sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Um reino por um dedo

 A Louise nunca teve chupeta. No entanto, compensou a necessidade inata de sucção chupando o polegar esquerdo. Chupando, não, castigando o pobre coitado, tamanha a fúria com a qual o sugava.

Tentamos fazê-la parar.

- Loulou, tem que parar, não é bom.
- É bom, sim, pai. Aqui, ó.

E lascava novamente o dedo na boca, como se fosse um doce.

Levamos ao dentista, que endossou nosso discurso.

- Ei, Louise, você precisa parar de chupar o dedo. Tem que cuidar dos dentinhos.
- Mas eu já cuido com a escova. Né, pai?

Eu respondia que era, mas que não era, porque para ser mesmo era preciso ser de verdade. Ela não entendeu nada. Tentei simplificar.

- Do contrário, Louise, você vai precisar usar aparelho quando for grande.
- Eu quero usar aparelho, pai.
- E você sabe o que é aparelho?
- Não.

Teve também o dia em que a levamos ao médico.

- Como vai a saúde dela?
- Tá ótima.
- Dorme e come bem?
- Até demais.
- Ainda coloca fralda?
- Só pra dormir.
- E chupeta?
- Nunca usou, mas chupa o dedo loucamente. Chegou até a fazer um calo no polegar, olha aqui.

E virou-se pra ela.

- Louise, você machucou o seu dedinho de tanto chupá-lo. Precisa parar, pra ele ficar bom.
- Mas ele já está bom. Papai e mamãe deram um beijinho e ele melhorou.

Não tinha mesmo jeito. Ou parecia não ter. Até o dia em que a mãe veio me contar a novidade.

- A Louise vai parar de chupar o dedo.
- E eu vou aprender a voar rodando os braços.
- Tô falando sério.
- Eu também. Já comecei a treinar ontem, pulando do sofá.
- Eu a convenci.
- ?
- Falei que se ela parasse a gente daria uma boneca de princesa da Branca de Neve.
- É impressão minha ou você está chantageando uma menina de dois anos?
- Não. Eu disse que seria uma recompensa pelo esforço dela.
- Ah, então está negociando com ela, realmente muito melhor.
- Vai funcionar, você vai ver.

Acontece que de maneira surpreendente a coisa começou mesmo a dar certo.

- Pai, tô parando de chupar.
- Tô vendo. Parabéns, Louise.
- Ela tá onde, minha boneca de princesa da Branca de Neve?
- Só quando você parar de verdade. E não se esqueça: é uma recompensa pelo seu esforço.
- Pai, o que é esforço?

Esses dias percebi que já fazia quase uma semana que ela não colocava o dedo na boca.

- Loulou, parabéns, você parou mesmo de chupar o dedo. Hoje vamos comprar sua boneca da Branca de Neve.
- Oba!

Passamos em uma loja, não tinha : "Na Disney do Champs-Elysées o senhor vai encontrar". Não encontrei : "Estamos sem recebê-la há meses! Tenta em Les Halles". Tentei e nada. "Dá uma chegadinha na rua tal, é possível que tenha". Cheguei e não tinha. A Louise já começava a perguntar.

- Pai, cadê minha boneca de princesa da Branca de Neve?
- O moço disse que acabou.
- Vamos em outra loja?
- Já fomos em várias.
- Mas vamos em outra, vamos?

Já tem dois dias que procuro esse diacho de boneca. Tem Pocahontas, Pequena Sereia, Cinderella, Bela Adormecida e todas essas mocréias da Disney, só não tem a Branca de Neve. Comecei a pensar em desistir e dar uma desculpa qualquer, mas agora há pouco a Louise me perguntou mais uma vez pelo presente, olhando com um certo interesse para o próprio polegar. Tive a nítida impressão que ela estava avaliando se voltaria a chupá-lo ou se o abandonaria de vez, como uma recompensa pelo meu esforço em encontrar a sua princesa.
Chers amis, o Chéri à Paris voltou por cinco semanas, cinco textos, o tempo das minhas férias na França. Esse é o terceiro deles. O próximo estará no ar na 6a feira que vem. 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Jemaa el-Fna


Dezenove dirhams, cerca de quatro reais, é quanto custa o meu café da manhã. Quatro pelo suco de laranja fresco, tomado em uma das dezenas de barracas que vendem a bebida a preço tabelado na praça Jemaa el-Fna, com direito a chorinho de quase meio copo, e quinze pelo chá de hortelã e pelo pain au chocolat, consumidos em um café. Muito barato, ainda mais levando em conta a vista privilegiada da maior praça de Marrakech, provavelmente o principal ponto turístico do Marrocos.

- Tem que pagar o chá e o croissant agora, mon ami.
- Tá aqui.

Do alto dos minaretes, os almuadens chamam quase simultaneamente à prece pela segunda vez do dia. A primeira me acordou, às seis da manhã. O belo e incompreensível canto logo cessa, e as escalas árabes das flautas dos múltiplos encantadores de cobra voltam a todo fôlego. De onde estou, conto doze deles, oito especializados em najas que permanecem indefinidamente em posição de bote, quase nunca o concluindo. O último acidente com uma serpente aconteceu já faz um tempo, mas parece que o turista nunca voltou pra reclamar.

Vejo também um sujeito perambulando com um macaco no ombro, propondo fotografias com os passantes, dois tocando percussão local, oferecendo mini shows para os dispostos a pagar, e ainda um outro com um chapéu típico do país, de formato parecido com uma lata de goiabada mais alta, do centro do qual sai uma espécie de corda trançada de cinquenta centímetros com uma bola de tecido na ponta. Este cidadão abaixa o pescoço e descreve voltas rápidas com a cabeça, fazendo a corda girar como se fosse uma hélice. Não entendi se ele propõe algo aos transeuntes ou apenas tenta refrescar as ideias nesse inverno do quase Saara, onde as temperaturas variam até trinta graus durante o dia.
                                  
Há charretes decoradas que passam procurando passageiros e turistas que encontram uma realidade totalmente diferente das suas.

Há mulheres vestindo véu completo e moças que usam jeans e camisas e cobrem apenas as cabeças.

Há pedintes estendendo a mão em árabe e comerciantes que abordam em francês, oferecendo uma promoção relâmpago, exclusiva e imperdível.

Há milhares de pedestres desavisados e dezenas de scooters e bicicletas que costuram em um balé tão caótico que quase sincronizado e então se embrenham pelas ruelas e souks.

Há todas as baixas construções circundantes da praça pintadas invariavelmente em vermelho terra e com detalhes em verde, as cores da bandeira do país, e ao fundo as altas montanhas do Atlas, no topo das quais ainda há neve.

A vida do lugar se impõe tão intensamente que decido ficar um pouco mais para vê-la desfilar diante dos meus olhos.

- Mais um chá de hortelã, min fadlak.
- Dez dirhams.
Aqui. Chokran.
- Ma haalihch, mon ami.

Chers amis, o Chéri à Paris voltou por cinco semanas, cinco textos, o tempo das minhas férias na França. Esse é o segundo deles. O próximo estará no ar na 6a feira que vem. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Mistral


Assim que desceu do TGV na Gare St Charles, Raimundô Batistá levou um baita susto, pois não estava acostumado com aquele vento todo. Que vendaval dos infernos é esse, perguntou a si mesmo, enquanto fechava o sobretudo e colocava as luvas de couro, o cachecol de lã e um boné do Senhor do Bonfim pra proteger as ideias, como diz sempre.

Ele não podia reclamar que não havia sido advertido. Raimundô, attention au Mistral, repetia o tempo todo seu colega Sophianne, originário de Marseille, prevenindo do vento que de tão famoso até nome próprio tinha. Brisa também tem em Salvador, desdenhava, sem no entanto fazer ideia da potência daquela ventania capaz até de arrancar os chifres de um boi, segundo famoso ditado local.

Sem se dar por rogado, anunciou vou passear na praia. Vai não, tentaram dissimulá-lo, não bastasse o Mistral forte, ainda estamos em pleno inverno, você vai virar picolé em dois minutos. Eu vou, insistiu, e quando ele colocava alguma coisa na cabeça era muito difícil tirar, e ainda vou levar a sunga, porque baiano quando vê o mar quer mais é se jogar.

Seus amigos ficaram apavorados, pois sabiam que ele era capaz de encarar a sensação térmica de quase zero grau só de birra. Um deles, ao imaginar a situação, começou a ter tonturas e saiu pedindo meus sais, meus sais. Precisou ser amparado pelos outros companheiros, que o sentaram no chão e deram água gasosa.

Baiano frouxo nasce morto, repetia Raimundô em seu francês carregado de um sotaque que podia ser percebido antes mesmo que ele abrisse a boca. Quem quiser que me siga, tô indo pra praia. Todo mundo seguiu, é claro, e um dos amigos achou melhor telefonar para os bombeiros, para preparar o salvamento.

Quem precisa de ajuda, perguntaram do outro lado da linha. Ninguém, por enquanto, mas vai precisar em breve, disse. Vá brincar com outro porque temos muito serviço por aqui, respondeu desaforado o sujeito, desligando na cara.

Ao chegar na Praia do Profeta, compreensivelmente vazia, Raimundô foi ao banheiro e voltou sem as três camadas de roupa, vestindo só a sunga tricolor do Esporte Clube Bahia. Alongou o pescoço, deu uma corrida de cem metros, fez meia dúzia de flexões e disse tô pronto, vou lá. Vai não, repetiram todos em um coro que de tão sincronizado parecia jogral de igreja. Vou sim, tô indo, já fui. E o pior é que foi mesmo, abrindo caminho contra o vento que quase o derrubava.

Acordou quatro dias depois, debaixo de dois cobertores e com uma bolsa de água quente sobre a testa. O que aconteceu, quis saber. Você é louco, entrou no mar em pleno inverno e com um Mistral daqueles, usando só um calção de banho surrado. Surrado coisa nenhuma, mais respeito com a sunga do glorioso Bahia, disse e virou pro lado pra tirar mais um cochilo, que aquela aventura tinha dado um sono da porra.

Chers amis, o Chéri à Paris voltou por cinco semanas, cinco textos, o tempo das minhas férias na França. Esse é o primeiro deles. O próximo estará no ar na 6a feira que vem. 
Aproveitem para ler os outros dois textos sobre Raimundô Batistá, o baiano arretado que é motorista de táxi em Paris. Tem um aqui e outro aqui.