sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Procura-se creche


- Bom dia.
- Bom dia.
- Sabioquié? Tô procurando uma creche para a minha filha e me falaram muito bem de vocês.
- Pois o senhor veio ao lugar certo. Sua filha vai adorar a gente. Qual a idade da pituba?
- De quê?
- Da tchutchuquinha, da guria, da piá, da...
- Da criança?
- Isso.
- 1 ano e 9 meses.
- Que coisa mais fofa, 21 meses de pura traquinagem, de noites mal dormidas, de cocô mole, de...
- Escuta, será que a gente podia visitar o estabelecimento?
- Mas só se for agora, campeão.
- É agora mesmo, porque se você quiser me mostrar quando eu não estiver aqui não vai adiantar de muita coisa.
- Pois bem. Esta é a maravilhosa sala de estímulos. Tem atividades pra desenvolver a criatividade, pra exercitar a lógica e pra aprender a calcular a raiz quadrada de cabeça e em menos de 5 segundos.
- E ali?
- Ali é o incrível laboratório de línguas. Sua filha já fala?
- Um pouco. Diz umas coisas em português e em francês.
- Francês?
- Isso, ela é pariense.
- Meu querido, francês já era, babau, ficou démodé, se é que você me entende. Paris está decadente, só interessava às pessoas nascidas no século XIX, que adoravam fazer bico, dizer “uh la la” e levantar o dedo mindinho enquanto bebiam uma taça de vinho. Hoje em dia, c'est fini. Aqui sua filha vai ter aula de inglês e espanhol de manhã, de chinês e árabe depois do almoço e noções de russo e de hindi à tarde.
- Russo e hindi?
- É claro. É papel dos educadores preparar a criança para o mundo globalizado. Nunca ouviu falar nos BRIC? Mas depois voltamos ao assunto, pois virando à esquerda chegamos à fabulosa horta orgânica.
- Vocês plantam o que servem na cantina?
- Quase isso, capitão. Quem plantam são as crianças. Elas capinam, preparam a terra, jogam as sementes, regam, espantam as pragas, colhem e lavam tudo. E depois ainda picam as cebolas pro almoço, pois eu sempre choro quando tento fazer isso.
- Elas não choram?
- Claro que sim, mas elas já choram o tempo inteiro, então ao menos agora têm um motivo real.
- E aquela enorme caixa preta? Que treco é esse?
- Mais respeito. Ali é o must. O top. The best thing in the whole damn world. Trata-se da Fantastic Black Box, única na América Latina. Há apenas 5 em todo o mundo e é claro que em Paris não tem uma dessas.
- E do que se trata?
- Trata-se de uma caixa sensorial. Cinco minutos ali dentro e sua filha nunca mais será a mesma. A gente liga 435 eletrodos no corpo da criança e ela vai entender na hora de onde veio e qual o seu papel na terra. Vai, inclusive, saber se passará ou não no concurso para o Senado em 2032. Assim poderá dirigir seus esforços para coisas que darão realmente certo em sua vida, sem perder tempo com bobagens que não a levarão a lugar algum.
- !?
- Impressionante, não?
- E depois de todas essas atividades ela vai pro parquinho brincar?
- Brincar?
- Isso. Escorrega, trepa-trepa, gangorra.
- Olha, esse tipo de coisa a gente não estimula aqui não. Imagina se ela cai e se machuca? Ou se fica presa em cima de uma árvore? A gente não saberia o que fazer. É muito arriscado, meu querido, muito arriscado.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Tudo bem na rue d'Aligre

Hoje de manhã, tudo ia bem na rue d’Aligre. Os feirantes disputavam os clientes matinais, oferecendo a altos brados frutas e legumes locais, mexericas espanholas, mangas peruanas e limões tupiniquins. Como sempre, logo cedo tudo já estava a postos, menos a peixaria do sujeito com rabo de cavalo e cara de traficante de filme B, que é sempre o último a arrumar sua loja. Toda vez que passo em frente tenho a impressão que a polícia não vai tardar desembarcar ali após ter descoberto que o cidadão vendia atuns alucinógenos e dourados psicodélicos. Vou pedir pros amigos franceses me manterem informado do assunto.

O meu barbeiro careca conversa sobre futebol com um cliente e me faz um aceno quando passo: “Salut Kaká. Você viu o jogo de ontem?”. O carinha da barraca da frente também me cumprimenta: “Bom dia, le bandit”. Paro pra papear e tentar convencê-lo pela 20a vez que o Hulk não é atacante para a seleção canarinho, que o Brandão – ídolo do Olympique de Marseille - é um tremendo perna de pau completamente desconhecido no Brasil e, mais importante de tudo, que o Maradona não chega aos pés do Pelé. As discussões futebolísticas da calçada da rue d’Aligre perderão o meu sotaque brasileiro e a minha eterna crença de que um dia bateremos a França por 6 x 0, pra descontar as últimas derrotas.

Falando em sotaque, a portuguesa me dá um bom dia lisboeta, enquanto organiza na sua épicerie os salames e presuntos que vêm de sua terra natal, assim como os irresistíveis pastéis de nata, estes produzidos localmente, “para estarem sempre frescos, ô pá”. A tunisiana da padaria pergunta se eu quero a tradition avec céreales. Respondo sim com a cabeça. Ela entra por uma porta e volta com uma baguete quentinha: “Acabou de sair. Louise vai adorar”. Agradeço, pago e tiro um naco. Louise reclama e dou pra ela. “Tá quente, Loulou, sopra antes de comer”. “Chaud, papa, chaud”. Tiro outro pedaço, dessa vez pra mim.

Peço ao dono da minha cave à vins preferida para embalar duas boas garrafas pra viagem. “É hoje que você vai?”. “Não, domingo”. “Boa sorte, vai dar tudo certo”. “Merci, mec, mando um postal de lá”. Ao fromager solicito um pedaço de velho comté e um do troll, “un fromage formidable, feito exclusivamente por um pequeno produtor, aposto que não tem nada parecido no Brasil”.

Esbarro por acaso na Edith, que começa instantaneamente a falar. “Tá feliz de partir, Daniel? É pra Brasília que você vai? Manda um abraço pros seus pais. Manda também pros seus irmãos. Manda logo pra toda a família de uma vez. É verão por lá? Que sorte a sua. A gente congela nesse inverno europeu. Não sei como você aguentou tanto tempo. Eu adoraria ir ao Brasil. Minha avó nasceu em São Paulo. Uma vez eu tomei guaraná Antártica. Copacabana é linda pela televisão. Etc e tal. Foi ótimo conversar com você. Não deixe de dar notícias. Beijos grandes”.

Continuo meu périplo até o estande onde compro meus legumes. “Salut le brésilien. Tudo bom?”, grita um dos vendedores. “Salut les marrocains. Tudo, e vocês?”. O diálogo em português termina aí. Escolho uma fatia de abóbora e dois alhos porós e ganho um ramo de salsa de presente. “Choukran", agradeço, gastando todo o árabe que sei. "Não se esqueça de voltar pra nos visitar". "Pode deixar, em breve tô por aqui". "Incha’Allah!".

Hoje de manhã, tudo ia bem na rue d’Aligre, como tem sido desde sempre, com seus personagens mudando constantemente, chegando cheios de histórias pra contar e indo embora com tantas outras mais.


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Caros amigos.

O blog segue até fins de março, quando completa 5 anos, já trazendo minhas primeiras impressões do retorno ao Brasil. Depois ele pára de ser atualizado. Em abril retomo a vida de blogueiro, com um projeto completamente diferente. Até lá, nos vemos por aqui. Abraços!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

5 anos, 7 haicais

Bonjour
Falar certinho
Essa língua francesa:
Só com biquinho?

Potin
A tagarela
Da Edith se ouve da
Minha janela

Froid
Hoje tava frio
No domingo congela
Brasil? Avalio

Des faux adieux
Je quitte Paris
Já que tu não quiseste
Também não te quis

Naissances
A tese em francês
É mais complicada que
Cuidar de bebês

Grossir
Comer não cansa
Problema é depois, quando
Surge uma pança

Adieu, Paris.

À bientôt? Pra valer?
Será que da próxima vez
Vamos nos reconhecer?


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Caros amigos.

Volto ao Brasil em breve. O blog segue até fins de março, quando completa exatamente 5 anos, já trazendo minhas primeiras impressões do retorno ao país. Depois ele pára de ser atualizado, mas continua no ar.

E já em abril retomo a vida de blogueiro, com um projeto completamente diferente. Enquanto isso, continuamos a nos ver por aqui. Abraços!


sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Carta a Vinícius

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Enquanto lê o texto, escute Carta ao Tom, do álbum Vinicius & Caymmi no Zum Zum


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Paris, 6 de janeiro de 2012.

Vinícius querido,

Estou aqui no meu escritório, que é a sala da minha casa, que dá para o jardim do pátio interno que nunca é frequentado por viv’alma.

É meio dia em ponto, e o banzo lentamente se instala em mim, prenúncio das mudanças iminentes. Passo longos minutos olhando para o nada que entra pela janela e é impossível alguém estar mais reflexivo do que eu. Nesta hora, decido escrever essa carta e mesmo que nunca a envie tenho certeza de que você irá recebê-la onde estiver e entenderá o que estou sentindo.

Estamos deixando Paris pra trás, depois de quase cinco anos de uma relação tortuosa com a cidade. Paris é exigente, só aceita amor incondicional. E eu não fui capaz de dá-lo no início da minha jornada, por não enxergar meu reflexo nas águas do Sena como o via na praia de Ipanema ou no lago Paranoá. Por isso muitas vezes me tranquei em mim mesmo e não foram poucos os dias em que não pus os pés fora de casa, principalmente quando o inverno me obrigava a vestir múltiplas camadas de roupa e de isolamento. Você já passou um inverno inteirinho sonhando com o sol do nosso país? É dose, Poetinha.

Quando levantei a cabeça, descobri finalmente os encantos dessa linda moça: os parques e canais e construções e monumentos, as padarias cheias de baguetes e de croissants irresistíveis, o confit de canard que dissolve na boca seguido de um gole de um bom cahors, o metrô que costura a cidade por baixo e os ônibus e bicicletas que a revelam em sua superfície, o cremoso do vacherin fresco e o perfume do comté velho, as flores da primavera e as cores do outono, o calor do verão e a neve do inverno. Acabei aprendendo que até o inverno tem seu charme, veja só.

E aí, meu caro Vinícius, quando percebi j’étais tombé amoureux de cette dame. Paris te conquista de mansinho, sem que você perceba. Ela não tem pressa, como não têm pressa as mulheres cientes de sua própria beleza, que desfilam lentamente diante de nossas retinas. E nós não temos outra escolha a não ser contemplá-las.

É verdade que estou doido para encontrar a família e os amigos do lado de lá do Atlântico, mas sentirei saudades dos que ficam por cá e dos encontros inimagináveis que só Paris é capaz de proporcionar. Veja você que tive a sorte de conversar sobre literatura com o Verissimo, sobre cidades com o Henry-Pierre Jeudy, sobre filosofia com o Lipovetsky e voltei a calçar chuteiras para bater umas boas peladas com o Chico. Fiquei até amigo do Philippe, filho mais velho do seu companheiro e parceiro Baden, o que me fez sentir que conheci um pouco você, por tabela.

Poetinha, quando eu chegar a Brasília, vou correr no Xique-Xique e pedir uma carne de sol completa com mandioca bem molinha, feijão de corda, paçoca e muita manteiga, acompanhada de uma cerveja estupidamente gelada. Vou me dar uma boa dose de brasilidade, que afinal é o motivo principal da nossa volta para minha terra natal.

E mais tarde, em casa, irei desembrulhar cuidadosamente o pedaço de comté que certamente levarei e hei de degustá-lo morosamente, em trevas totais, pensando apenas na amada Paris.

Daniel