sexta-feira, 23 de março de 2012

O olhar dos outros


O texto a seguir eu escrevi para um concurso francês de roteiros de curta-metragem do qual participei há cerca de 3 anos. O nome do concurso era Le regard des autres, o olhar dos outros, e o tema era homofobia. O vencedor teria o filme rodado e exibido em cinemas e na televisão locais.

Na condição de estrangeiro, decidi tratar do assunto mostrando que a discriminação sofrida pelos  homossexuais (ou bi, ou trans etc) é, no fundo, muito parecida com a que existe contra os imigrantes. E se baseia na intolerância que temos com o que não se parece conosco.

Se eu ganhasse, iria insistir para ter o Paulo César Pereio no papel do estrangeiro. Canalha por canalha, sou muito mais ele do que o Gérard Depardieu.


--

Dois amigos estão sentados em um café. Um é francês (FR), e o outro, estrangeiro (ES), com sotaque. O garçom chega. Um amigo pergunta pro outro.

FR - Quer o quê?
ES - Um café.
FR - Dois cafés. - Diz pro garçom, que sai.
ES - E aí, tudo bem?
FR - Tudo.
ES - Tá lá ainda?
FR - Lá onde?
ES - Naquele buraco que você trabalha.
FR - Porra, precisa lembrar disso agora?
ES - Cara, tem séculos que te falo pra você largar aquela merda.
FR - Eu sei, eu sei. Mas você acha que é fácil arrumar um emprego decente?
ES - E aquilo lá é decente?
FR - Pelo menos dá pra pagar a cerveja.
ES - Considerando o tamanho de vossa pança de chope, então parece que o senhor pelo menos está ganhando bem. - Vira o pescoço e fixa o olho na barriga do amigo.
FR - Filho da puta...

Os dois riem.

ES - Por que você não larga tudo e monta uma barraca de crepe?
FR - Hã?
ES - Uma barraca de crepe. Crepe de queijo, de champignon, crepe suzette. Essas porcarias. Turista adora.
FR - Eu sou uma catástrofe na cozinha. Até ovo frito eu queimo.
ES - Junta a grana dessas cervejas aí - aponta para a barriga do outro - e contrata alguém pra trabalhar pra você. Quando o diabo criou o capitalismo, as regras foram bem definidas.
FR - De que merda você tá falando?
ES - Não sou eu. Max falava isso.
FR - Max?
ES - É. O cara que inventou essas teorias de comunismo.
FR - Marx. Karl Marx.
ES - Ele mesmo. Ele dizia que quem sabe, trabalha. Mas quem tem, manda. - Faz o sinal de dinheiro, quando diz "quem tem".
FR - Você é foda...

Os dois riem. O garçom traz os cafés.

ES - Viu o jogo domingo?
FR - Vi.
ES - E esse time, hein?
FR - Porra. Os caras não sabem diferenciar uma bola de futebol de um taco de sinuca.
ES - E você? Sabe qual é a diferença entre uma bola de futebol e um taco de sinuca?
FR - Hã?
ES - Senta em cima dos dois que você vai descobrir.

O estrangeiro ri. O outro fica sem graça.

FR - Sabe, tô pra te contar uma coisa.
ES - Ganhou na loto e vai montar um harém em Ibiza?
FR - Não, cacete. É sério.
ES - Ih, que foi?
FR - Não tô mais com a Marie.
ES - Não?
FR - Não. Tô com outra pessoa.
ES - A Claire?
FR - Não.
ES - A Véronique? Vai dizer que pegou a Véronique?
FR - Na verdade, não é uma mulher.

O estrangeiro abre o olho grande e cola no fundo da cadeira.

ES - O que você quer dizer?
FR - Quero dizer isso mesmo que você está pensando.
ES - Virou bichona? Tá enfornando o robalo? Sentando na cobra?
FR - Porra, não dá pra falar sério com você.
ES - Não dá pra falar sério é com você. Que história é essa de sair liberando o brioco agora?
FR - Não é isso.
ES - É o que, então? É amor? Vai dizer que tudo o que você sempre quis na vida foi enroscar seu bigode com outro?
FR - Nem tenho bigode.
ES - Você entendeu.
FR - Eu tô namorando o Hugo, que te apresentei um tempo atrás.
ES - O Hugo, aquele seu amigo?
FR - Já é um pouco mais que amigo...
ES - Ficou doido? Namorando um homem???
FR - Fala baixo. Tá chamando a atenção.
ES - Você dá o rabicó e eu é que quero chamar a atenção?
FR - Você não entende nada mesmo.
ES - Entendo sim. Entendo que você tá louco. Porra, se fosse o Jacques, que gosta de pintar cerâmica... Ou o Julien, que inventou de fazer aula de dança... Mas você? Você vai ao estádio e toma cerveja. Até boxe eu já te vi assistindo na TV. Boxe!
FR - Isso não se escolhe. Você simplesmente vai percebendo que é assim. E um dia você resolve admitir pra si mesmo.
ES - Quer dizer que um dia você acordou: "ah, o sol está maravilhoso. Vou tomar um bom café, uma ducha e depois virar gay".
FR - Deixa pra lá. Achei que podia contar com você, meu melhor amigo.
ES - E eu, que agora nem sei mais dizer se você é meu amigo ou minha amiga?

Silêncio na mesa. O garçom chega e pergunta se querem mais alguma coisa. Ninguém responde.

ES - Fala que você tá de sacanagem, fala. Diz que é brincadeira.
FR - O que é que muda?
ES - Muda tudo. A gente nunca mais vai poder sair de casal. Eu com a minha namorada e você com a sua. Ir pra um cinema, um restaurante.
FR - A gente nunca fez isso. Você nunca tá namorando.
ES - Nunca fez e nunca vai fazer. Pior ainda. E pra quem eu vou contar das mulheres que eu pego? Pra quem?
FR - Porra, pra mim, claro.
ES - Mas você é gay, cacete!
FR - E você é um idiota. Sou eu ainda. A mesma pessoa, ó. - Diz isso e aperta o ante-braço do amigo, que faz um olhar de estranhamento.
ES - Ô...
FR - Quer saber? Vou nessa.

Ele levanta, joga umas moedas na mesa e sai. O estrangeiro fica e chama o garçom.

ES - Uma cerveja gelada, por favor.
GR - O quê?
ES - Uma cerveja gelada.
GR - Desculpa, não entendo o que você quer.
ES - Falei que quero uma cerveja.
GR - O senhor poderia fazer a gentileza de falar francês?
ES - Olha, vá à merda. -  Ele sai também. O garçom mostra que entendia, e responde.
GR - Sua mãe não te deu educação não?

O estrangeiro sai à rua, olha para os lados, e vê seu amigo já meio longe. Ele corre para alcançá-lo.

ES - Marc, Marc.
FR - O que você quer agora? Vai perturbar outro, vai.
ES - Tá a fim de ver o jogo no bar? A cerveja é por minha conta.
FR - Hã?
ES - Mas em outro. Naquele lá as pessoas são muito intolerantes.

Marc sorri e coloca a mão no ombro do amigo, que olha meio atravessado, mas depois relaxa e coloca a mão no ombro do outro também. Eles vão andando de costas pra câmera.

FR - A gente tem que ganhar esse jogo.
ES - Basta eles jogarem como homens.
FR - Ô...
ES - Brincadeira, porra.

Caros amigos, semana que vem o Chéri à Paris publica seu último texto. No entanto, o site continuará no ar, para quem se interessar em ler as crônicas que fiz durante esse quase 5 anos de vida francesa.

5 comentários:

Unknown disse...

Muito bom! Fico imaginando o que você vai usar pra encerrar um blog tão interessante e prolífico!!!
Será que é um texto antigo, guardado a sete chaves? Uma impressão geral da estadia toda?
De qualquer maneira, Daniel, parabéns pela empreitada. Fica bacana assim, com início e fim. Quem sabe um dia algum historiador o estude. rs.
Abraços

amigavendebsb@gmail.com disse...

não perco um post, desde que conheci o blog (e só soube recentemente que era escrito por um candango). mantenha o blog online e, com o tempo, se for o caso, ponha nele um link para as novas andanças. keep walking. merde. que te vayas bien. sorte.

GallôÔôÔôÔ disse...

Ai, já estou começando a ficar melancólica... =(

Adorei o roteiro, CariellôÔôÔôÔ!

Besos

ana disse...

Muito bom o roteiro,mas agora que te encontrei você irá encerrar o blog?
ue pena, pois lerei todo o blog então.
que coisa nem bem encontro, já perco.
Ana.

Não importa disse...

Como assim??? Por que vai encerrar a publicação de textos? Vai trocar de endereço? Não pare de (nos) escrever, por favor!