
ES - Considerando o tamanho de vossa pança de chope, então parece que o senhor pelo menos está ganhando bem. - Vira o pescoço e fixa o olho na barriga do amigo.
FR - Filho da puta...

Os dois riem.

ES - Por que você não larga tudo e monta uma barraca de crepe?
FR - Hã?
ES - Uma barraca de crepe. Crepe de queijo, de champignon, crepe suzette. Essas porcarias. Turista adora.
FR - Eu sou uma catástrofe na cozinha. Até ovo frito eu queimo.
ES - Junta a grana dessas cervejas aí - aponta para a barriga do outro - e contrata alguém pra trabalhar pra você. Quando o diabo criou o capitalismo, as regras foram bem definidas.
FR - De que merda você tá falando?
ES - Não sou eu. Max falava isso.
FR - Max?
ES - É. O cara que inventou essas teorias de comunismo.
FR - Marx. Karl Marx.
ES - Ele mesmo. Ele dizia que quem sabe, trabalha. Mas quem tem, manda. - Faz o sinal de dinheiro, quando diz "quem tem".
FR - Você é foda...

Os dois riem. O garçom traz os cafés.

ES - Viu o jogo domingo?
FR - Vi.
ES - E esse time, hein?
FR - Porra. Os caras não sabem diferenciar uma bola de futebol de um taco de sinuca.
ES - E você? Sabe qual é a diferença entre uma bola de futebol e um taco de sinuca?
FR - Hã?
ES - Senta em cima dos dois que você vai descobrir.

O estrangeiro ri. O outro fica sem graça.

FR - Sabe, tô pra te contar uma coisa.
ES - Ganhou na loto e vai montar um harém em Ibiza?
FR - Não, cacete. É sério.
ES - Ih, que foi?
FR - Não tô mais com a Marie.
ES - Não?
FR - Não. Tô com outra pessoa.
ES - A Claire?
FR - Não.
ES - A Véronique? Vai dizer que pegou a Véronique?
FR - Na verdade, não é uma mulher.

O estrangeiro abre o olho grande e cola no fundo da cadeira.

ES - O que você quer dizer?
FR - Quero dizer isso mesmo que você está pensando.
ES - Virou bichona? Tá enfornando o robalo? Sentando na cobra?
FR - Porra, não dá pra falar sério com você.
ES - Não dá pra falar sério é com você. Que história é essa de sair liberando o brioco agora?
FR - Não é isso.
ES - É o que, então? É amor? Vai dizer que tudo o que você sempre quis na vida foi enroscar seu bigode com outro?
FR - Nem tenho bigode.
ES - Você entendeu.
FR - Eu tô namorando o Hugo, que te apresentei um tempo atrás.
ES - O Hugo, aquele seu amigo?
FR - Já é um pouco mais que amigo...
ES - Ficou doido? Namorando um homem???
FR - Fala baixo. Tá chamando a atenção.
ES - Você dá o rabicó e eu é que quero chamar a atenção?
FR - Você não entende nada mesmo.
ES - Entendo sim. Entendo que você tá louco. Porra, se fosse o Jacques, que gosta de pintar cerâmica... Ou o Julien, que inventou de fazer aula de dança... Mas você? Você vai ao estádio e toma cerveja. Até boxe eu já te vi assistindo na TV. Boxe!
FR - Isso não se escolhe. Você simplesmente vai percebendo que é assim. E um dia você resolve admitir pra si mesmo.
ES - Quer dizer que um dia você acordou: "ah, o sol está maravilhoso. Vou tomar um bom café, uma ducha e depois virar gay".
FR - Deixa pra lá. Achei que podia contar com você, meu melhor amigo.
ES - E eu, que agora nem sei mais dizer se você é meu amigo ou minha amiga?

Silêncio na mesa. O garçom chega e pergunta se querem mais alguma coisa. Ninguém responde.

ES - Fala que você tá de sacanagem, fala. Diz que é brincadeira.
FR - O que é que muda?
ES - Muda tudo. A gente nunca mais vai poder sair de casal. Eu com a minha namorada e você com a sua. Ir pra um cinema, um restaurante.
FR - A gente nunca fez isso. Você nunca tá namorando.
ES - Nunca fez e nunca vai fazer. Pior ainda. E pra quem eu vou contar das mulheres que eu pego? Pra quem?
FR - Porra, pra mim, claro.
ES - Mas você é gay, cacete!
FR - E você é um idiota. Sou eu ainda. A mesma pessoa, ó. - Diz isso e aperta o ante-braço do amigo, que faz um olhar de estranhamento.
ES - Ô...
FR - Quer saber? Vou nessa.

Ele levanta, joga umas moedas na mesa e sai. O estrangeiro fica e chama o garçom.

ES - Uma cerveja gelada, por favor.
GR - O quê?
ES - Uma cerveja gelada.
GR - Desculpa, não entendo o que você quer.
ES - Falei que quero uma cerveja.
GR - O senhor poderia fazer a gentileza de falar francês?
ES - Olha, vá à merda. -  Ele sai também. O garçom mostra que entendia, e responde.
GR - Sua mãe não te deu educação não?

O estrangeiro sai à rua, olha para os lados, e vê seu amigo já meio longe. Ele corre para alcançá-lo.

ES - Marc, Marc.
FR - O que você quer agora? Vai perturbar outro, vai.
ES - Tá a fim de ver o jogo no bar? A cerveja é por minha conta.
FR - Hã?
ES - Mas em outro. Naquele lá as pessoas são muito intolerantes.

Marc sorri e coloca a mão no ombro do amigo, que olha meio atravessado, mas depois relaxa e coloca a mão no ombro do outro também. Eles vão andando de costas pra câmera.

FR - A gente tem que ganhar esse jogo.
ES - Basta eles jogarem como homens.
FR - Ô...
ES - Brincadeira, porra.

Caros amigos, semana que vem o Chéri à Paris publica seu último texto. No entanto, o site continuará no ar, para quem se interessar em ler as crônicas que fiz durante esse quase 5 anos de vida francesa.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Suco de goiaba


A gastronomia francesa, a culinária mexicana e o pão de mel croata (juro!) já estão lá. E agora eu começo a campanha para que o suco de goiaba com leite e o sanduíche de atum com ricota da Galeria dos Estados de Brasília também façam parte do patrimônio imaterial mundial tombado pela Unesco. Mas antes de seguir a minha defesa, queria só dizer que dar um título imaterial a algo tão densamente material quanto a comida mexicana é uma incoerência. Pronto, falei, agora vamos em frente.

O suco de goiaba com leite e o sanduíche de atum com ricota da Galeria dos Estados são como Pelé e Garrincha, como Lennon e Yoko, como Ana Maria Braga e o Louro José. Existem sozinhos, mas funcionam melhor juntos (se bem que no caso de Lennon e Yoko isso é contestável, ao menos musicalmente).

Não, a dupla alimentar não usa produtos do cerrado e muito menos faz parte dos pratos típicos da região. Se fossem esses os quesitos mais importantes, o arroz com pequi certamente chegaria na frente. Pensando bem, o arroz com pequi chegaria em segundo, atrás do próprio cheiro.

Então por que elevá-la à categoria de contribuição brasiliense para o patrimônio imaterial da humanidade? Simples. Porque eu gosto. E se eu não posso sugerir aqui o que eu quero como patrimônio imaterial da humanidade então não vou poder sugerir em nenhum outro lugar.

A primeira vez que provei o suco de goiaba com leite e o sanduíche de atum com ricota da Galeria dos Estados de Brasília eu tinha 15 anos. Fiquei tão impactado que decidi me tornar uma espécie de guardião do lanche, cargo que cumpri com certa regularidade e gula até ir embora da capital, em 2005.

Gastei ali grande parte do meu salário de menor auxiliar do Banco do Brasil. E, principalmente, grande parte do tempo que deveria dedicar à construção de um país melhor, para desespero do meu chefe Domingos. Desespero que aumentava muito quando eu voltava sem lanche para ele.

Depois de eras, ontem retornei ao lugar para conferir se a lanchonete continuava por lá e para me certificar que a qualidade não havia mudado. Aliviado, vi que tudo estava certo, exatamente como eu havia deixado, 7 anos atrás.

O quê? Todo mundo tem uma missão na vida, não é mesmo?

Caros amigos, como eu já havia dito, esse blog segue até fins de março, quando completa 5 anos. Depois ele para de ser atualizado. No entanto, não vou abandonar a vida de blogueiro. Começo um outro projeto, completamente diferente, assim que o Chéri disser seus últimos uh la las.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Lagostas psicodélicas


Vistos de longe, os anos 60 foram a década em que metade do mundo parecia ter tomado um ácido. Músicas, filmes e livros psicodélicos brotavam por todos os cantos, como sementes (de papoula). A viagem era tão geral que nem as relações diplomáticas escaparam.

Veja a Guerra das Lagostas, incidente envolvendo o Brasil e a França, ocorrido entre 1961 e 1963.

O imbróglio começou quando barcos franceses vieram pescar lagostas na costa de Pernambuco. O governo brasileiro chiou. O francês bufou. O brasileiro ameaçou. O francês disse “merde!” e mandou uma frota de guerra. O brasileiro mandou os franceses tirarem os navios e os narizes da nossa costa.

Então a coisa complicou de vez e uma guerra tornou-se iminente. Foi aí que os diplomatas de ambos os países, que andavam meio entediados desde o fim da década de 40, entraram na parada.

Na mesa de negociações, os nossos disseram que as lagostas estavam em território brasileiro e dessa forma nos pertenciam. Os franceses concordaram e discordaram ao mesmo tempo, alegando que enquanto andavam e tocavam o fundo do mar, tais crustáceos realmente respondiam às leis de pindorama. No entanto, quando nadavam, estariam em águas internacionais e, portanto, não tinham passaporte e poderiam ser livremente pescadas.

A história ficou tão malucrazy que nesse instante o General de Gaulle proferiu - ou não, porque ninguém sabe se é verdade mesmo - a sua frase mais famosa em terras tupiniquins: “Le Brésil, ce n’est pas un pays sérieux”, o Brasil não é um país sério. E ele queria o quê, oras, que a gente não entrasse na brincadeira?

O quiproquó só foi resolvido quando um almirante brasileiro soltou o argumento mais brilhantemente psicodélico possível, afirmando que se as lagostas quando nadam podem ser consideradas peixes, então os cangurus quando saltam seriam nada menos do que aves.

Brasileiros e franceses concordaram que o raciocínio fazia muito sentido. E acendeu-se então o cachimbo da paz.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Andar de baú é uma parada


Cheguei ao ponto e meu ônibus tinha acabado de passar, confirmando a primeira regra dos usuários de transporte público: o momento da sua chegada à parada é exatamente o mesmo da partida do ônibus que você quer pegar. A segunda regra diz que o seu tempo de espera a partir de então será proporcional à sua pressa.

Depois de eras passou outro, dei sinal, não era o meu, dei outro sinal pra dizer que não era o meu, o motorista já havia começado a frear e acelerou novamente, fiz um “ok” pra agradecer a boa vontade, o motorista achou que eu havia mudado de ideia e reduziu outra vez a velocidade, sacudi as duas mãos pra deixar claro que não o havia chamado, o motorista parou ao meu lado e perguntou se eu já havia me resolvido.

- E aí, já se resolveu?

Eu já havia me resolvido e de qualquer maneira não ia subir naquele ônibus nem que fosse o meu e o último do dia, tamanha a cara feia dele, do seu parceiro cobrador e do passageiro bombado sentado na primeira fila.

Passou mais um ônibus, que também não era meu e por isso não dei sinal, mas era de muitas outras pessoas que esperavam no mesmo ponto, deram sinal ao mesmo tempo e depois se acotovelaram para subir, parecendo um formigueiro humano. Quando percebi o meu vinha logo atrás mas só acenei depois que ele já havia passado à toda. O motorista não me viu, ao contrário da velhinha do último banco, que me mandou um tchau, não sei se por compaixão ou para corresponder à minha involuntária boa educação.

Pra matar o tempo, resolvi contar os carros verdes da rua, mas parei no 35º porque a brincadeira não tinha a menor graça. Tirei o celular do bolso, olhei para o relógio, vi que estava atrasado, recoloquei o celular no bolso, tirei-o novamente, olhei mais uma vez para o relógio, certifiquei-me que estava atrasado, guardei-o e quando o peguei outra vez percebi que o meu ônibus havia parado e todo mundo subido, menos eu, que fiquei olhando para o telefone. Tirei-o mais uma vez do bolso e tive a absoluta certeza de que agora estava atrasado de verdade.

Longos tempos depois, avistei um ônibus de longe e comecei a acenar trezentos metros antes de ele chegar ao ponto para ter certeza de que dessa vez o pegaria, só que o motorista decidiu não frear, ignorando totalmente meu apelo e meus saltos com as duas mãos abertas que davam a impressão de que eu fazia polichinelos, modalidade de exercício que deixou de existir “depois da eleição de Tancredo Neves”, segundo um amigo. Mas o destino parecia estar ao meu lado e o coletivo parou no sinal, então bati à porta, com um sorriso de vitória, e o sujeito não teve escolha a não ser abrir pra mim. Acomodei-me em um banco desconfortável e aproveitei para jogar Tetris no celular. Depois de uns 15 minutos levantei a cabeça e só aí fui perceber que havia pego a rota errada.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Escada enrolante


Quando decidi voltar pra Brasília, vim preparado pra ter uma vida completamente diferente da que levava em Paris. Pra precisar de carro, pra não ver gente nas ruas, pra voltar a usar camiseta como vestimenta do dia a dia, pra encarar com indiferença as tempestades tropicais que na França seriam tomadas como a chegada do apocalipse. Só não me preparei para as escadas rolantes.

- Dá uma licencinha?
- Hã?
- Chegadinha pro lado, pra eu passar.
- Passar como?
- Passar passando, ué.
- Você não tá vendo que estou aqui parado?
- Tô. E é por isso mesmo que eu quero passar.
- Estamos em uma escada rolante.
- Exatamente! É uma escada rolante, não uma fila rolante. As pessoas andam nas escadas.
- Mas como essa aqui rola, a gente pode ficar parado, só curtindo a paisagem.
- Que paisagem? Isso é um shopping center, só tem vitrine.
- Rapaz, de que mundo você veio? Olha ali embaixo.
- O quiosque de algodão doce? O que tem?
- Ao lado.
- A livraria?
- Entre os dois.
- Não tô vendo nada.
- ABRE O OLHO, DIABO! Não tá vendo aquela gostosa de shortinho?
- Ah. É mesmo!
- E ali à esquerda. Saca aquele cara de terno verde. Ele tá sempre por aqui, cada dia com uma roupa mais estranha do que a outra. Um personagem.
- Que figura!
- Olha, vou te contar uma coisa: a escada rolante é o novo banquinho da praça. Daqui a gente vê a vida passar, as pessoas desfilarem, o mundo acontecer. Ao menos esse pequeno mundo que é o shopping center.
- Ah é? Então me diz quem é aquela ali, no andar de cima.
- É a moça que trabalha na farmácia. Primeira a chegar e última a sair. Trabalha até nos fins de semana. Explorada pelo patrão, coitada.
- Qual o nome?
- Não tenho ideia. Mas daquele ali eu sei. É o José, funcionário da lotérica. Ele se vangloria de já ter registrado uma aposta que deu a quina. Pouca gente sabe, mas no fundo ele torce contra os apostadores.
- Que estranho.
- É a vida, ela é estranha. E a gente enxerga isso melhor parado na escada rolante, subindo e descendo em ciclos.
- Engraçado como nunca reparei nisso.
- É porque você está sempre apressado, sobe atropelando todo mundo.
- Como você sabe que eu...
- E depois corre pra aquela agência de publicidade do 2º andar.
- Mas quem te disse que...
- Aliás, dessa vez é melhor você correr mesmo, senão vai chegar atrasado para a reunião com o cliente, que acabou de passar por aqui.
- Ok, ok. Bom, de qualquer forma, muito prazer. Meu nome é...
- Daniel. Eu sei.
- Nossa, incrível! E o seu?
- O meu? Ora, você nem me conhece. Era só o que faltava, a gente quer ser simpático e o outro já vem cheio de intimidades. Daqui a pouco quer saber da minha vida, meu trabalho, meus horários...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Carnaval para franceses


Meus 7 leitores franceses e lusófonos de vez em quando bufam reclamam que eu não venho dedicando muitos posts a eles. Pois eis que chegou a hora de corrigir isso, com uma seleção de frases e perguntas úteis para os patrícios de Gainsbourg que decidiram cruzar o Atlântico e encarar o carnaval brasileiro.


. Adorrei sua fantasia de bandido. Essa arma parrece até real. O quê, minha carteira? D’accord, pega, vou entrrar na folia. Ei, volta aqui!

. Desculpe perguntar assim, mas a senhorrita está guardando uma cenourra dentro da calcinha?

. Não, eu não sou brranco, estou fantasiado de fantasma.

. Por acaso não serria falsa essa nota de 40 reais que o senhor me deu de trroco?

. O que é aquela bola amarrela ali no céu? Ah, isso é que é o sol?

. Moço, me dá todas as havaianas da sua loja, por favor.

. Que carne o senhor usou nesse churrasquinho? Filé mignau? C’est délicieux!

. Acho que bebi muitas caipirrinhas. Acordei com aquele gosto de parapluie na boca.

. Entupidanemte, estupivalente, estudipa... Ah, traz uma cerveja frria, por favor.

. 200 reais a canga? E prra mim, que sou brrasileirro?

. Ai, se eu te pegô, ai, ai, ai, se eu te pegô.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A espreguiçadeira do Migué

Uma amiga da minha mãe resolveu gentilmente colaborar com a minha reinstalação no Brasil e me deu uma geladeira praticamente nova que ela não usava mais. Vamos chamá-la de Babusha (a amiga, não a geladeira). Pra carregar o treco, convoquei um amigo meu, dono de uma mini-camionete e de uma massa muscular consequente. Fomos lá.

- Daniel, a geladeira está ali, embalada em papel bolha desde a minha mudança para essa casa. Está em perfeitas condições. Aproveita e leva também aquela espreguiçadeira dobrável que está atrás da porta, ninguém aqui usa mesmo.

Cheguei perto do trambolho (a geladeira, não a amiga) e fiquei olhando pra ela desanimado, imaginando como transportar aquilo até o carro. Nisso, meu amigo pediu licença, abraçou-a como um urso e a levantou sozinho. Apavorada, Babusha chamou os filhos para ajudar.

- Saul! Migué! O Daniel tá aqui e veio buscar a geladeira. Desçam rápido pra dar um alô pra ele e ajudar a transportá-la.

Pra não pagar o mico de estar com as mãos abanando quando os filhos dela chegassem, enquanto meu amigo fazia o trabalho pesado, fui levar a espreguiçadeira para a caçamba do veículo. Saul desceu primeiro e me cumprimentou.

- Olá, como vai?
- Eu vou indo, e você?
- Tudo bem.

Logo em seguida veio o Migué. Ele me viu de longe e abriu um sorriso, que foi se transformando em cara de pânico à medida em que chegava mais perto. Não disse nem "oi". Virou pra mãe e protestou.

- Mas você tá dando a minha espreguiçadeira pro Daniel?
- Tô. Você não usa.
- Uso. É a minha cadeira preferida.

Com a espreguiçadeira na mão, senti-me um ladrão pego em flagrante. Sem graça, fiz menção de devolvê-la, no que fui repreendido por Babusha.

- Nada disso, Daniel. Ela é sua. Está encostada há um tempão, ocupando espaço. Você me faz um favor levando daqui.

Aliviado, acomodei-a na caçamba. Migué protestou.

- Nada disso. Eu gosto dela. Quero de volta.

Tirei novamente do carro. Saul, que até então assistia calado, interveio.

- Leva, Daniel. Isso só acumula poeira aqui em casa.

Devolvi-a outra vez à caminhonete. E o Migué continuou reclamando.

- É minha poltrona favorita pra ver futebol. Ela fica.
- Ela vai, disse Babusha.
- Não vai não.
- Ah, se vai, completou Saul.
- De jeito nenhum.
- Vai.

Os três decidiam o destino da cadeira de uma maneira tão italiana que paramos pra assistir, eu e o meu amigo, que continuava abraçado à geladeira. Se Fellini passasse por ali naquele momento, teria conteúdo para uma trilogia.

Por fim, depois de longos minutos e com a discussão longe de terminar, tomei uma decisão sobre a espreguiçadeira do Migué. Mas não vou contar antes de quarta-feira, na area de comentários desse texto. Antes disso, gostaria de saber: e vocês, o que fariam?

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A pia


Na busca frenética por um apartamento pra alugar, virei rato de sites de imobiliárias, desses que colocam todos os dados sobre o imóvel, como metragem, número de quartos, vagas na garagem, valor do condomínio e demais informações que o futuro inquilino pode querer saber. Diversos publicam também fotos do apartamento em questão, para dar uma ideia do seu estado geral.

Eu acho isso muito útil, muito mesmo, pois pelas imagens já dá pra descartar algumas possíveis roubadas. Mas, apesar de endossar a importância do serviço, há algo que não consegui compreender, um fato que me causou estranheza e espanto, um fenômeno repetido em grande parte das páginas dos imóveis que visitei virtualmente: muitas delas trazem fotografias da pia do banheiro. Da pia!

Da primeira vez, achei que se tratasse de uma falta de habilidade da pessoa que registrou a imagem. Talvez quisesse ter dado um panorama do aposento e, sei lá, tremeu na hora do clique. Ou, quem sabe, sem querer colocou o zoom no máximo e nem percebeu. Mas depois notei que a foto da pia era recorrente em diversos anúncios. Cheguei até a procurar no Google se não havia um concurso de retratos de arte com esse tema. Mas não encontrei informações a respeito.

Diacho, pensei, que fenômeno é esse? Na França, é comum não haver pias nos lavabos, o que também me intriga, pois o sujeito é obrigado a atravessar a casa com as mãos no ar para lavá-las na sala de banho (os dois ambientes geralmente são separados) ou mesmo na cozinha. Nesse caso, tais imagens se justificariam pelo fato de serem um diferencial. Valeria até uma legenda, tipo "aqui se faz, aqui se lava". Mas no Brasil isso é muito estranho…

Conversando com um amigo sobre o inusitado da situação, perguntei se, enquanto estive fora, as pias haviam se tornado raras ao ponto de merecerem destaque em anúncios de apartamentos. Ele respirou fundo, deu uma bufada no melhor estilo francês e disse: "Parece que você se esqueceu de como as coisas acontecem por aqui. Essa pia é o símbolo do funcionamento dos serviços que contratamos no Brasil, principalmente no ramo imobiliário". Vendo minhas sobrancelhas franzidas e um big ponto de interrogação na minha testa, continuou: "É assim: você escolhe o apê, conversa com um corretor que é só sorrisos, tenta negociar o valor do aluguel, assina o contrato de locação, pega as chaves e se instala. Aí, um belo dia, dá um pepino qualquer, tipo um vazamento de água, e você precisa que o corretor venha te ajudar."

E aí, perguntei, o que acontece?

"Aí ele questiona se você não reparou na foto da pia quando decidiu alugar aquele imóvel"

Eu repeti que ainda não havia entendido o que a pia tinha a ver com tudo isso. Ele me olhou com um olhar piedoso.

"É muito simples: sabe o que ele vai te dizer?"

Não sabia.

"Que ele vai lavar as mãos pro seu problema, não pode fazer nada. Compreendeu agora?"

Armado dessa informação, fui ver pessoalmente um corretor, que me mostrou imagens dos imóveis que tinha pra alugar. Assim que cheguei, avisei de antemão que não aceitava ofertas de apartamentos com fotografias de pias. Ele fingiu que não entendeu, mas percebi claramente que o havia desarmado.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Procura-se creche


- Bom dia.
- Bom dia.
- Sabioquié? Tô procurando uma creche para a minha filha e me falaram muito bem de vocês.
- Pois o senhor veio ao lugar certo. Sua filha vai adorar a gente. Qual a idade da pituba?
- De quê?
- Da tchutchuquinha, da guria, da piá, da...
- Da criança?
- Isso.
- 1 ano e 9 meses.
- Que coisa mais fofa, 21 meses de pura traquinagem, de noites mal dormidas, de cocô mole, de...
- Escuta, será que a gente podia visitar o estabelecimento?
- Mas só se for agora, campeão.
- É agora mesmo, porque se você quiser me mostrar quando eu não estiver aqui não vai adiantar de muita coisa.
- Pois bem. Esta é a maravilhosa sala de estímulos. Tem atividades pra desenvolver a criatividade, pra exercitar a lógica e pra aprender a calcular a raiz quadrada de cabeça e em menos de 5 segundos.
- E ali?
- Ali é o incrível laboratório de línguas. Sua filha já fala?
- Um pouco. Diz umas coisas em português e em francês.
- Francês?
- Isso, ela é pariense.
- Meu querido, francês já era, babau, ficou démodé, se é que você me entende. Paris está decadente, só interessava às pessoas nascidas no século XIX, que adoravam fazer bico, dizer “uh la la” e levantar o dedo mindinho enquanto bebiam uma taça de vinho. Hoje em dia, c'est fini. Aqui sua filha vai ter aula de inglês e espanhol de manhã, de chinês e árabe depois do almoço e noções de russo e de hindi à tarde.
- Russo e hindi?
- É claro. É papel dos educadores preparar a criança para o mundo globalizado. Nunca ouviu falar nos BRIC? Mas depois voltamos ao assunto, pois virando à esquerda chegamos à fabulosa horta orgânica.
- Vocês plantam o que servem na cantina?
- Quase isso, capitão. Quem plantam são as crianças. Elas capinam, preparam a terra, jogam as sementes, regam, espantam as pragas, colhem e lavam tudo. E depois ainda picam as cebolas pro almoço, pois eu sempre choro quando tento fazer isso.
- Elas não choram?
- Claro que sim, mas elas já choram o tempo inteiro, então ao menos agora têm um motivo real.
- E aquela enorme caixa preta? Que treco é esse?
- Mais respeito. Ali é o must. O top. The best thing in the whole damn world. Trata-se da Fantastic Black Box, única na América Latina. Há apenas 5 em todo o mundo e é claro que em Paris não tem uma dessas.
- E do que se trata?
- Trata-se de uma caixa sensorial. Cinco minutos ali dentro e sua filha nunca mais será a mesma. A gente liga 435 eletrodos no corpo da criança e ela vai entender na hora de onde veio e qual o seu papel na terra. Vai, inclusive, saber se passará ou não no concurso para o Senado em 2032. Assim poderá dirigir seus esforços para coisas que darão realmente certo em sua vida, sem perder tempo com bobagens que não a levarão a lugar algum.
- !?
- Impressionante, não?
- E depois de todas essas atividades ela vai pro parquinho brincar?
- Brincar?
- Isso. Escorrega, trepa-trepa, gangorra.
- Olha, esse tipo de coisa a gente não estimula aqui não. Imagina se ela cai e se machuca? Ou se fica presa em cima de uma árvore? A gente não saberia o que fazer. É muito arriscado, meu querido, muito arriscado.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Tudo bem na rue d'Aligre

Hoje de manhã, tudo ia bem na rue d’Aligre. Os feirantes disputavam os clientes matinais, oferecendo a altos brados frutas e legumes locais, mexericas espanholas, mangas peruanas e limões tupiniquins. Como sempre, logo cedo tudo já estava a postos, menos a peixaria do sujeito com rabo de cavalo e cara de traficante de filme B, que é sempre o último a arrumar sua loja. Toda vez que passo em frente tenho a impressão que a polícia não vai tardar desembarcar ali após ter descoberto que o cidadão vendia atuns alucinógenos e dourados psicodélicos. Vou pedir pros amigos franceses me manterem informado do assunto.

O meu barbeiro careca conversa sobre futebol com um cliente e me faz um aceno quando passo: “Salut Kaká. Você viu o jogo de ontem?”. O carinha da barraca da frente também me cumprimenta: “Bom dia, le bandit”. Paro pra papear e tentar convencê-lo pela 20a vez que o Hulk não é atacante para a seleção canarinho, que o Brandão – ídolo do Olympique de Marseille - é um tremendo perna de pau completamente desconhecido no Brasil e, mais importante de tudo, que o Maradona não chega aos pés do Pelé. As discussões futebolísticas da calçada da rue d’Aligre perderão o meu sotaque brasileiro e a minha eterna crença de que um dia bateremos a França por 6 x 0, pra descontar as últimas derrotas.

Falando em sotaque, a portuguesa me dá um bom dia lisboeta, enquanto organiza na sua épicerie os salames e presuntos que vêm de sua terra natal, assim como os irresistíveis pastéis de nata, estes produzidos localmente, “para estarem sempre frescos, ô pá”. A tunisiana da padaria pergunta se eu quero a tradition avec céreales. Respondo sim com a cabeça. Ela entra por uma porta e volta com uma baguete quentinha: “Acabou de sair. Louise vai adorar”. Agradeço, pago e tiro um naco. Louise reclama e dou pra ela. “Tá quente, Loulou, sopra antes de comer”. “Chaud, papa, chaud”. Tiro outro pedaço, dessa vez pra mim.

Peço ao dono da minha cave à vins preferida para embalar duas boas garrafas pra viagem. “É hoje que você vai?”. “Não, domingo”. “Boa sorte, vai dar tudo certo”. “Merci, mec, mando um postal de lá”. Ao fromager solicito um pedaço de velho comté e um do troll, “un fromage formidable, feito exclusivamente por um pequeno produtor, aposto que não tem nada parecido no Brasil”.

Esbarro por acaso na Edith, que começa instantaneamente a falar. “Tá feliz de partir, Daniel? É pra Brasília que você vai? Manda um abraço pros seus pais. Manda também pros seus irmãos. Manda logo pra toda a família de uma vez. É verão por lá? Que sorte a sua. A gente congela nesse inverno europeu. Não sei como você aguentou tanto tempo. Eu adoraria ir ao Brasil. Minha avó nasceu em São Paulo. Uma vez eu tomei guaraná Antártica. Copacabana é linda pela televisão. Etc e tal. Foi ótimo conversar com você. Não deixe de dar notícias. Beijos grandes”.

Continuo meu périplo até o estande onde compro meus legumes. “Salut le brésilien. Tudo bom?”, grita um dos vendedores. “Salut les marrocains. Tudo, e vocês?”. O diálogo em português termina aí. Escolho uma fatia de abóbora e dois alhos porós e ganho um ramo de salsa de presente. “Choukran", agradeço, gastando todo o árabe que sei. "Não se esqueça de voltar pra nos visitar". "Pode deixar, em breve tô por aqui". "Incha’Allah!".

Hoje de manhã, tudo ia bem na rue d’Aligre, como tem sido desde sempre, com seus personagens mudando constantemente, chegando cheios de histórias pra contar e indo embora com tantas outras mais.


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Caros amigos.

O blog segue até fins de março, quando completa 5 anos, já trazendo minhas primeiras impressões do retorno ao Brasil. Depois ele pára de ser atualizado. Em abril retomo a vida de blogueiro, com um projeto completamente diferente. Até lá, nos vemos por aqui. Abraços!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

5 anos, 7 haicais

Bonjour
Falar certinho
Essa língua francesa:
Só com biquinho?

Potin
A tagarela
Da Edith se ouve da
Minha janela

Froid
Hoje tava frio
No domingo congela
Brasil? Avalio

Des faux adieux
Je quitte Paris
Já que tu não quiseste
Também não te quis

Naissances
A tese em francês
É mais complicada que
Cuidar de bebês

Grossir
Comer não cansa
Problema é depois, quando
Surge uma pança

Adieu, Paris.

À bientôt? Pra valer?
Será que da próxima vez
Vamos nos reconhecer?


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Caros amigos.

Volto ao Brasil em breve. O blog segue até fins de março, quando completa exatamente 5 anos, já trazendo minhas primeiras impressões do retorno ao país. Depois ele pára de ser atualizado, mas continua no ar.

E já em abril retomo a vida de blogueiro, com um projeto completamente diferente. Enquanto isso, continuamos a nos ver por aqui. Abraços!


sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Carta a Vinícius

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Enquanto lê o texto, escute Carta ao Tom, do álbum Vinicius & Caymmi no Zum Zum


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Paris, 6 de janeiro de 2012.

Vinícius querido,

Estou aqui no meu escritório, que é a sala da minha casa, que dá para o jardim do pátio interno que nunca é frequentado por viv’alma.

É meio dia em ponto, e o banzo lentamente se instala em mim, prenúncio das mudanças iminentes. Passo longos minutos olhando para o nada que entra pela janela e é impossível alguém estar mais reflexivo do que eu. Nesta hora, decido escrever essa carta e mesmo que nunca a envie tenho certeza de que você irá recebê-la onde estiver e entenderá o que estou sentindo.

Estamos deixando Paris pra trás, depois de quase cinco anos de uma relação tortuosa com a cidade. Paris é exigente, só aceita amor incondicional. E eu não fui capaz de dá-lo no início da minha jornada, por não enxergar meu reflexo nas águas do Sena como o via na praia de Ipanema ou no lago Paranoá. Por isso muitas vezes me tranquei em mim mesmo e não foram poucos os dias em que não pus os pés fora de casa, principalmente quando o inverno me obrigava a vestir múltiplas camadas de roupa e de isolamento. Você já passou um inverno inteirinho sonhando com o sol do nosso país? É dose, Poetinha.

Quando levantei a cabeça, descobri finalmente os encantos dessa linda moça: os parques e canais e construções e monumentos, as padarias cheias de baguetes e de croissants irresistíveis, o confit de canard que dissolve na boca seguido de um gole de um bom cahors, o metrô que costura a cidade por baixo e os ônibus e bicicletas que a revelam em sua superfície, o cremoso do vacherin fresco e o perfume do comté velho, as flores da primavera e as cores do outono, o calor do verão e a neve do inverno. Acabei aprendendo que até o inverno tem seu charme, veja só.

E aí, meu caro Vinícius, quando percebi j’étais tombé amoureux de cette dame. Paris te conquista de mansinho, sem que você perceba. Ela não tem pressa, como não têm pressa as mulheres cientes de sua própria beleza, que desfilam lentamente diante de nossas retinas. E nós não temos outra escolha a não ser contemplá-las.

É verdade que estou doido para encontrar a família e os amigos do lado de lá do Atlântico, mas sentirei saudades dos que ficam por cá e dos encontros inimagináveis que só Paris é capaz de proporcionar. Veja você que tive a sorte de conversar sobre literatura com o Verissimo, sobre cidades com o Henry-Pierre Jeudy, sobre filosofia com o Lipovetsky e voltei a calçar chuteiras para bater umas boas peladas com o Chico. Fiquei até amigo do Philippe, filho mais velho do seu companheiro e parceiro Baden, o que me fez sentir que conheci um pouco você, por tabela.

Poetinha, quando eu chegar a Brasília, vou correr no Xique-Xique e pedir uma carne de sol completa com mandioca bem molinha, feijão de corda, paçoca e muita manteiga, acompanhada de uma cerveja estupidamente gelada. Vou me dar uma boa dose de brasilidade, que afinal é o motivo principal da nossa volta para minha terra natal.

E mais tarde, em casa, irei desembrulhar cuidadosamente o pedaço de comté que certamente levarei e hei de degustá-lo morosamente, em trevas totais, pensando apenas na amada Paris.

Daniel