sexta-feira, 8 de março de 2013

Retornar

É redescobrir as cores do inverno. O ciano da luz do sol, cuja tonalidade muda de acordo com a época do ano. O cinza nas ruas e nas faces embebidas da estação. O vermelho nas bochechas e narizes queimados pelo frio e pela secura.

É remexer no baú de olfatos e paladares quase adormecidos. Virar a esquina e tropeçar em um cheiro surpreendente de tão familiar. Virar um copo e tomar um grande gole de memória afetiva tinta.    

É reouvir a peculiar música das cidades, das ruas, dos restaurantes, dos cafés, das vozes. Uma melodia quase monocórdia, entoada sem síncope, porém bem ritmada.

É ressentir o vento frio e cobrir-se para enfrentá-lo. E, ao sair de casa, levantar a cabeça e contemplar os flocos de neve caírem sobre os óculos para então liquefazerem-se.

É requentar-se com amigos que ao longo dos anos dividiram um pouco de suas culturas, suas experiências, suas referências. E ficavam felizes quando compartilhava a minha brasilidade com eles, mesmo que nunca tenha sido capaz de ensinar a dançar “la samba”.

É relembrar rotas esquecidas, retomar ruas deslembradas, percorrer caminhos extraviados. E achar-se um pouco ao longo de cada um deles.

Retornar à França, mesmo que apenas de passagem, é revisitar a pessoa que me tornei ao longo dos últimos anos. É reencontrar com uma parte de mim qui me manquait beaucoup.

Chers amis, esse é o último texto dessa temporada do Chéri à Paris, que voltou por cinco semanas, cinco textos, o tempo das minhas férias na França. Um abraço a todos et à bientôt! 

sexta-feira, 1 de março de 2013

Um dia qualquer


Era um dia como outro qualquer. Fazia frio, como qualquer outro dia dessa época do ano. Ele pegou o primeiro casaco e o primeiro sobretudo que encontrou no armário. Saiu de casa não por que não tinha escolha, mas porque já dera inúmeras voltas nos seus doze metros quadrados. Não por que fazia grande diferença pra ele, mas porque cansara do espelho, que refletia um rosto com resquícios de juventude, no entanto cansado, ainda belo, porém mal cuidado.

Pegou a rue du Faubourg Saint-Denis e se disse, como se dizia todas as vezes, que aquele bairro estava perdendo sua alma. Que os restaurantes indianos apimentados e baratos e os comércios locais de quinquilharias estavam cedendo lugar a bares descolados e da moda e a franquias de marcas consagradas, os mesmos que podiam ser encontrados com pequenas variações em qualquer outra grande cidade do mundo. "Está perdendo a alma", repetiu mais uma vez, antes de passar sob o enorme arco que um dia fora uma das portas de Paris.

Continuou caminhando sem rumo preciso e decidiu parar para um café. Entrou no primeiro que viu, pois realmente não importava, sacou o telefone, desligado havia quatro ou cinco dias, e verificou que não havia recebido nenhuma ligação ou mensagem. Conferiu as horas, mais por reflexo que por necessidade, plugou os fones e colocou uma música pra tocar em modo aleatório. Deixou três moedas sobre a mesa e saiu.

Entrou no Forum Les Halles e se dirigiu ao cinema. Hesitou entre as duas dezenas de filmes em cartaz e acabou decidindo por nenhum. Santou em um banco e passou trinta, quarenta minutos só vendo as pessoas passarem com suas compras e suas pressas. Levantou-se, pegou a escada rolante e voltou à superfície. Foi andando em direção à Beaubourg, mas antes de chegar virou à direita e encaminhou-se para o Sena.

Em Chatêlet, achou que tinha fome e parou para comer um crepe de queijo, em pé. Não bebeu nada. Olhou para o trânsito, para as crianças no parque, para a torre, para o céu cinza, para os flocos de neve que caíam esporadicamente e tornou a baixar a cabeça. Dirigiu-se lentamente para Pont des Arts. A música já havia parado, mas os fones continuavam no ouvido.

Chegou até o meio da ponte, encostou no parapeito e inclinou a cabeça para baixo. Observou a passagem dos bateaux mouches e das pessoas que invariavelmente acenavam, mas não esboçou reação. Seus óculos escaparam do rosto e ele nem tentou segurá-los. Acabaram afundando para sempre no rio.

=  Albert, Albert! Alguém gritou. Ele se chamava Albert, mas não virou o rosto. 
Albert, c’est moi! Tu ne me reconnais pas? Talvez até reconhecesse, mas nada disse. E sem nada dizer, virou-se e tomou exatamente o mesmo caminho de volta.

Chegou à rue du Faubourg Saint-Denis e observou as lojas chiques, os restaurantes cheios e os novos transeuntes, que tomavam pouco a pouco o lugar dos velhos. "Perdeu a alma", pensou em voz alta.

Chers amis, o Chéri à Paris voltou por cinco semanas, cinco textos, o tempo das minhas férias na França. Esse é o quarto deles. O próximo - e último dessa temporada - estará no ar na 6a feira que vem.